quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Se eu quisesse falar de política

Ao som de Misfits – T.v. Casualty

        
         Ontem estava sentado em uma lanchonete esperando vir uma porção de batatas fritas enquanto conversava com um colega escritor sobre precisar tomar uma decisão muito importante na minha vida. Ele me ouvia mexendo nos óculos que embaçavam no seu rosto magro e pálido.
Esqueci do que estava falando quando subitamente o dono do estabelecimento aumentou o volume da televisão que noticiava o mandado de busca e apreensão na casa do presidente da Câmara.  A cena era do fulano abrindo a porta de sua casa pela manhã com um sorriso cafajeste.
_Você abriria a porta para a polícia federal se já não esperasse que eles viriam revistar sua casa?- perguntou meu colega.
_Claro! Porque adoro receber visitas. – respondi.
Algumas pessoas nas mesas próximas a nós riram de nossas ironias.
         Nos últimos dias só ouço nas ruas as pessoas falando da situação política do país e talvez poderíamos concluir que o povo está se tornando implicado nesta maravilhosa democracia com belíssimas curvas de tensão. É como se estivessem comentando futebol ou um capítulo de novela.
“A presidenta cai ou não cai?”
          Também tem aqueles que reclamam que eu nunca escrevo nada sobre política e deveria aproveitar essa onda dos escritores colunistas que apostam todas suas fichas na mobilização de opiniões em blogs, sites, jornais, etc. – isso vende!
         Mas só sei escrever sobre os porres que tomo, as mulheres que me odeiam e os paradoxos existenciais que me arrastam para o caixão na velocidade de um raio. Resumindo, só falo de mim porque é onde minhas mentiras se destacam.
         Uma frase de Nietzsche, para você perceber que sou intelectual pra caralho: “Raramente temos coragem para o que sabemos”. É claro que poderia ser pior! Poderia falar da coluna do Gregório ou do Pondé.
_A única diferença ideológica que acho nítida entre os partidos nesse país é nas cores escolhidas pelas agências publicitárias. – resmungo.
         Cruzo o olhar com meu colega e ele desvia em tempo de observar a bunda de uma garota de vestido branco. Quanto a mim não são as bundas que me atraem, não que seja feminista...
_Gosto do azul e branco... – diz meu amigo, pensativo, coçando o queixo.
_Preto é minha cor favorita. Estou sempre de luto. – peço uma cerveja.
          Terminamos as batatinhas, a cerveja, pagamos e saímos andando pelas ruas com as mãos nos bolsos, em silêncio. Em uma esquina um mendigo me pede um cigarro e quando ele tira uma tragada prazerosa sinto certa inveja daquele cara.
_Eu poderia viver na rua, desse jeito. – diz ele, ainda ajeitando os óculos.
         Olho para o céu e percebo que logo irá chover. Minha inveja passa imediatamente.
_Ali morreu um cara ontem. – meu amigo aponta para uma esquina suja e escura.
_Motivo? – pergunto, mas não há tanto interesse assim na minha pergunta. É óbvio. Estamos atravessando uma das baixadas mais barra pesada de São Paulo.
_E alguém tem motivos para morrer? – ele ri. – já vi tanta gente morrendo por esses lados que... sei lá.
         Nos despedimos e atravesso uma longa ponte sob um rio que é mais um esgoto a céu aberto. No horizonte vejo um hospital, um viaduto e uma enorme igreja.
         Em algum lugar estão decidindo os rumos do país, mas de forma alguma estão fazendo qualquer coisa que se aproxime do conceito de política. Ditos intelectuais e vigaristas de todas as cores entopem jornais, livros, programas de t.v., militância de partidos, com sua verborragia em estado de torpor. A maneira como se entusiasmam já me fez questionar as razões de eu não me encontrar nesse gigantesco formigueiro.
         Eu estou preocupado com o aluguel, com cortar meu cabelo e se eu “caio ou não caio”.  Quando chego no meu apartamento emprestado, sem mobílias – é assim que gosto -, e cruzo a sala escura indo direto para o banheiro tomar banho, começo a me lembrar os motivos pelos quais escrevo.
_É que amanhã as coisas não vão melhorar, mas se risco no mundo com força, pelo menos funciono melhor.

Parece uma desculpa razoável para um cara nem um pouco razoável.

E boa noite para quem conseguir dormir.




r.A. 

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

O mais solitário e enlouquecido dos cães




Para a fogo de palha dos pés pequenos...


