sábado, 30 de agosto de 2014

O santo no bosque e a morte de Deus



        De quatro em quatro anos* tenho que passar por isso e me chateia. Explico: tenho que passar por essa erupção da massa na confecção de crenças. Como sou dos poucos – até onde sei – que não se deixa arrastar sem dar umas boas pauladas por cima da manada, cá estou, escrevendo. Não deu para viver isolado no mato e por isso tenho que “aturar” a sociedade – mas faço questão de perturbar o máximo possível para devolver dissabores. Dito isso, posso seguir.
         Já escrevi em outro ensaio por esses lados o que penso sobre a política contemporânea. Sem ter uma maneira mais clara para me expressar, cheguei a me manifestar por meio de metáfora: “O Estado é o trono vago do Deus morto e os partidos são os concorrentes para sentar nesse trono.” Se um dia tentarem investigar meus ensaios para captar o núcleo de meu pensamento político-filosófico, sugiro que partam daí. (risos).
         Quem diria que hodiernamente, nesse país chamado Brasil, se falasse tanto em Deus depois de seu falecimento nas idas e vindas da modernidade. O tripé: Nietzsche-Marx-Freud não falava de outra coisa, ou seja, do cadáver de Deus. (Créditos à Schopenhauer, meus amigos chegados nuns alemães). Esse velório ainda vai longe, pelo visto.
         Eu vejo a ausência de Deus nas nossas instituições – agora que a humanidade já matou o tal “ser”. O melhor modelo para atingir as massas é evocar seu bendito nome e seu bendito significado. Onde eu sinto o cheiro de utopia, sinto o cheiro do cadáver de Deus. Você quer ver o que eu vejo? – é capaz de suportar isso? Basta acompanhar qualquer partido político, qualquer campanha política. Ali está, jogado na sua cara, o discurso fúnebre da famigerada morte. A salvação por meio do coletivo, o otimismo elevado à milésima potência, o gozo e êxtase em nome do ideal. “O mundo que construiremos juntos” – isso te soa familiar?
         Gente que quer te prometer o futuro e você, na sua condição desgraçada, professa fé imediatamente! Você pensa: mas eu preciso acreditar em alguma coisa, preciso me apegar a algo... É que te convenceram disso desde que você aprendeu a domesticar seus resmungos e suas lágrimas – Aprendeu isso mediante ameaças, mediante castigos físicos e psicológicos (os que dizem que “a família é seu chão” me despertam imensas desconfianças). Eu te entendo! Você não suportava o terror de ficar sozinho, jogado num universo de acasos, cercado pela angústia de fracassar ou morrer. Não é para Deus que você reza quando constata seu abandono – reflita sobre isso se puder aguentar -, se você acreditasse em Deus teria vergonha de lhe pedir coisas tão mesquinhas, tão pequenas! – Mandar em um Deus, obrigá-lo a suprir suas necessidades, não é um tipo de demanda absurda? Você reza para a ausência de Deus, você implora por menos sofrimento diante da ausência de Deus – de joelhos diante de um trono vazio, você se comove e chora.
 Isso não é inédito na história da humanidade, aliás, é bem comum. Jesus (enquanto metáfora simbólica), quando pensou um pouco, se sentiu abandonado – em seguida lançou mão de seu último truque: a fé. Pediu perdão para a ausência do Pai. Em seguida foi assassinado enquanto salvava sua megalomania. É assim que você faz; você consola suas dores mais vergonhosas com a fantasia de “destino divino”:_ foi assim que Deus quis – você se baba enquanto fala!. Você se tem em tão alta estima, delira em suas fantasias de importância “cósmica”, que não aceita sua Queda. Esse sentimento é a saudade do útero materno e dos primeiros anos de sua infância, quando uma força superior acudia suas necessidades de atenção. Todo ser humano é a saudade de sua significância – no geral.  Só existe salvação humana na ilusão.
É aí, exatamente aí, nessa condição, que todo discurso político te pega e te faz refém. Todo povo miserável, arrebentado e culpando a si mesmo por estar nessa condição, está suscetível, sensível, de coração aberto, desarmado, para qualquer que seja a promessa de redenção. A faísca mais íntima, seu pacto secreto com o medo que tem da morte, toma a forma de ESPERANÇA. Adoça sua esperança sua fuga do tédio cotidiano. Sua saudade de quando era protegido da vida é projetada no futuro – sua sede por vingança de todas as taras insatisfeitas!  
_O nome da ausência de Deus é História.
         Pouco importa se você acredita em Deus ou não. De forma alguma é essa a questão! – se você é um pouquinho inteligente vai perceber que não estou me apoiando em ateísmo para discorrer sobre esse tema no ensaio. A questão é que na ausência de Deus você e suas lágrimas (sofrimentos pessoais) tendem a ocupar o lugar vago. Os mais idiotas ocupam esse lugar com a ciência ou com a história. Não muda muita coisa trocar os nomes se não se altera as intenções!
         Você é o alvo mais fácil do discurso político, pois, se entusiasma por muito pouco. Basta uma pequena lisonja, um pequeno cargo que te mentiram ser importante, basta tomar para si uma singela importância para acalmar suas angústias existenciais. Que alguém finja notar você – na sua miséria -, você já o chama de amigo: Já o toma por Santo. Esta infantilidade mental que te aflige, essa infantilidade que te leva a abraçar todas as causas “boas” não só te domina como te arrasta – uma vez que te encontra completamente disposto para a sedução mais barata. Você é capaz de aceitar qualquer destruição de suas convicções mais pessoais em nome de compor com um grupo, com um discurso, com um ideal de redenção – melhoramento – da humanidade. Toda vez que você hasteia uma bandeira com orgulho aciona correntes invisíveis em torno do próprio pescoço, em torno da própria língua.
         Quando você abre a boca para falar sobre sua própria decisão, dentro de sua voz falam as vozes de todos os que queriam estar submetidos à imagem de um Deus que já se foi - utopia. “Sua” opinião “pessoal” é a mais óbvia e a mais comum. Já que não pode ocupar (pessoalmente) o trono vago de um Deus morto, você aceita conjecturas que mais ou menos atendem aos seus desejos pessoais mais íntimos. Por isso você identifica seu “representante” como o mais VERDADEIRO. É capaz de matar e morrer em nome de sua fé – sua reza mais íntima que obriga tudo e todos a dobrar os joelhos aos seus caprichos, suas taras não admitidas publicamente, seu nojo pelo que denomina “o resto”. Sintoma de seu caráter perverso é a euforia que sente ao desprezar todos que não compactuam com sua seita, sua mania de grandeza, seu desespero ao ouvir um outro – divergente!
_Você é um fanático que não admite, mas sabe no íntimo de seu ser o que é! Em todos os lugares você não encontra mais do que suas verdades, mais do que sua projeção magnifica do mundo perfeito.
         Alvo das pesquisas políticas e de todo marketing, sente orgulho semelhante uma masturbação quando defende um grupo que acha que faz parte. As decisões mais importantes já foram tomadas com portas fechadas e sua opinião não passa de números, não ultrapassa um gráfico generalizante. Você, chorão, não passa de um idiota a mais para uma máquina governamental cujas parcerias são secretas. Tudo já foi decidido e orquestrado diante do seu nariz egoísta, mas revolvedor de suas taras, você deixou escapar.
         Eis o paradoxo! Você foi desviado sutilmente de seus mais íntimos desejos e defende com unhas e dentes algo que não passa nem perto do seu desejo inicial. Chame isso de ideologia – no sentido pejorativo -, mas você só identifica isso nos outros: os outros é que são alienados, você, jamais!
         Decora fechado no quarto os números de seu “representante” e jamais se pergunta sobre a manipulação dos dados. Aceita os dados – como qualquer religioso aceita a revelação de sua verdade, o núcleo de sua seita! Combate os hereges sem piedade e queima todas as bruxas para salvar suas almas pecaminosas.
_Está vedada para você a possibilidade de se ver como um idiota. Você só se vê no espelho como um gênio! E seu partido só pode ser uma espécie de milagre, já que o gênio que você se tornou está absolutamente livre de equívocos.
         Quando percebe erros, você se consola:_ bem, nem tudo é perfeito, mas o que eu defendo é muito próximo do ideal.


