quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Dos que se expressam para não ficar mais loucos




Entre os artistas, os que mais admiro: são os que espiaram alguma coisa insuportável para suas sensibilidades e retornaram desta espiação um pouco enlouquecidos. Esses desafiam todo público a sentir o impensável. Os que não passaram por isso me parecem que brilham com luzes emprestadadas. Se valem mais do adjetivo do que da qualidade. Distingo uns dos outros pelo nível de satisfação que representam em relação a si mesmos. Os que expiam o insuportável sabem que não há satisfação ou orgulho nisso. E sabem que não há glória que cicatrize feridas na alma. Pagam o preço de sentir o que outros não sentiram numa espécie de exílio.
         Os que admiram esse tipo de artista passam a imitar seus gestos com a intenção de descobrir esse segredo. Como se cheirassem os passos dos loucos. Não é o melhor caminho, mas para os ingênuos, parece o mais rápido. Esses que imitam. quando não são descobertos na fraude, um dia se veem diante de uma plateia que os aplaudem. Se sentem bem com isso e esquecem-se do rastro que estavam seguindo. Quando a intenção se confunde com o orgulho, temos mais merda no mundo. É aí que a maioria constrói sua casa... Preciso dizer que não admiro esse segundo tipo ou ficou óbvio?
         Um tipo se expressa para não ficar mais louco, outro tipo se expressa em nome da multidão. Um, se você perguntar o que está fazendo, provavelmente não vai conseguir responder “definitivamente”. Outro, se você fizer a mesma pergunta, vai estufar o peito e falar por horas. Vai justificar grandiosamente a menor vírgula de seu trabalho. Um, vão chamar de idiotinha, outro, vão chamar de genial.
         Um tipo você encontra entre grupos, outro tipo, você não encontra... ele vai provavelmente correr de você como o diabo foge da cruz.
         A melhor maneira de botar os dois tipos no mesmo saco é juntá-los em nome de uma causa: salvar a arte! Séculos vão se passar e a multidão vai achar que ambos os tipos partem do mesmo princípio e querem ser “reconhecidos” na mesma roupagem. É para isso que existem (na maioria das vezes) as metodologias teóricas, o discurso da história da arte. “Cada um tem seu valor singular” – resmunga o crítico – outro tipo que brilha com luzes emprestadas! E vive – muito bem – fazendo pose de intermediário: Entre o artista e o público. Também há o ventríloquo, você já deve ter visto por aí o tal médico da aesthesis: o curador. Esse sabe do que fala – quando não sabe, inventa, sem sentir remorso algum.
         “Então sabichão, como é que a gente se torna artista?” – Alguém deve estar perguntando (geralmente quem pergunta isso é do segundo tipo do qual falei). E é certo que não tenho essa resposta. Talvez também tenha aquele que só vai dar crédito para esse texto caso eu descreva minuciosamente as diferentes linguagens ou os diversos contextos históricos-sociais, blábláblá. Sugiro que saltemos para o próximo parágrafo.
         Uma coisa que me parece que a existência humana não tem é sentido. E essa existência sem sentido, na minha opinião, só pode ser suportada (às vezes) porque persiste a arte. Saber que há maneiras de se livrar de uma sensibilidade sonolenta – que é, para mim, o comum -, saber que há como superar um condicionamento estético – que é, para mim, a sociedade no geral -, beira o milagre! Não sei se é assim para você, mas na minha compreensão, a arte é a maneira mais séria e mais potente de desestabilizar uma cultura: seus ideais, suas representações, suas utopias, etc. A institucionalização da arte como programa dominical é qualquer coisa como o fim da liberdade de sentir- de incontáveis maneiras.
_Por isso que quando alguém diz “venha prestigiar” eu não sei se tenho ataques de risos ou ataques de ódio. Outra palavra que me provoca náusea é “lúdico”... (só pra constar).
         No meu caso, para que eu não asfixie na própria sensibilidade; ainda restam os artistas do primeiro tipo (que anunciei no início do texto). Que por vezes digam que esses são nada mais do que sintomáticos, pouco importa (gente inteligente sabe pular por cima do próprio sintoma). Desde que não desempenhem esses papéis pré-estabelecidos por uma sociedade que almeja controlar tudo – até nossas angústias mais íntimas. (ainda quero a cabeça do deus do marketing numa bandeja de prata!).
         Para os que vem me falar do tripé “conteúdo-forma-técnica”, ainda guardo um direto de esquerda seguido de um cruzado de direita. Nem sempre nessa ordem. Quem disse que é feio responder processos por agressões físicas em determinados contextos? Experimentem falar em “prestigiar” na minha presença para ver o que que acontece!

r.A.

Dedicado aos que enlouqueceram sozinhos em quartos baratos, mas não entregaram o “bandido” pelo “ouro”.


Foto: Joseph Beuys na performance: Como explicar pintura para uma lebre morta (1965).

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