         Se Rimbaud disse que “a gente nunca parte, apenas retoma o caminho” – qualquer coisa nesse sentido, meu francês não é lá muito bom -, eu diria que não há início de caminho, há retomada do caminho de nobres patifes. Pelo menos comigo foi assim.
         Frequentei os mais loucos e diabólicos espíritos – na filosofia, literatura, música, jardinagem, etc. – porque desconfiei que era ali que poderia encontrar alguma coisa de verdade. O resto era uma enganação insuportável.
         Foram anos tentando entender o que as noites em silêncio na companhia de todo tipo de desgraçado poderia me revelar. As pessoas raramente me disseram algo de relevante. Jamais me arrependi dos fantasmas pelos quais senti empatia! Colecionei cemitérios com risos debochados até me encontrar.
_Se isso é minha história? E eu tenho tempo para história?
         Ande em silêncio por três noites seguidas e pensará muitas vezes (até a vertigem) antes de proferir qualquer palavra. Tente, por anos, riscar com uma caneta preta seus sentimentos em uma folha e terá convulsões quando for obrigado a escrever seu nome. Ame quatro ou cinco mulheres até enlouquecer e saberá do que se trata essa vida. A única coisa que muda é o preço da cerveja e os caminhos do fracasso. Pois é.
         Na periferia da espécie vagam os tipos marginais – não é? Perguntem para Cioran e Nietzsche. Mas os confirmados mesmo são os do exílio voluntário! Aqueles que foram expulsos antes da escolha só entendem de vingança. Claro que rendem umas risadas, mas rir não é o melhor remédio.
         O que vou dizer é que quando menos esperei estava no caminho dos nobres patifes. Sabe aqueles que riem da sua cara sem motivo aparente? Essas coisas não se ensinam e, paradoxalmente, se aprende com muita perseverança. Nobres patifes estão anos luz da pedagogia, porém deixam rastros. Fui – quem sabe ainda seja - o mais solitário e enlouquecido dos cães, nem preciso dizer que farejei as pegadas. Agora estou aqui.
         Você tem que entender – pela última vez – que até encontrar o rastro o que apaga são as possibilidades de retroceder. Nesses casos você só acerta se passar por sua cabeça que escrevi essa frase para mim mesmo! O chão apodreceu embaixo de meus calcanhares e o próximo passo é sempre sob a sombra de meu ego – a luz do sol ficou lá atrás.
         A metáfora do “caminho” é uma das mais antigas no imaginário da humanidade. Imagem imbatível para os que temem estar perdidos, ou seja, todo mundo. (Daí que sei esse segredinho que escapou para Rimbaud). Depois de seguir o rastro dos nobres patifes eu soube me perder completamente! Agora aqui estou.
         Já aprendi a esquecer tudo que deixei para trás. Estúpido em minha inteligência, criativo na crueldade, mais arrogante que um bom argentino, mostro os dentes por qualquer coisa e sou o novo patife inventando minha nobreza.
         Há tipos que não vencem, mas sua derrota é maior que qualquer vitória.
_Confie em mim garota, segure minha mão essa noite!
         Tudo explode porque tudo tem seu estopim. Que não reste nada exceto o rastro – já que este é inevitável. Agora aqui estou, sinceramente, foda-se quem cair nesta armadilha.
         É inútil me perguntar se isso tudo valeu a pena e quem tentar conhecerá minha gargalhada mais oculta. Pelo menos cruzei a linha e já conheço os dois lados (como se existisse dicotomia). Eu realmente acho ridículo quem nunca farejou essa pista.
         O resto? Apenas dispenso!

r.A.


p.s. Se não entendeu do que estou falando, considere a possibilidade de fazer uma torta de bolacha e ser feliz. (risos). 

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Cheguei ao cúmulo da rebeldia


Ao som de Start wearing purple – Gogol Bordello
(Pois combina comigo)


         Será que imito as coisas inanimadas que utilizo?
Falo isso encarando minha botina favorita. Além de estar coberta de aranhões no seu couro, percebo que, vai descolar nos cantos. Antes que eu me esqueça: simpatizo com coisas arranhadas e descoladas.
 Li um artigo sobre física quântica onde certo fulano argumentava que é errado falar “objetos inanimados”, uma vez que, há movimentos complexos e reações múltiplas até mesmo em uma pedra. Banana para o certo fulano, não vou mudar a primeira frase do meu texto.
         Segundo uma grande especialista no assunto (mamãe) não vale a pena eu procurar um sapateiro para remendar minha botina. Melhor seria comprar uma nova. Não vou dizer:_ Banana para a senhora! Meu repertório de xingamentos vai só até a ciência.
A botina vai ficar e pronto. Duvida?
         Uma anedota. “O cúmulo da rebeldia é morar sozinho e fugir de casa”. Agora percebo que nem nisso obtive uma vitória. Até a fuga me cansou e terminei minha cruzada pelos bares da cidade – bem aqui!
         Uma das coisas que confessei para um senhor bigodudo foi que perdi meu coração em uma rinha de galo. Já apostei alto nessa vida, sabe? (quem disse que parei?). Não contente com a confissão aproveitei para acrescentar um conselho para o bigodudo.
_Na dúvida aposte no mais pesado e não no mais bonito!
_Isso vale para mulheres? – sussurrou pensativo com seu copo.
Olhei para a aliança de ouro em um de seus dedos gorduchos.
_Não vale, não.
Ganhei um pacote de salgadinhos de cebola por essa sabedoria. Tenho testemunhas sobre o fato! Não foi? ein Shirley?
         Aproveito para informar esse senhor bigodudo (não lembro o nome, mas sei o caminho para o bar que ele frequenta) que seguirei sua dica de experimentar a cachaça da Cantareira.
         Enquanto estava em minha fuga alucinada e com minha botina (quase) descolada, uma evangélica depressiva tentou salvar minha alma - praça Roosevelt.
 O que não contaram sobre mim para aquela loira é que se um dia perdi meu coração em uma rinha de galo, outra noite, aluguei minha alma para comprar um violão de blues. Devolveram minha alma tão estragada – descolada – que parei de usá-la. O violão ainda uso. Dai que foi um bom negócio, apesar de tudo.
Quando for ao sapateiro perguntarei se tem como remendar a alma junto da botina. Quem sabe costurar o couro da botina com a alma. Veremos...
         Além de fugir de casa, apesar de morar sozinho; fui informado, por uma saltadora de catracas de metrô, que não era certo alguém querer se desfazer de sua “vida interior”. Para essa aí, o que não contaram é sobre a situação de minha alma. Veja só.
         O gênero masculino está dividido, lá no topo, entre Homens e Cães negros cheios de sede ao cair da noite. Homens mentem e Cães negros desafiam. Não sei direito em que grupo me encaixo, mas a grande dica é que estou sempre morrendo de sede.
         Minha botina descolada, minha fuga fracassada,  meu coração perdido em rinha de galo, minha alma inutilizável, minha sede de morte... atrás da máscara um escudo e atrás do escudo um casal de pistolas.
         Será que as coisas inanimadas que utilizo me imitam? Elimino contradições com o tesão por ambiguidades!

