sábado, 26 de março de 2016

A saudade é a fome do desejo



  Aquela praça cheia de gente e os bares cheios de gente. A escada onde sentamos uma madrugada e você me disse que não sabia me dar prazer – naquele momento estava me dando prazer e nem fazia ideia o quanto. Aquelas pessoas todas falando e eu atravessei a rua com as mãos nos fundos dos bolsos da calça jeans manchada na cocha esquerda: nem sempre acerto na dosagem do sabão em pó e em todo resto.
        Aquele momento em que você se sente apartado de todo mundo e pensamentos fazem redemoinhos nos cantos escuros de seu crânio, sentimentos coçam feito pulgas no peito. Dou passos mais largos e mais rápidos na esperança de gastar a energia do corpo e apagar qualquer coisa da mente. Quem sabe se isso funciona?
     Uma implacável fome do desejo. O desejo ficando raquítico e implorando para que eu deixe de ser malvado com ele. Essa absurda autodisciplina com a ilusão de ser de ferro. Observe qual é a ferida que estou cauterizando enquanto meus passos medem as ruas. Os ursinhos carinhosos vencendo meu coração gelado.
_Não pode ser. – resmungo olhando o reflexo de meu rosto cansado na janela de uma lanchonete lotada de gente.
         Gente. Gente por toda parte. Nas ruas festejando qualquer coisa, nos carros buzinando nas avenidas; nas livrarias folhando livros que não tem nada dentro, gente que não quer entender do que eu preciso. No início tive curiosidade, depois detestei todos por exporem apenas seus desejos o tempo todo, mais depois ainda, encontrei consolo em uma quase indiferença. Aquelas ruas empesteadas de gente e de mim. Eu intoxicado de mim. Na verdade não preciso de muita coisa, sabe?
         Aquele caminho que meu corpo se lança sem pensar muito. E lá vai ele, o enorme corpo, passeando com os sentimentos acima da cabeça como se fossem um balão de parque de diversões: formato de peixe-boi. Agora pisando com cuidado no lugar onde de maneira secreta suporto a solidão. A gente trocando olhares na calçada, fingindo segurança para quase ocultar enormes valas de saudade. A gente é muito sensível quando pode. E pode sempre, mas não quer.
         Se por um momento eu fosse todo mundo seria todo mundo engolindo o choro da sua ausência – inclusive você. Se por um segundo eu fosse a consciência da multidão essa multidão desabaria em convulsões. Acontece que sou somente eu, sem você, atravessando a cidade como se procurasse algo e sabendo que você não está lá. Saber que você não está lá se chama “que merda, vida filha da puta!”.
        As travessas, os viadutos, as pontes, os sinais de trânsito. Os mendigos, os alegres cachorros dos mendigos, os vendedores de artesanato, o grupo de conhecidos que te chamam para se juntar em volta de algumas garrafas e você sorri desanimado e sacode negativamente a cabeça. Não queria te dizer isso mas concluo que a saudade é a fome do desejo. Sussurro canções até chegar num apartamento alugado que já não me defende de nada lá fora.
         Preencho páginas, páginas e outras páginas. Leio um livro, dois, três e quatro. Bebo outra caneca de café e abro a segunda carteira de cigarros. Cruzo as pernas e observo uma sala escura toda bagunçada. Você acertou quando disse que sou um péssimo ganhador e um sujeito cagado de sorte. Talvez o fogo que me consome brote justamente das faíscas dessas duas pedras friccionando uma na outra.
         Aquele silêncio se espalhando nos cantos e no teto. Aquele silêncio entrando pelos meus ouvidos e me preenchendo completamente. Eu sendo pleno silêncio desde de ter andado quilômetros procurando o que não estava lá e nunca poderia pegar e abraçar junto ao corpo. Essas coisas só te enlouquecem enquanto você não compreende o quanto precisa disso. Não podemos mais imaginar o que eu seria se não fosse essa loucura toda. Aquele silêncio louco que sou eu, às vezes.
         Parte do meu corpo arrasta a outra parte do meu corpo. Parte de minha vida arrasta a outra parte da minha vida. Parte dos meus desejos morrendo de fome de você, a parte que sobrou morrendo de sede de você. Vai ver que tem gente que nasceu para não ficar junto – e nessas horas agradeço por saber dizer Foda-se o destino ou a ideia de destino. Parte de mim arrastando outra parte de mim em direção ao novo nascimento silencioso. Eu jogo dados na fronteira e monto meu pequeno acampamento na margem. Molho a pena com a qual escrevo na tinta negra que escorre do cadáver de Deus. Parte da minha boca sorri.
         Tiro a botina do pé esquerdo. O que foi que matei nessa madrugada? Tiro a botina do pé direito. É dos sonhos que me defendo? Tiro as meias e coloco dentro das botinas. Não sei reconhecer o que ganhei? Tiro a camisa preta, penduro em uma cadeira no quarto. Você recitaria Rimbaud para alguém numa noite dessas? Tiro as calças e jogo a cueca na pilha de roupas sujas. A gente sabe que tudo morre? Abro o chuveiro e fico lá por dez anos. Não entendo direito porquê estou rindo, mas estou.
         Aquele mundo inteiro rindo e eu rindo também. Porém não estamos rindo da mesma coisa e só um desses risos entre bilhões nunca se justificará. Depois a gente tentará dormir devorando a si mesmo por causa dessa fome.




r.A.