r.A.
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Longa nota de rodapé:

         *De quatro em quatro anos tenho que presenciar essa erupção de crenças. E cá entre nós, minha sensibilidade capturou isso de tal maneira, que recebo tudo isso com um riso irônico. Ao mesmo tempo que manifesto minhas gargalhadas diante disso tudo, não deixo de achar tudo isso demasiadamente perigoso – porque é perigoso!
                Conheço a história política deste país – um pouco. (digo “um pouco” para manifestar modéstia intelectual). Depois de acompanhar tantas promessas e absolutamente nada efetivado, manifesto a descrença geral do cidadão comum – na política. Todo “politizado” me vem com falácias tão rapidamente derrubadas, que só posso concluir que os fiéis dessas seitas políticas sofreram lavagem cerebral profunda.
 Pensava, antes, que essa lavagem era culpa dos partidos aos quais se associam. Mas hoje, percebo nesse quesito tão evidente, que só se deixam alienar os desesperados de todo tipo. É bem mais fácil comprar o pacote ideológico de um partido político do que refletir e pensar – por sua própria conta em risco – os dados que nos saltam aos olhos.
                Os problemas gerais de nosso país são tão rapidamente solucionáveis mediante implicação sincera, que todos os discursos que me prometem algo – e fingem complexidade – não são mais levados a sério (particularmente falando).
                Por algum tempo achei que era o povo, em geral, com sua descrença política, a causa do “problema”. Mas vejo hoje que o povo está “certo” em sua manifestação de descrédito com as instituições políticas atuais. Mas de forma alguma me posiciono ao lado desse niilismo geral.  
                Minha posição política é exatamente esta que manifesto aqui – e espero ser bastante clara. É preciso em primeiro lugar abandonar essa pré-disposição para a representação afim de alcançar alguma autonomia de cidadão. Livrar-se desse caciquismo político atual e dessa ingenuidade em relação a esses grupos que polarizam a política. Só depois que nos livrarmos dessa fé (burra) militante é que poderemos voltar a pensar a política de uma maneira efetiva. Até lá, estaremos reféns de seitas utópicas manipuladoras da esperança coletiva. Confesso minha perspectiva política: Não há militância com autonomia no país! Qualquer sujeito com um pingo de inteligência supera legiões de militantes – é o dado mais evidente da “pós-modernidade” (chamem esse contexto como quiserem). Esses programas coletivistas não manifestam mais do que crenças. E enquanto for assim o resultado é fanatismo na certa.
 A “peneira” das reivindicações, sintetizadas em partidos políticos são uma farsa. Todo integrante de partido político sabe disso! A velha prática de eleger delegados para votar em suas causas é evidente. É uma mentira e está na base de todos os partidos. O coletivismo agindo desta forma é uma maquiagem das reivindicações do povo. As plenárias são uma fraude risível. Não passam de cartas marcadas que se degeneram assim que se afunila a representação – os representantes são escolhidos “a priori”. Seguindo essa hierarquia no íntimo da política das representações apenas proliferamos “máfias”. As campanhas espetaculares não passam de circo.