          
         “Todo seu bom-senso e juízo desaparecerão, eu prometo, é só uma questão de tempo”.





r.A. 

sábado, 5 de setembro de 2015

Diga bom dia para o sol & agradeça pela vida

     

      Tristes ruas de São Paulo. Abro caminho na noite fria. Acreditem: saio do bar acompanhado, mas acordo sozinho pela manhã. Essas coisas me fazem pensar na vida que encomendei para mim e chegou quando já não lembrava mais. O correio dos distraídos, cara.
         Uma garota – um pouco perdida; sempre tem dessas por aí – insistiu em perguntar quem eu era, tive que rir. Não dela, não sou tão malvado assim – embora sei da existência de multidões na oposição deste diagnóstico. Tive que rir de mim.  Que perguntasse isso alguns anos atrás (talvez seis) e obteria uma resposta mais precisa. Ontem restaram apenas desconfianças e divagações.
         Ruas tristes já não me comovem mais. Ruas alegres, tipos como eu, não sabem onde se encontram e se soubessem, seriam banidos de lá.
         Logo que entrei no “mundo adulto”, você sabe como é: o mundo das contas, compromissos e tagarelas animais que não se compreendem mais; logo que entrei nesse mundo, conheci um medo.
_Medo que somente os bonzinhos tivessem sua chance!
Lá vai uma observação: não é que não pertença aos “bonzinhos”, nada disso; é que pertenço ao catálogo dos sem jeito.
         Um tempão se passou e percebi que era bem pior do que imaginava. Está todo mundo fodido e sorridente.
As prestações auxiliaram meus companheiros na construção de um cotidiano respeitável – respeitável para eles, não para mim. Monótonos fins de semana e memoráveis férias na praia ou fora do país. Qualquer coisa de sexo no piloto automático e assistir os filhos crescer (enquanto se ganha uns cabelos brancos de brinde).
_Um dia a gente morre por causa de tudo isso! Se tiver sorte.
(Porra, eu ri. Não era para rir de coisa séria.)
         Tristes ruas de São Paulo? Uma rua não fica triste, cara! [acabei de foder com meu lindo texto... ai ai ]. Podem anotar em seus caderninhos. “A gente só desespera consigo mesmo, não com o mundo”. Essa frase de Kierkegaard deveria ser tatuada no braço de todas e todos os psicólogos – motoqueiros ou não. Mas pensando bem, essa frase acabaria com qualquer sessão de análise.
_Fale-me de você.
_...percorri ruas tristes porque as alegres estavam interditadas!
_Já experimentou ler Soren?
_É mesmo!!!!! Valeu! Até nunca mais!
(Rindo de novo; tô ficando viciado em mostrar os dentes.)
         Agora que chegou a encomenda preciso rasgar o pacote com os dentes, e, tomar todo cuidado para não estragar a mercadoria. (Espero que o “e” que coloquei entre vírgulas agora, esteja errado gramaticalmente – achei ele muito solitário ali).
         Li – tenho essa mania incorrigível – que a Esperança pode ser o pior veneno para uma pessoa. Ela faz insistir no improvável paraíso.
 Mas de qualquer forma, agora tenho que ir. Preciso ver se dá tempo de dizer bom dia para o sol e agradecer pela vida.
_Mas eu sempre me atraso... Não esperem por mim.



r.A.

sábado, 11 de julho de 2015

Da minha calma que se confunde com gentileza


"Ela mostrou todos os erros e enganos
e disse:_ Perdi o controle de novo.
Porém, expressou-se de várias maneiras diferentes
Até que perdesse o controle de novo.
E caminhou sobre o fio da navalha do desengano
E riu:_Perdi o controle de novo."

