sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Isso aí não tem futuro ou Rio Grande (a cavalo)



        Não é sempre, mas aquela necessidade me pegou. Se não me expresso tudo fica pior. Tenho que me livrar dos excessos para conseguir funcionar. Meu cérebro enferruja muito rápido. Esse corpo alto, negro e gordo, com um brinco de prata na orelha esquerda e cabelos pretos e curtos, não me dá sossego.

***
Precisava escrever alguma coisa para enviar para algum lugar. Fiz todo o preparo: Cigarros, trago, folhas, caneta. Desliguei o telefone para não ser encontrado e selecionei umas quatro ideias que deveriam bastar para trabalhar na madrugada. O mundo lá fora e eu aqui, riscando do meu jeito. Assim é mil vezes melhor.
Aí a campainha tocou.
         Fiquei em silêncio, mas o desgraçado estava determinado. Xinguei e fui abrir a porta. Ali estava parado Charles. Longos cabelos loiros, quase um albino, olhos azuis, magricelo e com seu sorriso amarelo.
_Entra aí!
         Com sua voz aguda e arrastada me explicou que tentou me ligar o dia todo para informar de sua visita. Fingi que acreditei. Preparei um copo para ele e tirei os livros que estavam sob o sofá para que pudesse sentar. Acomodou-se e suspirou entusiasmado. Quanto a mim, a cadeira de madeira encostada na parede era suficiente.
_Puta merda, você ia escrever! Te atrapalho?
         Dei um sorriso frouxo e resmunguei alguma coisa que não lembro. Acendi meu cigarro.
_Pode escrever cara, eu espero aqui, quietinho.
_Tudo bem. Vou só anotar algumas coisas e aí conversamos.
         Comecei a escrever as ideias gerais do texto. Era para ser uma coisa engraçada, mas meu humor acabou. Mesmo assim, insisti um pouco.
_Sabe Adriano... deve ser estranha essa vida de escritor!
_Não, não é.
         Apaguei um cigarro e já acendi outro. Molhei a garganta e olhei para a parede. Senti que estava sendo observado. Escrevi duas linhas.
_Tipo, você deve viver muita coisa para ter tanto sobre o que escrever.
_É...
_E deve passar por cada situação... né?
         Desisti. Sequei meu copo e pedi para Charles se ele precisava de mais. Secou seu copo e estendeu com seu braço branco e ossudo. Fui até a cozinha e preparei mais duas doses de vodca com alguma coisa. Na minha pus um pouco de leite para rebater a acidez. Eu sei, veadagem.
_Você não estava namorando? – Perguntou enquanto eu lhe alcançava o copo.
_Não que eu saiba...
_Mas não tinha uma mulher morando aqui com você?
_Que isso tem a ver com namorar? – Devolvi.
_Você é safado cara! – Apontou pra mim. – esse negócio de ser escritor deve atrair um monte de mulher!
_Não no século em que vivemos.
_Ah, deixa disso. Os escritores vivem escrevendo sobre casos com mulheres... – disse sorrindo de um jeito abobado.
_Escritores mentem. O tempo todo.
         Me alugou quase uma hora com um papo de que andava fazendo aulas de teatro. Descreveu minuciosamente cada curso que fizera, livros que havia lido (todo mundo lê Antonin Artaud), fofocas e tudo mais. Não lembro onde é que eu estava – minha mente viajou para longe, igual um monge quando medita sobre a vida e a morte. Contemplei o universo, lembrei de um velório, pensei no barulho da chuva e depois voltei. Devo ter voltado em tempo.
_E é isso cara! Qual sua opinião? – perguntou ele batendo com as palmas das mãos nos joelhos.
_Bacana... – resmunguei. – que você acha de sairmos daqui e irmos num bar na esquina?
_Não cara, eu já vou indo. Vou te deixar trabalhar. Só passei para te dar um olá mesmo.
_Então: Olá!
Charles riu. Depois caiu fora. Acho que foi o diabo quem o enviou ou alguma entidade pior.  

