terça-feira, 5 de agosto de 2014

Consequências de uma caminhada em uma cidade pequena



       Estou andando pela rua central dessa cidade. Mais morta do que uma cidade fantasma no velho oeste. Estacionei o carro em algum lugar para fazer um percurso a pé, enquanto uma fina chuva deixa a paisagem muito mais interessante. Passo por um casal que discute sua relação. Ela discute, no caso; já o cara apenas ouve e sacode a cabeça como um cavalo indignado. Observo a mulher para concluir se tudo aquilo realmente valia a pena. -Nunca vale.
         Enquanto me afasto ouço o cara dizendo “vamos sair dessa chuva amor, continuamos conversando dentro do carro”. Ela resmunga um “você quem sabe”. Até onde pude entender esse negócio de paixão e de relações, nunca se sabe porra nenhuma. Nunca se sabe como se entra nessas, nunca se sabe porquê acaba. E depois que acaba, nunca se sabe onde realmente dói, mas dói pra valer. Enquanto dura, todo mundo diz que é eterno e único. A única constância é a insegurança. É que o amor não foi feito para ser único e nem para ser “O último”. Quem olha de fora sempre acha cômico. Pimenta no rabo dos outros é mais divertido.
         A única coisa que mudou nessa cidade são as luzes. Tudo está mais iluminado, mas as ruas continuam com aquele cheiro de nada impregnando construções escuras em uma arquitetura que remete ao vazio. Reviro minha mente para encontrar alguma coisa para fazer, mas essa soma de nada e vazio despedaça o menor resquício de empolgação. Sigo caminhando para ver se alguma ideia me ocorre... no fundo sei que nenhuma ideia irá me ocorrer. Mesmo que me ocorra, nessa cidade, sei que ideia nenhuma pode ser levada à diante. Esta é a cidade imóvel que cresceu como um acampamento no deserto. Aqui o verdadeiro espírito cidadão é o tédio. Qualquer um que tente mudar isso será perseguido pelo povo com tochas, feito um monstro. Neste lugar, nem dormindo se sonha.
         Com o som do sapato batendo nas calçadas úmidas vou entendendo mais uma vez o motivo deste lugar sempre me expulsar quando volto. Se por um lado tenho quase dois metros de altura distribuídos em pura preguiça, por outro lado a preguiça acumulada em mim, uma hora ou outra explode em vontade de tacar fogo no mundo. E embora os habitantes comuns dessa cidade pensem que este horizonte está manchado de sossego, a verdade é que isso tudo não passa de atrofia. O deleite pela atrofia está espalhado pelo chão desta cidade e reflete no seu céu chuvoso. Também este é o real motivo pelo qual esta pequena cidade não pode ser devolvida aos índios – de quem foi tomada -, pois até os vencidos da história toda sentem que no fundo esse pedaço de terra adquiriu a pestilência de um câncer nas “juntas”. Os índios reduzidos ao cargo de esmoleiros, bebem e observam o progresso da decadência. E nisso vejo um sinal de pura sabedoria.
         Atravesso um sinal de trânsito na avenida. Um sujeito em uma barraquinha de cachorro-quente estica o pescoço para fora por uma janelinha e me observa com interesse. Acendo um cigarro e a fumaça das baforadas se misturam com o chuvisco. Os movimentos parecem tão lentos que nem se sente o tempo transcorrendo. Tento entrar numa agência bancária para sacar dinheiro. Forço a porta e ela não abre. Era como se ali estivesse escrito: Fique em casa, cultive o seu tédio, o mundo acabou por esses lados.
         Eu poderia até ir procurar o casal que discutia sua relação e fazer-lhes uma oferta. “Pago o que quiserem se me deixarem ficar assistindo-os por umas horas”. Imaginei que presos num lugar desses, a única emoção garantida, era uma briguinha conjugal. Vai ver é por isso que até onde me lembro, o pessoal desta cidade adora assistir novela, refleti.
         Por milênios a humanidade buscou a garantia de uma existência ordenada. Mal sabia essa humanidade que marchava em direção ao próprio rabo. Depois de construir uma espécie de abrigo afim de escapar das cruéis regras do jogo acidental da natureza, estaria condenada a respirar o vapor de seus draminhas sem sal. Ruminando pequenas memórias e eternamente em dívida dentro do parquinho de diversões previsíveis até a morte. Quero dizer, até a morte é previsível. Nem morrer, a angústia mais impossível de consolar, adquire um sentido trágico – é nada mais do que uma espera... Olho para a chuva e penso: Existe ainda vida antes da morte?
         Se a rua não estivesse assim, tão deserta, ainda que tivesse alguém para debater minhas mórbidas reflexões, duvido muito que não ouviria de qualquer que fossem os lábios aquela velha conclusão:_ mas é isso... apenas isso, nada mais.
         Mas se você acha que isso tudo não me espanta, acaba de se enganar. Ainda estou espantado. Embora tenha vivido aqui muitos anos – nesta cidadezinha atrofiada-, andei por essas ruas assim como ando agora. Com os sentimentos e as razões tão fraturadas quanto agora. Neste lugar como se nunca tivesse pertencido um segundo se quer. Sempre com aquelas borboletas no estômago como se tudo isso sempre me fosse estrangeiro. Não como se isso tudo fosse outra coisa, mas não “eu”. Não “como se fosse”... porque até agora sempre foi.
         Tranquilidade, sossego, não é uma equação cujo resultado é felicidade. Não há nada mais tedioso e idiota do que alguém que só quer ser feliz. Porque não há nada mais teatral do que o contentamento consigo mesmo. O certo e o verdadeiro estão mais longes da sinceridade do que se pressupõe. Uma estrela está mais perto desse planetinha do que a sinceridade. “Eu só quero ficar bem”, é a frase de qualquer sujeito deprimido, fracassado e iludido.
         Qualquer um que tenha metade do cérebro funcionando sabe que a coisa mais incompatível com a existência humana em grupo é a ideia de Paz.
         E por isso, quando finalmente encontrei meu carro e trilhei meu caminho para a casa – a casa, não a “minha casa” – entendi que tudo o que acabara de presenciar enquanto fato no fundo não passava de atrofia. O quê atrofiou essa cidade inteira? Você realmente teria coragem para ouvir essa resposta? Sei que não.



r.A.

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