Joy Division: She's lost control


Isto que se parece – vagamente - comigo olha da sacada do apartamento. É bem no meio da madrugada. Chuva e um pouco de frio. Algumas noites de insônia..., depois, os pensamentos (fantasmas enlouquecidos paridos de sentimentos) ficam calmos. Ou: acostumaram-se na tempestade.
Se você olhasse nos meus olhos agora veria veias saltadas. É o sangue que quer cruzar pelas janelas da alma. Acredita?
E como de costume, isso que se parece comigo, ouviu mais do que falou. Quando falou, desviou o olhar. Porque é fácil se perder quando se tem olhos que não refletem; basicamente mordem.
E eu mordo com os olhos e penduro enfeites no vácuo.
Rimbaud escreveu “Eu sou Outro” e Melville, na boca do escriturário Bartleby, colocou a frase “Prefiro Não”. Só posso estar diante de outro se ele deixar em paz a minha solidão. Não sou Rimbaud, nem Melville, nem eu, nem outro, nem Nada.
Você já parou para pensar que as pessoas gastam muito tempo de suas vidas respondendo-se sobre o que são? Mentindo, quero dizer. Nem todos mentem bem e por isso apenas uns poucos criam mentiras que não me fazem bocejar. E dai que desvela-se essa tragicomédia nesse animal “que-já-não-pode-mais-ser”. Esse gorila que perdeu os pelos e exagera sua importância, segundo E.M.Cioran.
Outra coisa que acho importante deixar registrado aqui: É muito fácil eu ficar pulando de autor em autor, sem dizer o que penso. Dado que não fiz mais do que deixar meus olhos passearem mordendo as coisas por aí, minha desculpa foi ler uma porção razoável de cadáveres insepultos. Nisso, não fico para trás da humanidade, cujos deuses jamais foram abandonados para apodrecer até a decomposição plena. Fedor divino.
Humanidade... não fomos devidamente apresentados e agora está um pouco tarde: Já nem menosprezo o que abandono.
Isso que se parece comigo pensa sem querer e sente porque tem que sentir até doer – e só dói mesmo quando a gente ri. Esse monte de carne, ossos, músculos, sangue, gordura, pelos e pele, que sente sempre e adestra sons para tentar dar sentido para tudo o que sente; tapa abismos com sopros.
E uma criatura, numa noite dessas, me disse que existe beleza nos detalhes. Pensei comigo:_ terror, feiura e dor; também. Não só nos detalhes, mas na beleza. Sei que a beleza é amarga.
Um monte de tempo se passou enquanto “isso” estava lá, na sacada, com os olhos mordendo o próprio coração. E se foram noites, momentos de intensidade, paixões aniquiladoras, amigos, e cada segundo que avança é um segundo a menos.
Nisso, minha calma.



r.A. 


sexta-feira, 26 de junho de 2015

É sempre tarde

(O Desenho para esse conto foi especialmente produzido pelo Artista Emerson Ferreira da Silva) *


“Tudo está nas mãos de um homem e ele o deixa escapar por covardia”.
Dostoiévski – Crime e Castigo.

Em trinta anos só fui abandonado para morrer duas vezes. Uma vez foi num hospital; esqueceram meu corpo adoecido numa maca em um porão escuro e frio. A outra foi na praia onde alguns colegas pensaram que eu estava fingindo que me afogava. Nas duas vezes dei um jeito de escapar. O que quero dizer é que com essa vez contabilizo três vezes que fui deixado pra sorte. Agora tem a ver com uma mulher e cá entre nós, prefiro as duas vezes anteriores.
         Alana me mandou ir ver se ela estava na esquina e eu fui, já que aprendi a nadar no mar e meu plano de saúde não estava atrasado. Quando voltei pra casa só tinha um bilhete em cima da mesa da sala. Me mandava ir para o inferno – e não é que estou nele?
Pelo menos no inferno tem vodca.