***
         De qualquer forma, quando dei por mim, já estava no bar. Parecia que realizava um teste de seleção para histórias absurdas. Meu problema é que sou bom ouvidor. Cada maldito que aparecia saia com uma maluquice.
         Um velho gordinho e de óculos que sentou do meu lado, relatou como se livrou de um assalto.
_Sabe grandão que tem um momento em que os filhos da puta dão bobeira, não sabe? – dizia ele.
_Sei...
_Então, quando o filho da puta deu bobeira eu acertei-lhe um soco na ponta do queixo. Fui boxeador amador quando era mais jovem, sabe grandão?
_sei...
_Como é que tu sabe? – me deu um soco no ombro.
_Eu sei de tudo. Prossiga.
_Ok. Então acertei o filho da puta e ele tonteou, mas não caiu. Aí dei-lhe um pontapé no saco, bem nos bagos!
_Onde foi isso? – perguntei, fingindo interesse.
_NOS BAGOS!
_O lugar, me refiro ao lugar...
_Aqui! Não sabe onde fica os bagos, grandão? – apontou para seu saco murcho.
_Espaço, localidade, bairro, é isso que estou perguntando!
_Ah, foi na Sé, aqui em São Paulo. Na saída do metrô, na frente da delegacia.
_Uhmn...
_E agora estou respondendo um processo! Acredita?
_...Acredito em cada coisa que você nem imagina.
         Depois desse mentiroso, veio uma mulher de uns quarenta anos. Loira, enxuta, num vestido verde, algo de malícia e qualquer coisa de histérica. Os peitos dela ficavam balançando na minha cara quando não batiam no meu braço sob o balcão. Tentei passar a conversa nela, só para fazer alguma coisa e me livrar do tédio.
_E eu transo com vários caras – a voz um pouco rouca e os olhos bem arregalados. – às vezes ao mesmo tempo!
_E hoje?- aquela curiosidade...
_Não, hoje, não! Hoje quero descansar!
_Tudo bem...
_E sabe de uma coisa? Nem um homem tem o pau igual ao outro. É tudo diferente.
_Pois é... não penso nessas coisas...
_E o segredo não tá no pau! O segredo tá na buceta. – fez um triangulo com as mão para mim ver. O garçom esticou o pescoço para ver também. Sua cara magra de onde pendia um narigão me irritou pela curiosidade.
_Pode ser...- fiz sinal para o garçom me dar outra cerveja.
_O homem não come a mulher, entende? É a mulher que come o homem! – deu um tapa na minha coxa, depois riu – A buceta é uma boquinha! E a boquinha mastiga a banana! Você me entende?
_Entendo... – fiz um esforço para não visualizar a metáfora.
_E eu sou uma devoradora! Uma degustadora também. Eu experimento de tudo um pouco.
_Uma boquinha gulosa... – resmunguei.
_Não é assim, é uma boquinha desbravadora dos sabores do mundo!
_E hoje a boquinha tá descansando... – falei maliciosamente.
_Isso aí!
_Quando a boquinha não estiver descansando, aí você me avisa!
_Você não me aguenta cara! Você é muito jovem, tem que aprender muito ainda... Vocês jovens não trepam para aprender, trepam para se exibir!
Gostei da teoria dela. Anotei mentalmente.
_Eu fiz plástica. Tenho 69 anos! – devolvi.
_Número sugestivo – riu ela.
         Defendeu sua tese e depois deu no pé. Deve ter ido colocar a boquinha para dormir, pensei, contando-lhe uma historinha. O problema é se começa a pedir mamadeira – melhor nem imaginar isso. Não pense que eu não fiz o sinal da cruz!
         Lá pelas três minha mão já contava com movimentos condicionados para pegar o copo. Foi depois disso que um travesti enorme puxou a cadeira do meu lado. Tudo de agressivo. Ombros largos e braços musculosos – no direito, bem no muque, tinha tatuado um coração atravessado por uma flecha. Quase meigo. Vestido preto, sem alça. Salto alto e fino. A pele era cor de laranja. Pescoço longo e aquele gogó protuberante. Um pelo grosso na ponta do gogó: a bandeira de alguém que escalou aquela coisa? Era polaco – notei pelo formato do nariz. Parou ali para tomar a saideira – e eu estava no meu quarto pedido de “só mais essa”.
_Trinity! – se apresentou depois de um tempo. – que nem no filme Matrix.
_Filme interessante – resmunguei.
_Não acho! – Sinalizou ele/ela/quem sabe?, com aquela voz de homem tentando afinar.
Tá faltando treino vocal aí, refleti. – mas esse problema não é meu!
_O pessoal me chama de Rio Grande! – Informou com um gesto do braço musculoso. Como se essa informação fosse de suma importância.
_Entendo...
_Dependendo da noite – bebericou seu whisky-, é Rio Grande a Cavalo! – aí a voz ficou (perigosamente) mais grossa – Quer saber por que é Rio Grande a Cavalo?
_Se eu disser que não, você vai falar do mesmo jeito!
_Com certeza! É porque eu sou do Rio Grande e me destaco na galopada!
         Pensei: puta merda, essa porra de balcão tá virando A praça é nossa! E eu devo ter cara de Carlos Alberto, fazendo ponte para os humoristas arrancar risadas ensaiadas de uma plateia de semimortos. É certo que não deveria ter saído de casa. Sempre me arrependo, mas finjo que não. O pior – para mim mesmo!
_Você não quis dizer “cavalgada”? – resmunguei.
_Não. Galopada. É mais fora de ritmo, sabe?
_Não sei não...
_Eu te explico!
_Melhor não. – Disse seco.
_Assim você me magoa!- fez beicinho. E que beicinho, rapaz! Tai a entidade pior que imaginei antes. A propósito: Superou minha imaginação. Não vou conseguir descrever.
_Isso aí. Eu estou sempre magoando as pessoas. – falei.
_Ui que delícia!
_Vá pro diabo!
Ele/Ela/quem sabe?, desatou numa gargalhada.
         Paguei minha conta e saí do bar. O garçom ria que se mijava da minha cara. :_Ria enquanto pode! – Sussurrei para ele, por cima do caixa na porta. “Com certeza! Ra ra ra!”.
-Pau no cu de quem tece meu destino.