Esses coletivos agindo dessa forma não representam mais do que conchavamos – no fundo empresariais. Nenhum partido atual escapa desta prática que acabei de denunciar. Fazer resistência a isso e pensar a política de outra forma é a única posição ética possível. Fora disso é resmungo. 

domingo, 24 de agosto de 2014

Como se não bastassem todos meus defeitos

      


      O importante é desistir lentamente porque o problema é que não há problema algum – a gente que é dramático. O tempo não é remédio para nada. Criatividade não é solução.
         De orgasmo em orgasmo se escala o amor. Encapamos esse delírio com as melhores palavras que esses resmungos adestrados foram capazes de produzir – vai ver é porque o tesão não suporta uma tarde de domingo. Observar a bunda de alguém se apagando no horizonte, depois o pôr do sol.
         Um escritor não pode se perguntar sobre o sentido da vida, pois se responde a pergunta primeira, é com palavras que se revolve, nunca com a realidade. Essa coisa é suportável – repito –, a gente que é dramático. Jogamos com as palavras, os termos são palavras cruzadas. De oração em oração (subordinadas ou não) atiçamos nosso próprio demônio.
_Sei lá.
         Toda vez que alguém tentou me ensinar o que é importante tive ataque de risos. Não acredito mais que conseguiremos preencher o silêncio para nos salvar... daí que consigo ser feliz quando calado. Só não quero ser salvo do silêncio. Todo dia é domingo. Entre o velório de um e o nascimento de outro é uma choradeira sem fim: apegue-se aos pequenos e belos detalhes da vida. “É importante”. Essas vitrolas, rapaz, me chutam no saco.
_Só me deixem quieto, por favor.
         Me restou escrever, como se não bastassem todos meus defeitos. Enquanto escrevo, vou enfeitando toda minha desistência, colorindo meu abandono – de si. Ambição – jamais vou confessar! Se a questão fosse ser feliz, poderíamos falar em otimismo e pessimismo. Porém, nem dá para ser triste sempre. E o problema é que não há problema algum – a gente que é dramático. Até Freud já li e não mudei de opinião: Sonho é o cocô da consciência. Mas se a gente não caga, apodrece de dentro pra fora. “O mundo é um sonho” – disse Buda. Tai que a diferença de Buda para Bunda é apenas uma consoante. Nunca vi o Buda desaparecendo no horizonte... acho que não queria ver uma coisa dessas. Sou muito apegado com consoantes.
         Tenho uma lei, que para mim, é mais verdadeira do que as leis de Newton. Segundo essa lei, sujeitos que escondem a sujeira embaixo da gramática, não se sujeitaram a nada. Tudo uns bosta! O tempo não me curou e se tenho sido criativo ao longo dos anos em que imitei o silêncio escrevendo, é porque fui bom numa única coisa: Esconder o jogo. Brincar com as regras.
         E pensar que toda vez que encarei a bunda de alguém, sempre me deparei com o horizonte – e foi lá que Rimbaud disse que encontrou a eternidade. Penso que Rimbaud não assimilou direito à lição. Era jovem demais quando desistiu. Eu não sou Outro – a gente é dramático demais.
         Existe vida antes da morte? Várias – e várias mortes também. Os mestres em suicídio não conseguem dar aula inaugural! Como se não bastasse morrer uma única vez, seguimos resistindo. (É que “resistir não é resistir” – me segredou Mirisola; fudeu com minha ingenuidade). De bunda em bunda mentindo o amor. Depois o pôr do sol.

r.A.

Para Flademir Roberto Williges,
Paulo Cesar Padilha,
Marcelo Mirisola – melhoras pra ti.
Rodrigo Inácio.


Fonte da imagem: Blog Fabíola Cidral.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

O importante é você conseguir permanecer na cama até o meio-dia



(ao som de Black Keys – Lonely boy)

Acordei e já passava das 4. Fiquei na cama até as oito e continuo. Para quem começa o dia com indagações metafísicas enquanto encara o teto e termina sozinho de qualquer jeito; tenho durado muito. Acho que poderia ter durado bem menos – sem morrer, é claro! Com isso quero dizer que alguém como eu, com vinte e tantos anos, já deveria ter se entregado para o mundo e batido palmas para o sol feito uma foca retardada.
         Nunca entrei na conversa fiada sobre arte e cultura. E é por isso que sigo resistindo, correndo dos canibais, com o cérebro em uma mão e um machado na outra. O importante é você conseguir permanecer na cama até o meio-dia. “Qual é o seu conselho para os escritores?” – É esse, porra, fiquem na cama! “E para quem vive de arte e cultura?” – Que tomem no cu. “É esse o conselho?” – É, isso mesmo. Mas que tomem no cu não num sentido teatral. Tomem no cu em silêncio, no fundo de um café adornado de livros e discos de alta relevância cultural. Essas coisas que jogam com a náusea, saca? O vômito de várias gerações, regurgitando sem ser engolido... Que tristeza!
         Ainda esses dias vi um grande professor de literatura falando que montou um grupo para recitar poesia para as vacas no potreiro. Putz! Imagino o sono das vacas e a depressão. Tem bicho que paga caro pelo brejo ser raso. Cadê aquele pessoal que luta contra o sofrimento dos animais? Pois bem, lá estava ele com sua careca reluzente e bem polida – sinal de um cérebro em plena ordem! – chocando o coraçãozinho de jovens acadêmicas, cujo sucesso é obter uma graduação com um projeto em Clarice Lispector. O importante é não ter saúde – para mim, pelo menos.
         Já que falamos de Clarice, fico pensando se ela cuspia, engolia ou saia da frente na hora H. Tem cara de ser a última opção. Teríamos que esperar a publicação de alguma pesquisa sobre o fato – quem seria o orientador? O poeta das vacas que citei acima, desconfio que não: a pipa do vovô não sobe mais! Não sei muito sobre Clarice Lispector, vou ser franco. Mas já dei uns tapas na bunda de uma loira que sabia bastante sobre ela – e isso já conta! Não na academia, óbvio. “Marxchista”.
         Como nem só de dar tapas na bunda de loiras se vive a vida – infelizmente -, também me chamou atenção esse lance do romantismo alemão. Aqueles rabugentos que se matavam por causa de mulher e choravam olhando para flores num jardim. No fundo eles queriam mesmo era morrer por qualquer que fosse o motivo e chorar à toa. E isso parece que não foi superado pela galerinha de agora. Abri, ainda ontem, uma dessas revistas que explicam a cena literária do eixo (Rio de Janeiro/São Paulo/BH) e me saltou na cara essa geração chorona e descornada. Essa gente que tem medo de escrever Buceta num conto, sabe?, mas vivem posando de boca suja. O que vai ser daqui uns anos? Tomara que eu (ou “eles”) não dure muito...
          Abro o e-mail e alguém diz “Seu último texto é degradante e ofensivo, que Deus tenha piedade de você!”. Tai a crítica construtiva que me faltava. Antigamente se queimavam os livros, mas agora não dá para queimar os blogs. Me enrolo nas cobertas e desligo o celular. Acendo um cigarro e escrevo esse texto que você está lendo agora. É só um desabafo de alguém que perdeu o sono e não tem nada de interessante para contar.
         Não sei imitar uma foca, mas me destaco no papel de Bicho-preguiça. Veja pelo lado bom, pelo menos parei de escrever. Hoje.