***
         Antes de abraçar o satanás a gente sempre pensa que tudo vai bem. E eu atravessei meu corpo gordo por uma porta e entrei em uma sala com outras trinta pessoas em silêncio. Escrevi meu nome na lousa com giz, abri minha pasta de couro sob a mesa e retirei dois livros e umas anotações. Ninguém disse nada. Ainda bem, porque minha cara coçava por ter feito a barba pela manhã e ter perdido o ônibus para o curso de produção literária que tinha de ministrar me deixou mais irritado do que vespa.
_Alguém tem algo a dizer? – perguntei tirando os óculos escuros. A claridade da sala fez minha cabeça latejar. Ressaca.
_Sim. O senhor está atrasado! – rosnou uma jovem no meio da sala.
         Algumas pessoas seguraram o riso e eu segurei um “foda-se” que pedia passagem na minha garganta. Fitei os peitões dela e isso irritou um pouco mais, ai eu sorri diabolicamente.
_Alguma outra observação óbvia? – disparei pra turma.  
_Você só passa esses exercícios malucos para a gente e não fala de produzir literatura... – os peitões ainda rosnando feito um motor de opala.
_As coisas não são simples assim, moça. – bocejei. Ela bufou e virou os olhos, eram olhos verdes. Eu continuei – mas hoje a gente vai escrever um pouco... – ela bufou novamente e eu continuei falando, fingindo não lhe prestar atenção – vamos produzir literatura ou alguma coisa que lembre vagamente isso. Que Deus nos ajude.
         Tinha que enrolar aqueles chatos por três horas. O pior é que teria que corrigir trinta narrativas curtas. Ninguém levava jeito nem se quer para uma redação publicitária ou um artigo jornalístico – o que é gravíssimo para quem sonha em ser escritor. Mas o sonho deles era necessário para pagar meu aluguel e a conta no bar. Refletindo sobre isso dei um jeito de mudar meu humor e meu ceticismo.
_Deem o melhor de si, pessoal. Acredito em vocês, serão bons escritores! – menti com convicção. Até dei um tapinha na mesa. E o peitão rosnou pela terceira vez.
         Escrevi na lousa algumas coordenadas para a frescura toda. Vai que alguém da direção entra na sala e comprova que não estou fazendo o que não estou fazendo, de fato. Seguro morreu de velho. Ninguém passou do mediano em exercícios básicos e isso não me surpreendeu.
         Se mataram escrevendo e eu saí duas vezes para fumar. A terceira vez que saí foi para pegar um café na secretaria. Foi uma torração de saco que só vendo. “Posso ser pornográfico, professor?” – manda ver, cara. “Posso falar da minha mãe?” – Deve, garota. Deve! “E se eu usar o estilo do Bukowski?” – Melhor não, rapaz. Deixe os deuses em paz. Com religião não se brinca. “Pode ler esse parágrafo que escrevi, professor?” – Escreve aí que eu leio depois. Acredite em si mesmo! – achei engraçado o que eu disse e disfarcei uma risada com um acesso de tosse.
         Depois de se passarem duas horas e meia, recolhi os textos. Dois não haviam terminado – galera do fundão; simpatizo.
_Um conto é uma narrativa estruturada e tem inicio meio e fim. Mas não precisa ser necessariamente nessa ordem. O começo pode ser o final, mas o grosso da coisa, o miolo, não pode ser o final e nem o inicio. Fica chato se fizerem assim.
_Por que não falou isso antes? – reclamou um carequinha.
_Porque ninguém perguntou, ora – devolvi.
         Foram entregando seus contos enquanto eu falava alguma bosta sobre escrever em primeira e terceira pessoa. De qualquer forma todo mundo entregou e eu guardei suas coisas na minha pasta. Todo um cuidado teatral com suas folhas suadas. O bar, cara, você sabe, estou devendo lá. Com essas coisas sérias não dá para vacilar.
         Foi aí que dei a aula por encerrada e lá se foram os jovens promissores – e duas senhoras que devem ter cansado de fazer tricô. Joguei os livros e as anotações na pasta. Mas a xarope mestre, com seus olhos verdes e tudo mais, se aproximou. Agora pude notar os detalhes da sua voz grave e seus 1, 72 m., com seus cabelos verdes cortados na altura das orelhas.
_Eu li suas coisas, Adriano. – jeito desdenhoso.
_Pois é. – resmunguei.
_E eu vou escrever muito melhor do que você! – sentenciou.
_Não é difícil – sorri.
_Você só deve ser um fracassado para estar ministrando cursos por aí – acusou.
_Concordo com você. Mas agora tenho mais o que fazer, se é que você se importa. – falei e lhe apertei a mão.
         Saiu fungando e pateando o chão. Que que esses diabos querem de mim?

***
Há tempo para mudar o que se é, mas esse tempo já passou para mim. Estava tentando pagar uma multa por atraso de livro na biblioteca e enquanto aguardava na fila cheguei a essa conclusão óbvia. Esse cara negro e com os olhos vermelhos – três dias sem fechar os olhos -, sou eu. A questão é que estava retirando mais livros porque não tinha dinheiro para comprar e acabou que recebi tantas multas que poderia ter dado inicio numa biblioteca. Quando a gente se fode é que começa a procurar respostas enquanto se amaldiçoa a própria vida. Foi em Nietzsche que aprendi que amaldiçoar qualquer coisa é uma espécie de anestésico para o sofrimento.
_O senhor deve... – começou a velha de óculos atrás do computador.
_Eu sei o quanto devo. Tai o dinheiro. – alcancei o dinheiro junto com os livros.
         Ela respirou fundo, como se eu tivesse sido muito grosseiro e tivesse ofendido sua honra e merecesse levar um tiro de espingarda bem no meio da carona de búfalo. A velha digitou umas coisas no computador, contou o dinheiro com atenção, imprimiu um comprovante e resmungou “próximo”.
         Peguei meu comprovante e saí me odiando pelos corredores, por uma rampinha, até chegar na porta. Minha mãe falava “você não esquece a cabeça nos lugares porque está grudada no seu pescoço”. Verdade mesmo você só encontra nas mães, nos livros não.
         Desci a escadaria da biblioteca e havia um bar bem na frente. Adivinhe o que foi que eu fiz.