***

         Isso aí não tem futuro! – Falei olhando no espelho. Na sequência joguei água no rosto, enxuguei e contei até dez antes de sair do banheiro. Dessa vez estava na casa de Charles. Como ele me pediu: Apenas para trocar uma ideia – com a irmã dele. Ela é bonita demais para ser irmã do tal irmão. Geralmente é assim. Me tomo como exemplo.
         Jucélia era o nome. Junção do nome do pai e da mãe - aquela coisa. Magra, alta, quase albina – também – e já publicou um romance numa editora meia boca. Escreve bem. Mas tem medo de falar em pau, buceta, cu, essas coisas. Escrever “pau no cu” então, nem falar! Provavelmente nem tem cu – ou não descobriu ainda. Vai saber.
_você deve dizer para as mulheres que elas escrevem bem, só pra comê-las! –falou para mim, na sacada, a queima roupa, enquanto acendia um cigarro.
Lembrei da conversa sobre a boquinha e comecei rir.
         Não respondi. Desenvolvi essa mania agora. Quando não gosto do que as pessoas falam, finjo que elas não falaram. Fica melhor para todo mundo.
_Responda alguma coisa! – disse ela, depois de cinco minutos do mais puro silêncio.
_Você escreve igual minha falecida mãe, não posso te criticar. – resmunguei.
_Não sabia que sua mãe escrevia... – ficou constrangida. O rosto corou, tremeu a mão para acender outro cigarro. Começou a ensaiar um gesto de desculpas.
_Minha mãe nunca escreveu e agora acho que ficou mais difícil.
_Cara... você é desprezível mesmo! – rosnou e voltou para dentro de casa.
         Dali mesmo caí fora. Rindo e sacudindo os ombros.

***
         Novamente a mesa, os papéis, cigarros, trago, só faltava à vontade de escrever. Olhei as anotações de três noites atrás. Tudo merda. Amassei sem rancor algum. Fizeram despacho para mim – aposto. Meu nome costurado na boca de um sapo. Não é a primeira vez, reconheço os sintomas.
         Passei a mão na bunda de uma menina na escola. Acho que hoje ela gerencia um puteiro no interior de Santa Catarina. Levava jeito. Quinta série. Tava todo mundo passando, achei que tinha alguma coisa de divertido. Foi meio chato. Sem sentido. Ela contou para o pai dela. O pai dela era pai de outra coisa também: de santo. Só sabia o meu nome, daí que fui o único amaldiçoado.
         Falando de caras fortes, acho que me encaixo nesse caso. Se segui até aqui, com sapo e tudo, vai ver tenho alguma força oculta.
Mas hoje, não vai sair nada. Sinto muito se você leu até aqui.





r.A.

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