r.A.


P.s. A foto que ilustra o texto não é minha, por mais incrível que pareça a semelhança. As aparências enganam – um pouco.

"A sua mamãe cuidou de ti, mas seu pai te deixou.
Eu devia ter feito o mesmo com você.
Mas acabei te amando, será que nasci para sangrar?
Nenhuma das vezes que você me deixou esperando...esperando".
_Dá música que citei no inicio do Texto.


sexta-feira, 8 de agosto de 2014

A antepenúltima tentação



Voltou um pouco mais gordo, careca no topo da cabeça, com tufos de cabelo castanho nos lados, acima de um par de orelhas de abano. Vestia camisa de botão com bolso na frente. Amarela. Calça social de cor cinza, cinto daqueles que você encontra em lojinhas que revendem produtos do Paraguai. Sapatos confortáveis, imitando couro. Um relógio prova d’água e um sorriso de cafajeste – dentes amarelados por causa do cigarro. A barba bem aparada e os olhos castanhos. Quem o via de longe podia jurar que não passava de um despachante. A pele um pouco enrugada no pescoço e de tom avermelhada. O contraste do pescoço com o rosto, um pouco menos avermelhado, lembrava um peru - as olheiras roxas ajudavam.
A primeira coisa que fez, assim que chegou, foi procurar um banheiro para cagar. Por sorte, providenciaram um pequeno apartamento na Sé. Com uma janela de frente para a catedral na praça. Podia ver as putas e os travestis fazendo ponto na calçada, o movimento nos bares, o som das lojas fechando. Também havia uma livraria na esquina – com uma sessão de livros usados. Correu até o banheiro para evacuar. O banheiro era apertado, com as lajotas da parede um pouco encardidas, mas servia. Da outra vez que ele veio, pelo que o povo comenta, tinha que cagar atrás de cactos no deserto e limpar o cu com areia; então desta vez estava no luxo.  
Cagou. Gostou do prazer de cagar e forçou as tripas com força. A bosta estava mole, os peidos federam tanto quanto o hálito do Diabo. Enxugou o suor da testa com as costas das mãos e olhou em volta. Não havia papel. [Nem areia]. Poderia materializar, com um estalar de dedos, um rolo de papel higiênico. Nada muito abusado, talvez um rolo de trinta metros, aqueles que estão no meio termo entre o liso e o áspero – 2,75 R$. 
_hum... deve ser uma das provações... – resmungou com uma voz um pouco abalofada. 
Meditou por uns minutos olhando para os sapatos. Tirou os sapatos e as meias. Tinha uma unha encravada no dedão. Nada muito grave, por sorte. Envolveu a mão com a meia, como se fosse um fantoche. Achou graça daquilo. Apenas uma meia foi o suficiente. Jogou a meia suja de bosta no vaso. Manteve a outra meia no pé com a unha encravada. Vestiu-se, deu a descarga e lavou as mãos na pia. Jogou água no rosto e saiu.
Tomou uma golada de vinho de uma garrafa que estava no chão da sala escura. Catou o cigarro que estava pela metade no cinzeiro sob a mesa de centro. Acendeu-o novamente. Tirou umas baforadas. “Não é tão ruim assim”, pensou, “na verdade é bem suportável”. Uma barata gorda correu pela sala e se meteu embaixo do sofá.

***

A luz do sol atravessou as cortinas emboloradas do pequeno apartamento e isso o fez despertar resmungando. Sua cabeça latejava. Havia adormecido no sofá. No chão estavam seis garrafas de vinho vazias. Uma pela metade. Seu estômago embrulhou. Tentou chegar até a privada do banheiro, mas não deu tempo. Teve de vomitar na pia. Um pouco de vômito – roxo - saiu pelo nariz. Espremeu pasta de dente na língua, encheu a boca com água da torneira e fez gargarejo. Quase vomitou novamente. Enxugou o rosto com a parte de baixo da camisa e andou cambaleando até a cozinha. Na geladeira ainda havia uma garrafinha de cerveja. Arrancou a tampa e seguiu bebericando. 
_caralho... qual é a missão desta vez?
A barata gorda saiu debaixo da geladeira e ficou parada nos seus pés. 
_foda-se! – resmungou para a barata. – Depois do meio dia eu começo a porra toda. Não enche o saco que te transformo numa loira peituda e te boto para rodar bolsinha na praça.
A baratona torceu as anteninhas de maneira ameaçadora. Ele deu uma gargalhada. 
_Tô para além da moral! Sou eu que estipulo o bem, não adianta argumentar comigo!
Andou com uma mão se escorando na parede e a outra bebericando a cerveja. Seguiu até o fim do corredor e desabou num colchão de casal. Terminou a cerveja contemplando uma mancha no teto e apagou. 
        