***
         Juarez é magro e baixinho, cabelos pretos e olhos de cachorro na espreita de algo. Cursa letras na mesma universidade que eu e outra de suas características é que não fuma maconha – come com farinha. Sempre que o encontro por aí espero dois minutos antes de começar uma conversa.
_Odeio quando você fica me analisando em silêncio – urra gesticulando com as mãos.
_Há males que vem para o bem, cara. – dou um sorriso.
_Você é um bêbado desgraçado e eu não te julgo, Adriano. – Devolve ele.
_Julgue, Juarez. Se isso fizer bem para sua vingança vale a pena ser feito. – acendo um cigarro.
_Não estou chapado! – diz alto.
         O dono do bar, gordinho e de cabelos brancos, que passava perto da nossa mesa na calçada, começa a rir. “O de sempre?” – sussurra.
_Sim, ele tá chapado. – comento.
_O de sempre para você, quero dizer. – ri o dono do bar.
_Claro! Não vê? O Adriano é um pé de cana que se acha no direito de julgar a vida dos outros. – fala Juarez, raivoso, e dá um tapa na mesa.
_Sim. Mas apenas um copo, o senhor sabe que maconheiro passa mal quando mistura com cerveja a sua bosta de cavalo. – aviso o dono do bar. Ele da uma gargalhada e coça a barriga.
_Dois copos! – resmunga Juarez. – não estou chapado, já disse.
_Ok, dois copos. Se ele desmaiar eu o arrasto pelas pernas até o latão de entulhos da esquina. Fica tranquilo. – digo.
_Cara, eu me arrependo todos os dias de ser seu amigo – diz Juarez enquanto o dono do bar vai buscar a cerveja.
_Melhor você pegar uma senha e entrar na fila, Juarez. Sempre foi assim comigo – começo a rir.
_Não duvido! – diz ele.

***
         Acordo numa casa estranha. Estrelinhas fluorescentes no teto. Tem uma loira de costas para mim numa cama. Levanto as cobertas e estamos nus. Ela resmunga, mas não acorda. Faço um esforço tremendo para sair da cama em silêncio. Cato minhas roupas que estão espalhadas por todo o quarto. Afasto seus cabelos do seu rosto para dar uma olhada na sua face. É feia, mas eu já chamei coisa bem pior de meu amor. Duvido que ela não pensou o mesmo.
         Abro a porta do quarto e encontro um banheiro no fim do corredor. Jogo água no rosto e escovo os dentes com pasta e o dedo indicador. Tem quatro camisinhas no lixeiro – alguém se divertiu e não lembra da diversão.
         Tranco a porta da frente da casa e jogo a chave por baixo. Pulo uma cerca de um metro e meio, saio na rua deserta. Que raios de lugar é esse?, sussurro. Sigo andando.
Peço, numa barraquinha de pastel, se existe um metrô por perto. Um cara aponta com o dedo para uma direção. Não entendo o que ele diz, mas sigo a direção. Encontro o metrô e analiso o mapa fixado na estação. Estou do outro lado da cidade! Puxa vida, numa madrugada dessas vou acordar sem um rim, reflito.
 
***
         Vejamos o que é um bom jogo: bom é um jogo que lhe dá tempo e bons jogos são aqueles que não falamos sobre. Tirei a semana de folga sem comunicar ninguém – um dinheiro de um concurso, nada mais. É importante um bocado de desleixo para com os compromissos na vida de um homem. Tenho pena de quem leva isso tudo muito a sério. Melhor, não tenho tanta pena assim porque nem ocupo minha mente com gente séria. Fiquei em casa e bebi e fumei e escrevi. E estamos lhe enviando esse e-mail, prezado Professor, porque não atendeu mais o telefone e o substituímos por outro. E passe na instituição para pegar o seu pagamento. “Estava doente?” – perguntou a secretária. O dono da tal instituição não queria nem ver minha cara. Empatamos, não queria ver a cara dele nem na privada enquanto mijava.
_Sim, estava doentíssimo! – Respondi, rindo.
         Eu estou doente faz tempo. Desconfio que nasci doente pra caralho. Doente de gente, de compromissos, do mundo. Não aguento mais nem meio segundo. Tudo me vence por W.O. Comigo é ausência confirmada. Nem me retiro já que nem vou.
         Peguei minha grana, paguei minhas contas e comprei o suficiente para comer por quinze dias. O resto é futuro. Dos dinossauros eu sou dos que jogam o rabo para frente para melhor se equilibrar.

***
         E daí que me fodi de novo. Acostumei com a coisa. Não é que goste é que sei do que é necessário – no meu caso específico. Trabalhei de garçom quando a água bateu na bunda. “Você com dois diplomas e tudo mais?” – perguntou um colega. Pois é.
         Mudei para um apartamento menor e numa região mais proletária. E apareceu um cara com uma camiseta do Chê Guevara. Sempre tem desses, você sabe.
_Camarada, você tem que lutar por seus direitos! – Resmungava ele, coçando a barbicha suja.
_Sim, sim. Agora vá para lá. – acenei com a mão para o outro lado da lanchonete.
_Você tem que fazer parte do sindicado! – disse ele e me cutucou no peito.
_ é , né? Eu tenho...  – resmunguei.
_Claro que sim, camarada! Nós lutaremos juntos! – relinchou ele.
_Sim, sim, lutaremos sempre juntos. Os fodidos de todos os tamanhos e espécies. – Devolvi.
_É esse o espírito, camarada – disse ele.
_E não seremos manobrados por ideologia política alguma, e nos engajaremos pela última vez. Porque daqui para frente tudo irá mudar. – sorri.
_Exatamente. Tudo é resultado de uma luta. E tudo foi conquistado por luta pós luta. E se você está na situação que está hoje é porque lutaram por você e você dará sequência nessa luta.
_E eu sou o que sou hoje por causa da luta e etc., isso? – perguntei.
_Exatamente! Se não fosse isso a coisa estaria bem pior para você, meu camarada amado! – bateu no peito, bem no nariz da sua estampa.
_É a mesma coisa que a igreja diz... – sussurrei.
_Mas não é a mesma coisa. A gente é confirmado, camarada! – devolveu coçando a barba suja.
_Cara, vai cagar e me deixa em paz! – falei.
_Então você é de direita! Eu sabia. Você é de direita. Você é de direita. De direita, meu Deus do céu, você é de direita! – relinchou feito um burro raivoso.
_Se faz bem para seu ego, eu devo ser... – resmunguei – mas saí daqui que você me enche o saco, muito. – disse.
_VOCÊ É DE DIREITA – gritou.
_É cara, deve ser. Não enche o saco, porra. – Devolvi. Só queria que ele parasse de cuspir em mim e bater no peito feito um gorila.
         Juro que ele ajoelhou e rezou uma prece para seu sindicato. Talvez outra prece para o partido. Fez um sinal da cruz e chorou com os dedos da mão entrelaçados. Enquanto isso eu servi uma porção de batatas e uma pizza bem ruim. Deve significar muita coisa para sua existência, pensei. Todo mundo tem que professar sua fé em alguma coisa, concluí. Improvável que se obtenha o que se pensa que mereça, mas vai saber. Não me dirigiu a palavra pelo restante do mês em que trabalhamos juntos.
Melhor, né?