                                                      ***         

Acordou melhor desta vez. A primeira coisa que fez foi descer as escadas correndo e entrar em uma lanchonete que funcionava embaixo do prédio onde morava. Nem cumprimentou o atendente e foi direto ao banheiro. Certificou-se se havia papel e cagou outra vez. Na porta do banheiro estava escrito “aqui até o mais forte dos homens geme e o mais macho pisca o cu”. A voz do povo, pensou. 
Entrou na fila do buffet e serviu-se principalmente de carne. Gostou do bife mal passado. Não havia muitas opções. Arroz, feijão, carne boiando num molho grosso e marrom. Na bandeja dos bifes lia-se: no máximo dois por pessoa. Obrigado! Notou uma mosca nadando no azeite da salada.
Acomodou-se na última mesa da pequena lanchonete. Um garçom moreno, longos cabelos encaracolados, correu em sua direção.
_algo para beber? – falou olhando sempre para um caderninho na mão.
_Cerveja. Bem gelada. Garrafa grande. – disse com a boca cheia de carne, ainda mastigando.
O garçom correu até o balcão. Os cabelos não se moviam, pareciam úmidos. Percebeu que o garçom corria porque o chão estava liso – e o garçom gostava de brecar com os pés e deslizar alguns centímetros. Voltou com uma garrafa e um copo. Trazia o copo com o dedão dentro. Tirou um pano do bolso de trás da calça e poliu o copo. Quando ele sacudiu o pano, ele pode sentir aquele cheiro de bunda suada que a calça social provoca. O garçom, animado, serviu a cerveja e anotou no caderninho. Jogou a comanda em cima de uma poça de água sob a mesa. Colocou a caneta atrás da orelha e disse “bom apetite, senhor”. 
_Amém! 
Comeu olhando para a t.v. Passava o noticiário da tarde. Um namorado havia tentado executar a namorada porque ela não o amava mais – segundo dizia o jornalista com ar de indignado apesar do cabelo lambuzado de gel. Ela havia sobrevivido a cinco disparos de 38. “Intervenção divina” – dizia a moça, aos prantos. Não dava para ver o rosto da moça, estava oculto com os cabelos loiros. “Também... o cara não mirou na cabeça!” – resmungou o garçom, com ares de quem era perito no assunto. “Eles não sabem o que fazem” – replicou outro sujeito no caixa. Este, do caixa, ajeitou os óculos num nariz que lembrava uma batata. Resmungou com uma voz aguda em direção ao fundo da lanchonete:_ não é?
Terminou a cerveja e limpou a boca com um guardanapo. Ainda sentia um pouco de cansaço. Mas apesar disso, estava bem. Fortalecido. Satisfeito. Empurrou o prato sujo para o lado e acendeu um cigarro. Nem bem tirou uma baforada e o garçom gritou “NÃO! É PROIBIDO CARA”. Ele se assustou e deixou cair o cigarro no chão. “Se a vigilância nos pega é multa! Fecham o estabelecimento”. 
_Vigilância? 
_É cara, a vigilância sanitária! Temos que manter a higiene aqui nessa porra! – Devolveu o atendente no caixa. 
Ele juntou o cigarro do chão e apagou no prato. O mundo acabando e os caras preocupados com um cigarro - refletiu. Ergueu-se apoiando as mãos na mesa. Quando passava pelo caixa o sujeito de óculos falou:_ E a conta cidadão? 
_puxa, não tenho dinheiro... – resmungou mexendo nos bolsos. 
_Aqui ninguém come de graça, cara! Se você não pagar eu vou ter que chamar a polícia. – o nervosismo deixou a voz do atendente mais aguda, um pouco falha. Parecia uma porta velha rangendo.
_Façamos o seguinte. Quando você pescar um peixe aqui por perto... o dinheiro da conta vai estar na boca do peixe, te juro. 
O sujeito no caixa sorriu para o garçom. “Pode chamar a polícia para esse senhor”. Nessa hora ele meteu a mão no bolso e sacou uma nota de cem. 
_Fique com o troco! – Disse. 
_O caralho! Aqui a gente trabalha certo. – Abriu a registradora e devolveu o troco. – se vier com gracinhas, da próxima vez a gente não te atende.
_Vou te curar desta miopia – falou estendendo as mãos em direção aos olhos do caixa. 
_Sai pra lá! – gritou afastando as mãos dele com um tabefe.- se me tocar te sento a mão na cara, seu tarado!
_Mas é só passar um pouco de saliva... – prosseguiu falando...
_passar saliva no seu cu! SOME DAQUI!
O garçom empurrou o sujeito para fora da lanchonete. Da outra vez foi assim também, pensou. A gente aprende a relevar.
Andou até a praça da Sé. Na verdade era só atravessar a rua. O movimento do período da tarde era semelhante a um formigueiro. Entre a catedral, as bancas de jornais e o chafariz, transitavam centenas de pessoas por minuto. Alguns mendigos com seus cachorros arrastavam-se nas sombras. O lugar era perigoso e com o passar das horas, tornava-se cada vez mais hostil. Ao fim da tarde o lugar adquiria um aspecto terrível. E quando adentrava à noite, todo silêncio dos becos, eram o presságio puro de uma facada nas tripas.
Encontrou uma sombra, no pé de uma estátua, e ali ficou, apenas observando. A estátua de mais de três metros era de um padre jesuíta. Nos seus pés alguns índios - provavelmente sendo salvos.
Um senhor andou até o centro da praça, onde o sol castigava. Virou seu pequeno corpo, metido em um terninho cinza, de frente para a entrada subterrânea do metrô. Retirou uma pequena bíblia com a capa preta de um bolso interno e gritou: ALELUIA IRMÃOS! – com a voz um pouco rasgada, mas bastante potente. Assim que fez isso, algumas pessoas se aproximaram. E o senhor de terninho, com os cabelos brancos e o rosto vermelho por causa do calor, começou a citar trechos desconexos de salmos e passagens bíblicas. 
Na parte inferior da praça, perto de um cruzamento, outro sujeito, desta vez um pouco mais jovem, cabelos castanhos e terninho preto, fez a mesma coisa. Tinha ele um rosto que lembrava um cavalo. Colocou uma caixinha de madeira ao seu lado. As pessoas que passavam, atiravam algumas moedas na caixinha. O sujeito de terno preto agradecia e continuava pregando o evangelho.
Ele cansou de ficar observando aquilo tudo e andou até uma pequena farmácia próxima, sempre pela sombra. Seu suor fedia vinho, evaporava álcool. Ainda se sentia nauseado. “Seria pecado estalar os dedos e fazer passar a ressaca?” – cochichou para si.
Cruzou as portas da farmácia, percebeu um senhor negro e de jaleco branco que respirou fundo. Pôde ler sua mente: “agora um bêbado! Só o que me faltava!”
_Ali colega! – Resmungou – do seu lado direito, dentro da cestinha. Todos esses remédios são para ressaca.
 Pegou alguns.
_Papel higiênico... – disse, ainda grogue. 
_No final desse corredor aí – apontou o sujeito do jaleco.  
Comprou seis rolos de papel higiênico, uns frasquinhos com um líquido preto para ressaca e um desodorante. Pagou e caiu fora. 
Subiu a rua e atravessou a praça. A multidão se aglomerava – ainda! - em torno dos pastores. Do outro lado da rua viu outro sujeito de terno chegando e repetindo o procedimento dos anteriores. Este tinha um chapéu marrom diante de si – e ali depositavam, os curiosos, punhados de moedas. 
Acendeu um cigarro e voltou para seu apartamento enquanto sacudia negativamente a cabeça. 

***

Deu um tapinha no topo da careca e catou uma garrafa de vinho pela metade. Multiplicou por dez. O chão do apartamento parecia uma adega que faliu. Assoprou na garrafa que estava na sua mão e ela ficou gelada. Vinho do Chile – Deus te abençoe. Enxugou o suor do topo da cabeça e secou a mão na perna da calça. Olhou para um lado, olhou para outro lado. Arrancou a tampa da garrafa e tomou uma golada. O primeiro gole tem que encher a boca para acostumar a língua com a acidez. Cristo entendia dessas coisas.
A enorme barata veio correndo da cozinha. Suas patinhas batendo no chão faziam o som de alguém digitando em uma máquina de escrever. Tirou os sapatos e a meia e deixou num canto da sala. Desabou no sofá. Uma mola fisgou sua bunda rechonchuda. “Filha da puta!”. Rolou para o lado para ficar longe do alcance da mola. 
A barata torceu as anteninhas. Parecia nervosa. 
_Para com essa merda aí, cara! – Resmungou ele e bebeu mais uma golada. – Estar preso nessa forma humana é a pior coisa do mundo! Só bêbado para suportar isso. 
A baratona fez um ruído. Lembrava um garfo sendo pressionado num prato. 
_Não dá para fazer nada hoje. Já está escurecendo! – Disse e acendeu um cigarro – já é quinta-feira. Vou ver se começo a missão depois do fim de semana. Até lá, tenho que me acostumar com isso tudo. Estou traumatizado, se você quer saber!
Exatamente duas garrafas e meia, vinte cigarros depois, alguém bateu na porta. Primeiro foram três batidas de leve. Seguiu mais quatro pancadas um pouco mais fortes.
Analisou aquela unha encravada no dedão e prendeu a respiração. Estava no escuro, a sala parcialmente iluminada pela luz dos postes da praça. 
_A gente sabe que você está aí. Pode abrir. – uma voz doce, um pouco arrastada, até sensual. Feminina. 
_Um homem não pode ter sossego nesse inferno? – Gritou. Mas com esforço se ergueu do sofá e arrastou os pés até a porta. Destrancou e abriu.
Ali estavam paradas, duas figuras. Quase humanas. Um cara com o cabelo preso em coque no topo da cabeça. Sobrancelhas finas acima dos olhos pintados com sombra azul. Cílios postiços, grandes, pretos. Nariz pontudo. Boca grande e com os lábios pintados de vermelho. Barba escura. Pescoço longo. Era um homem magrelo dentro de um vestido curto - prateado. Usava botas de cano longo, salto alto. Sorria. O outro cara era forte, músculos forçando uma camiseta branca. Calça jeans e tênis comuns. Estava sério. A testa um pouco enrugada e os cabelos loiros. 
_Eu sou Gabrielê. Gabrielê. – repetiu. E este é Sediney, meu amiguinho – dizendo isso passou a mão no peito de Sediney e riu. A gente veio te fazer uma visitinha, gato. 
_Não quero receber visitinhas! – Devolveu ele. Sério. 
_Ah, então está é uma visitona! – falando isso empurrou a porta e entrou no apartamento. – Cê sabe o que eu estou fazendo aqui! Você não está cumprindo com o pacto benhê. Assim não pode. 
Passou a mão na careca – era um cacoete- olhou em direção a porta da cozinha. A gorda barata estava ali. Observando tudo. “foi você, miserável” – resmungou. A baratona correu para dentro da cozinha.
Sediney sentou em uma poltrona verde, próximo a janela. Ficou ali com seu rosto sério. Olhos profundos, escuros. Gabrielê acendeu a luz num interruptor na parede. 
_Nossa! Isso aqui tá um chiqueiro! – Sussurrou Gabrielê. E ele ficou pensando: como foi que meteram uma voz dessas numa aberração?
Gabrielê pegou uma garrafa de vinho do chão. Abriu e começou a bebericar. Primeiro enxaguou a boca, fez bochecho com o líquido. Depois acendeu um cigarro. Seu batom deixou marcas no filtro. 
_Sou eu que decido quando as coisas começam. Você sabe como é... – Começou ele bastante irritado. Bebendo de sua garrafa já no fim. Francamente, invadirem seu apartamento para lhe passar sermão sobre como deveria fazer seu trabalho?
_nãonãonãonãonãonão, garotinho – a voz feminina e sensual se contrapôs - Você sabe que todos aqui temos um propósito. – disse de uma maneira debochada, mas era o ar comum da figura. 
_...E o seu propósito é me torrar o saco!- gritou ele.