***
         Encontro Juarez novamente, desta vez na igreja. Brincadeira - foi no bar mesmo. E ele me diz que viu Alana na semana passada. Fico em silêncio. “Não precisa me avaliar, Adriano “ – ele ri – “desta vez eu estou chapado”.
_Não é isso cara. É que nem lembrava dessa desgraça.
_Acho que é ela que não se lembra de você. Estava feliz da vida de mãos dadas com outro cara. Não colocando em risco nossa amizade, mas o cara parecia bem melhor do que você. – sorriu.
_Sem ressentimentos. – falei.  
_Mentiroso. Tá todo magoado aí que dá gosto de ver. Bem feito. – pegou um cigarro do meu maço que estava sob a mesa.
_Você nem está chapado, nada. – falei.
_Tô sim. – devolveu soltando uma baforada de nicotina na minha cara.
_Nem tá.
_Não mude de assunto! Não vou deixar você escapar dessa. Guardei essa informação uma semana inteirinha para ter o prazer de lhe contar. Agora o cabelo dela está azul, ficou bem melhor do que o verde. Ela também não escreve mais, viu que é coisa de miserável. Está tocando baixo em uma banda de rock. Tá mandando bem.
_Bem, mas pelo menos a fila andou para mim também... – peguei um cigarro também.
_Andou porra nenhuma! – gargalhou – além de ter levado para casa a mina mais feia do bar ela espalhou para todo mundo que você é um brocha! E é tão brocha que fugiu antes de amanhecer.
_Me arrependo todos os dias por ser seu amigo. – resmunguei.
_Pega a senha! – gargalhou.

***
         Dei por falta do Chê Guevara no bar, pois estava movimentada a noite. Perguntei para uma cozinheira se o revolucionário tinha dado no pé. Ela enxugou o suor no avental e riu. Fez uma cara de velha safada que estava louca para uma fofoca. “Nada disso. Você não soube? O vereador que seu amigo estava apoiando se elegeu e arrumou um empreguinho para ele num sindicato. Agora ele não faz mais parte da classe dos fodidos, como nós”.
_Que bom que o mundo tem dessas coisas. – falei.
_O mundo tem de tudo, garoto. – devolveu ela, filosoficamente.
_Vamos fumar um cigarro nos fundos? – fiz o convite.
_Não deveríamos, mas vamos lá. – sorriu ela.
         Jogou o avental numa cadeira e saímos pela porta da cozinha. Alguém gritou meu nome e eu fiz que não ouvi.

***
         A morte tocava sua música na sala do meu apartamento. Mas isso não significa que chegou minha hora. Fiz umas apostas erradas, porém foram apenas falta de talento para decifrar tais melodias. O jogo é saber dançar apesar de tudo. Quanto a mim, dancei mais um pouco, riscando até doer – linha após linha. E as noites me ajudaram suportar os dias até que consegui um resultado satisfatório.  E chegou pelo correio aquela carta que esperava: É com imensa satisfação, Adriano Maranello Jr., que lhe comunicamos que seu conto recebeu o primeiro lugar no nosso concurso.
         Meti Alana naquela história desesperada. Daquela vez que lambi o chão cinzento do inferno. E Maristela não era uma loira feia que dizia por aí que eu era brocha. Aliás; era uma princesa polaca que arrancava com as unhas o seu coração do peito e lançava na minha cara – com sangue e tudo. Menti tanto e de maneira tão graciosa, que de fato, merecia os vinte mil. Me senti plenamente vingado com minhas mentiras. Mas eram mentiras e eu sabia que eram. E, imagine só, teve vinho importado e publicação de luxo. Entrevistas em revistas literárias (que engolem qualquer lorota):_ Produziu uma verdadeira obra de arte, Adriano. “Sim, tenho consciência disso. Produzi. Em nome de todos aqueles que não se entregaram para todas mazelas políticas do nosso tempo”. Mostrei os dentes para o mundo feito um tigre e um lobo. Só que me senti um mico. Um pouco menos do que os cagados que vejo por aí copiando outros escritores – e há tantos!
Pelo menos no inferno tem vinho bom também.

***
         Em trinta anos, no fundo, fui apenas eu que me abandonei para morrer. Correndo a favor do tempo – não contra. Novamente dando curso de literatura e remando na maré das contas. Cheguei atrasado e entre tantos lá estava Alana, anotando o que dizia, no seu caderninho.
         Falei qualquer bosta e levaram a sério. Escrever tem a ver com o que se sente, com o que se vive, com o que lhe mata – principalmente com o que lhe mata, pode anotar!. O resto é não literatura. O que não é perigoso não vale a pena ser escrito. Você acha que eu conto isso por aí? Acertou, não conto.
         Daí que dei a aula por encerrada depois de horas de embromação. E Alana veio com seus peitões – dessa vez tímidos – perguntar qualquer coisa.
         “Você me deu o inferno para calcular lajota por lajota e eu fiz isso porque merecia conhecer cada detalhe de minha danação; fiz isso e mudei, meu amor, mudei, até meu sangue mudou de cor e espessura. Nunca mais serei o mesmo por ter sido deixado para morrer pela terceira vez! Tudo aqui é ressentimento e beber o sangue que escorreu da língua, gargarejar e fazer bochecho com o próprio veneno” – Foi o que não disse. O que disse? Você quer saber?
_Vamos lá para casa, hoje? – perguntei.
_Sim, vamos. Mas não posso ficar até tarde! – sorriu.
É sempre tarde.
É sempre tarde.




r.A. 


*Outros trabalhos do Artista Emerson Ferreira da Silva, que ilustra este conto, podem sem encontrados em :

http://billyilustrar.blogspot.com.br/

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Péssimas influências e chega de Dostoi-Yeah!-vski



         Estava no táxi. Pensando na minha vida e fazendo “aham” para as observações de Zé não-sei-o-que. Exceto pela possibilidade de alguma mulher ter feito bruxaria para mim, não sei como justificar que cheguei ao fundo do poço – e continuo afundando. “Eu sou ateu, essas coisas só pegam em quem acredita”, justifico para meu pensamento. Não se fazem mais espíritos do mal como antigamente. Cadê a honestidade de seguir as regras? Cadê a beleza dos duelos ao pôr do sol?
         Sofri péssimas influências minha vida toda. Todos – sem exceção – me obrigaram a suportar. Suportei todo tipo de merda e todo tipo de filho da puta, esses anos todos. Não dei nem um pio. Sinto inveja do meu pai, que nunca precisou de razão para mandar alguém tomar no cu. Mas ele também foi uma péssima influência para mim: faça o que digo, mas não faça o que eu faço.
_E tome no cu, também.
O inconveniente de ser obediente.
         Quero reclamar do seguinte. Eu sei – infelizmente – que não vou mudar. Vou continuar fiel para com todas as péssimas influências que sofri. Já não posso mais ler Memórias do subsolo (Dostoi –Yeah! -vski) sem sentir profunda empatia pelo narrador idiota. E meu destino, imagino, será o mesmo de Gregor Samsa (A metamorfose – Kafka). Vou acabar na janela. Será assim. As ciganas acenam positivamente.
         Achava que iria produzir literatura. Juro. Me preparava para escrever com uma enorme qualidade. Sabe o que aconteceu? Me encolhi. Tipo uma cadelona que caiu do caminhão de mudança e agora só sabe rosnar. Nomeei minhas pulgas e meus bernes. É meu principal passatempo nessas noites solitárias e insones.  
         Além de me sentir ridículo, hoje, quero pedir licença para fazer uma Apologia (que eu acho que será breve).
         Enquanto me acabo na janela e as maldições me balançam de um lado para outro (como um João Bobo), tenho comigo que nunca fui vítima. Mas também não fui cúmplice. Tive a decência cavalheiresca de não participar da piora de tudo que me cerca – mas ninguém notou. Ganhei só uns poucos prêmios literários mesmo sem ter publicado nem a orelha de um livro – tem uns por aí que já são renomados e atingiram a imortalidade em vida, sem ter ganhado um concurso de redação na escola: me mijo todo de inveja! Tipo cadelona quando vê o dono.  
         Fui beliscado por dez ciganas radioativas – em pontos estratégicos - e os poderes delas saltaram todos no meu coração peludo. Daí meus dotes proféticos, sacou?
         Veja. Enquanto penso na minha vida e assovio das profundezas de meu poço, suportando, não tenho vergonha. Eu poderia ser pior, e, serei. Deu para suicidar, depois de muitos exercícios, essa procura infindável por tapinhas nas costas. Enquanto uns e outros estão gozando no glamour – vou encerrar a apologia com essa frase -, eu ainda estou aprendendo. Me basta.
_Concorda comigo, Zé não-sei-o-que ?
_O Sr. Vai dar gorjeta pela corrida?
_Talvez...
_Então, talvez eu concorde!
         Sabe quando você percebe que chegou na maturidade e se responsabiliza pelo que faz em arte? Eu também não, mas adivinho.


r.A.


ps. Chega de Dostoi-Yeah!-viski. Mas de Dostoiévski, não.