***

Depois que Gabrielê e Sediney caíram fora, não conseguiu dormir. Continuou bebendo, mas o trago não estava mais fazendo efeito. Seu corpo já havia se acostumado. O propósito de sua volta era anunciar o fim. O jogo terminou. E mais! Ninguém se salvou. A humanidade, evidentemente, não deu certo. A coisa toda foi um erro. Deus cansou da brincadeira, mas se viu refém das cláusulas do contrato. O próprio Satanás, famoso por conseguir piorar tudo, pediu demissão – e ficou triste por isso. O diabo não tinha como piorar a humanidade. A humanidade acendeu a uma maldição que transbordava a ordem divina. O único aperfeiçoamento do ser humano foi para o mal. Era um tipo de mal gratuito – carecia, inclusive, de inteligência e criatividade. O homem não chegou nem a ser profano. Era, simplificando, apenas uma criatura idiota. Os profetas mesmo, mensageiros enviados e iluminados, não conseguiram passar de imbecis arrogantes. Deus para se esquivar das críticas, dizia que foi tudo um mal entendido. E o próprio Cristo entrou em pane total.  Veja o caso da humanidade, ela nem se quer se decidia se queria ser erradicada do mundo ou se queria perdurar – era indiferente. 
Agora, apenas por uma questão de burocracia, os papéis todos que abriam falência da empresa, já começavam a ser preenchidos. Todos queriam estar salvos da responsabilidade pelo fim da humanidade. O livre arbítrio parecia ser a válvula de escape para toda a responsabilidade. Constava na papelada que a humanidade decidiu assim, mas a verdade era que a humanidade nem se quer decidiu sobre qualquer coisa que seja. Estava entediada. Não adiantava mais – por séculos – enviar atrocidades! Nem os anúncios que dramatizavam o fim conseguiam movimentar. O tédio da humanidade já começava a contaminar o reino dos Céus. Depois que Satanás se demitiu o próprio Deus tirou uma soneca.
Sentou no seu colchão, esfregou os olhos com as costas das mãos, repassando a conversa com Gabrielê. “Bonitão, isso tudo é muito simples! Vai lá, anuncia que a coisa toda acabou e saí de cena – fofa”. 
_Puta que pariu, eu tô fedendo feito um monte de merda! – Resmungou, sentindo o próprio cheiro. 
Levantou-se dali onde estava, no quarto, tirou a roupa e foi tomar um banho. Ficou uma hora embaixo da ducha e não conseguiu ver outra solução a não ser parar de adiar seu serviço. Mas que patético, pensou, eu já tinha vindo outra vez para avisar que essa porra toda estava prestes a acabar. Ninguém levou a coisa à sério, concluiu. 
_Como foi que criamos essa multidão de babacas? – resmungou.

***

Quando acordou já era domingo. Escurecia. Estava de cueca e a cueca fedia como se fosse um animal morto.  Estalou os dedos e conjurou uma muda de roupas novas. Camiseta verde de botão, bermudão florido amarelo e sapatos brancos. Vestiu-se e não viu garrafa alguma de vinho pelo chão. Coçou o saco e foi até a cozinha. Dentro da geladeira não havia mais nenhuma cervejinha que usava para rebater o porre. 
_Espirito Santo, o que é que tá acontecendo aqui nessa zona? - urrou. 
Mas a baratona não apareceu. 
Olhou pela janela que dava para a praça da Sé. Muitas pessoas estavam aglomeradas por ali. Aparentemente uma banda de forró tocava na praça. Aquilo serviu de estopim para ele parar de fazer rodeios sobre o fim do mundo.
Sacudiu um braço no ar e na enorme catedral apareceu um letreiro luminoso, piscando em cores vermelhas em um fundo azul: "O apocalipse chegou!"
_Pronto, fiz o anuncio. Cadê meu trago?- resmungou para dentro do apartamento.
Da porta do apartamento escutou um grito "esse desgraçado ficou louco!". A porta caiu e saltou para dentro Gabrielê - Sediney veio logo atrás. Gabrielê estava usando um vestidinho vermelho. Os lábios pintados de azul fosforescente. 
_Que ideia é essa de um letreiro luminoso numa catedral? - gritou Gabrielê! - Seu pai vai nós matar!!!
_Quero meu trago! Vocês não podem fazer isso comigo! - Devolveu ele apertando os punhos. 
Gabrielê empurrou e este caiu sentado no sofá. A mola voltou a espetar-lhe a bunda. Ela tentou fazer desaparecer o letreiro, mas ele substituiu o letreiro luminoso por um ainda maior. 
_Não é assim que você tem que fazer! - resmungou Gabrielê afastando uma mecha de cabelo que lhe caia no rosto - você tem que se pronunciar para o público de todo o mundo! 
_Mas eles vão me matar, porra! - Gritou ele se jogando de joelhos no chão. Lágrimas saiam de seus olhos.
_Mas o plano é esse fofa! É assim que está escrito no contrato! - replicou Gabrielê.  
         Lá fora o céu escureceu e um raio atingiu a catedral. O riso da multidão deu lugar a um grito de terror uníssono. A terra tremeu e fissuras começaram a se abrir. Das fissuras jorrava fogo. Mas a banda de forró não parou, nem se quer vacilou: isso é o que a gente denomina profissionalismo.
_Finalmente acabou... ainda bem. – disse ele sorrindo e acendeu seu último cigarro.



r.A

- A ilustração para este conto foi feita pelo artista plástico Emerson Ferreira da Silva – exclusivamente para esse conto. Outros trabalhos do artista podem ser vistos em:

http://billyilustrar.blogspot.com.br/


terça-feira, 5 de agosto de 2014

Consequências de uma caminhada em uma cidade pequena



       Estou andando pela rua central dessa cidade. Mais morta do que uma cidade fantasma no velho oeste. Estacionei o carro em algum lugar para fazer um percurso a pé, enquanto uma fina chuva deixa a paisagem muito mais interessante. Passo por um casal que discute sua relação. Ela discute, no caso; já o cara apenas ouve e sacode a cabeça como um cavalo indignado. Observo a mulher para concluir se tudo aquilo realmente valia a pena. -Nunca vale.
         Enquanto me afasto ouço o cara dizendo “vamos sair dessa chuva amor, continuamos conversando dentro do carro”. Ela resmunga um “você quem sabe”. Até onde pude entender esse negócio de paixão e de relações, nunca se sabe porra nenhuma. Nunca se sabe como se entra nessas, nunca se sabe porquê acaba. E depois que acaba, nunca se sabe onde realmente dói, mas dói pra valer. Enquanto dura, todo mundo diz que é eterno e único. A única constância é a insegurança. É que o amor não foi feito para ser único e nem para ser “O último”. Quem olha de fora sempre acha cômico. Pimenta no rabo dos outros é mais divertido.
         A única coisa que mudou nessa cidade são as luzes. Tudo está mais iluminado, mas as ruas continuam com aquele cheiro de nada impregnando construções escuras em uma arquitetura que remete ao vazio. Reviro minha mente para encontrar alguma coisa para fazer, mas essa soma de nada e vazio despedaça o menor resquício de empolgação. Sigo caminhando para ver se alguma ideia me ocorre... no fundo sei que nenhuma ideia irá me ocorrer. Mesmo que me ocorra, nessa cidade, sei que ideia nenhuma pode ser levada à diante. Esta é a cidade imóvel que cresceu como um acampamento no deserto. Aqui o verdadeiro espírito cidadão é o tédio. Qualquer um que tente mudar isso será perseguido pelo povo com tochas, feito um monstro. Neste lugar, nem dormindo se sonha.
         Com o som do sapato batendo nas calçadas úmidas vou entendendo mais uma vez o motivo deste lugar sempre me expulsar quando volto. Se por um lado tenho quase dois metros de altura distribuídos em pura preguiça, por outro lado a preguiça acumulada em mim, uma hora ou outra explode em vontade de tacar fogo no mundo. E embora os habitantes comuns dessa cidade pensem que este horizonte está manchado de sossego, a verdade é que isso tudo não passa de atrofia. O deleite pela atrofia está espalhado pelo chão desta cidade e reflete no seu céu chuvoso. Também este é o real motivo pelo qual esta pequena cidade não pode ser devolvida aos índios – de quem foi tomada -, pois até os vencidos da história toda sentem que no fundo esse pedaço de terra adquiriu a pestilência de um câncer nas “juntas”. Os índios reduzidos ao cargo de esmoleiros, bebem e observam o progresso da decadência. E nisso vejo um sinal de pura sabedoria.
         Atravesso um sinal de trânsito na avenida. Um sujeito em uma barraquinha de cachorro-quente estica o pescoço para fora por uma janelinha e me observa com interesse. Acendo um cigarro e a fumaça das baforadas se misturam com o chuvisco. Os movimentos parecem tão lentos que nem se sente o tempo transcorrendo. Tento entrar numa agência bancária para sacar dinheiro. Forço a porta e ela não abre. Era como se ali estivesse escrito: Fique em casa, cultive o seu tédio, o mundo acabou por esses lados.
         Eu poderia até ir procurar o casal que discutia sua relação e fazer-lhes uma oferta. “Pago o que quiserem se me deixarem ficar assistindo-os por umas horas”. Imaginei que presos num lugar desses, a única emoção garantida, era uma briguinha conjugal. Vai ver é por isso que até onde me lembro, o pessoal desta cidade adora assistir novela, refleti.
         Por milênios a humanidade buscou a garantia de uma existência ordenada. Mal sabia essa humanidade que marchava em direção ao próprio rabo. Depois de construir uma espécie de abrigo afim de escapar das cruéis regras do jogo acidental da natureza, estaria condenada a respirar o vapor de seus draminhas sem sal. Ruminando pequenas memórias e eternamente em dívida dentro do parquinho de diversões previsíveis até a morte. Quero dizer, até a morte é previsível. Nem morrer, a angústia mais impossível de consolar, adquire um sentido trágico – é nada mais do que uma espera... Olho para a chuva e penso: Existe ainda vida antes da morte?
         Se a rua não estivesse assim, tão deserta, ainda que tivesse alguém para debater minhas mórbidas reflexões, duvido muito que não ouviria de qualquer que fossem os lábios aquela velha conclusão:_ mas é isso... apenas isso, nada mais.
         Mas se você acha que isso tudo não me espanta, acaba de se enganar. Ainda estou espantado. Embora tenha vivido aqui muitos anos – nesta cidadezinha atrofiada-, andei por essas ruas assim como ando agora. Com os sentimentos e as razões tão fraturadas quanto agora. Neste lugar como se nunca tivesse pertencido um segundo se quer. Sempre com aquelas borboletas no estômago como se tudo isso sempre me fosse estrangeiro. Não como se isso tudo fosse outra coisa, mas não “eu”. Não “como se fosse”... porque até agora sempre foi.
         Tranquilidade, sossego, não é uma equação cujo resultado é felicidade. Não há nada mais tedioso e idiota do que alguém que só quer ser feliz. Porque não há nada mais teatral do que o contentamento consigo mesmo. O certo e o verdadeiro estão mais longes da sinceridade do que se pressupõe. Uma estrela está mais perto desse planetinha do que a sinceridade. “Eu só quero ficar bem”, é a frase de qualquer sujeito deprimido, fracassado e iludido.
         Qualquer um que tenha metade do cérebro funcionando sabe que a coisa mais incompatível com a existência humana em grupo é a ideia de Paz.
         E por isso, quando finalmente encontrei meu carro e trilhei meu caminho para a casa – a casa, não a “minha casa” – entendi que tudo o que acabara de presenciar enquanto fato no fundo não passava de atrofia. O quê atrofiou essa cidade inteira? Você realmente teria coragem para ouvir essa resposta? Sei que não.



r.A.