sexta-feira, 8 de agosto de 2014

A antepenúltima tentação



Voltou um pouco mais gordo, careca no topo da cabeça, com tufos de cabelo castanho nos lados, acima de um par de orelhas de abano. Vestia camisa de botão com bolso na frente. Amarela. Calça social de cor cinza, cinto daqueles que você encontra em lojinhas que revendem produtos do Paraguai. Sapatos confortáveis, imitando couro. Um relógio prova d’água e um sorriso de cafajeste – dentes amarelados por causa do cigarro. A barba bem aparada e os olhos castanhos. Quem o via de longe podia jurar que não passava de um despachante. A pele um pouco enrugada no pescoço e de tom avermelhada. O contraste do pescoço com o rosto, um pouco menos avermelhado, lembrava um peru - as olheiras roxas ajudavam.
A primeira coisa que fez, assim que chegou, foi procurar um banheiro para cagar. Por sorte, providenciaram um pequeno apartamento na Sé. Com uma janela de frente para a catedral na praça. Podia ver as putas e os travestis fazendo ponto na calçada, o movimento nos bares, o som das lojas fechando. Também havia uma livraria na esquina – com uma sessão de livros usados. Correu até o banheiro para evacuar. O banheiro era apertado, com as lajotas da parede um pouco encardidas, mas servia. Da outra vez que ele veio, pelo que o povo comenta, tinha que cagar atrás de cactos no deserto e limpar o cu com areia; então desta vez estava no luxo.  
Cagou. Gostou do prazer de cagar e forçou as tripas com força. A bosta estava mole, os peidos federam tanto quanto o hálito do Diabo. Enxugou o suor da testa com as costas das mãos e olhou em volta. Não havia papel. [Nem areia]. Poderia materializar, com um estalar de dedos, um rolo de papel higiênico. Nada muito abusado, talvez um rolo de trinta metros, aqueles que estão no meio termo entre o liso e o áspero – 2,75 R$. 
_hum... deve ser uma das provações... – resmungou com uma voz um pouco abalofada. 
Meditou por uns minutos olhando para os sapatos. Tirou os sapatos e as meias. Tinha uma unha encravada no dedão. Nada muito grave, por sorte. Envolveu a mão com a meia, como se fosse um fantoche. Achou graça daquilo. Apenas uma meia foi o suficiente. Jogou a meia suja de bosta no vaso. Manteve a outra meia no pé com a unha encravada. Vestiu-se, deu a descarga e lavou as mãos na pia. Jogou água no rosto e saiu.
Tomou uma golada de vinho de uma garrafa que estava no chão da sala escura. Catou o cigarro que estava pela metade no cinzeiro sob a mesa de centro. Acendeu-o novamente. Tirou umas baforadas. “Não é tão ruim assim”, pensou, “na verdade é bem suportável”. Uma barata gorda correu pela sala e se meteu embaixo do sofá.

***

A luz do sol atravessou as cortinas emboloradas do pequeno apartamento e isso o fez despertar resmungando. Sua cabeça latejava. Havia adormecido no sofá. No chão estavam seis garrafas de vinho vazias. Uma pela metade. Seu estômago embrulhou. Tentou chegar até a privada do banheiro, mas não deu tempo. Teve de vomitar na pia. Um pouco de vômito – roxo - saiu pelo nariz. Espremeu pasta de dente na língua, encheu a boca com água da torneira e fez gargarejo. Quase vomitou novamente. Enxugou o rosto com a parte de baixo da camisa e andou cambaleando até a cozinha. Na geladeira ainda havia uma garrafinha de cerveja. Arrancou a tampa e seguiu bebericando. 
_caralho... qual é a missão desta vez?
A barata gorda saiu debaixo da geladeira e ficou parada nos seus pés. 
_foda-se! – resmungou para a barata. – Depois do meio dia eu começo a porra toda. Não enche o saco que te transformo numa loira peituda e te boto para rodar bolsinha na praça.
A baratona torceu as anteninhas de maneira ameaçadora. Ele deu uma gargalhada. 
_Tô para além da moral! Sou eu que estipulo o bem, não adianta argumentar comigo!
Andou com uma mão se escorando na parede e a outra bebericando a cerveja. Seguiu até o fim do corredor e desabou num colchão de casal. Terminou a cerveja contemplando uma mancha no teto e apagou. 
        
                                                      ***         

Acordou melhor desta vez. A primeira coisa que fez foi descer as escadas correndo e entrar em uma lanchonete que funcionava embaixo do prédio onde morava. Nem cumprimentou o atendente e foi direto ao banheiro. Certificou-se se havia papel e cagou outra vez. Na porta do banheiro estava escrito “aqui até o mais forte dos homens geme e o mais macho pisca o cu”. A voz do povo, pensou. 
Entrou na fila do buffet e serviu-se principalmente de carne. Gostou do bife mal passado. Não havia muitas opções. Arroz, feijão, carne boiando num molho grosso e marrom. Na bandeja dos bifes lia-se: no máximo dois por pessoa. Obrigado! Notou uma mosca nadando no azeite da salada.
Acomodou-se na última mesa da pequena lanchonete. Um garçom moreno, longos cabelos encaracolados, correu em sua direção.
_algo para beber? – falou olhando sempre para um caderninho na mão.
_Cerveja. Bem gelada. Garrafa grande. – disse com a boca cheia de carne, ainda mastigando.
O garçom correu até o balcão. Os cabelos não se moviam, pareciam úmidos. Percebeu que o garçom corria porque o chão estava liso – e o garçom gostava de brecar com os pés e deslizar alguns centímetros. Voltou com uma garrafa e um copo. Trazia o copo com o dedão dentro. Tirou um pano do bolso de trás da calça e poliu o copo. Quando ele sacudiu o pano, ele pode sentir aquele cheiro de bunda suada que a calça social provoca. O garçom, animado, serviu a cerveja e anotou no caderninho. Jogou a comanda em cima de uma poça de água sob a mesa. Colocou a caneta atrás da orelha e disse “bom apetite, senhor”. 
_Amém! 
Comeu olhando para a t.v. Passava o noticiário da tarde. Um namorado havia tentado executar a namorada porque ela não o amava mais – segundo dizia o jornalista com ar de indignado apesar do cabelo lambuzado de gel. Ela havia sobrevivido a cinco disparos de 38. “Intervenção divina” – dizia a moça, aos prantos. Não dava para ver o rosto da moça, estava oculto com os cabelos loiros. “Também... o cara não mirou na cabeça!” – resmungou o garçom, com ares de quem era perito no assunto. “Eles não sabem o que fazem” – replicou outro sujeito no caixa. Este, do caixa, ajeitou os óculos num nariz que lembrava uma batata. Resmungou com uma voz aguda em direção ao fundo da lanchonete:_ não é?
Terminou a cerveja e limpou a boca com um guardanapo. Ainda sentia um pouco de cansaço. Mas apesar disso, estava bem. Fortalecido. Satisfeito. Empurrou o prato sujo para o lado e acendeu um cigarro. Nem bem tirou uma baforada e o garçom gritou “NÃO! É PROIBIDO CARA”. Ele se assustou e deixou cair o cigarro no chão. “Se a vigilância nos pega é multa! Fecham o estabelecimento”. 
_Vigilância? 
_É cara, a vigilância sanitária! Temos que manter a higiene aqui nessa porra! – Devolveu o atendente no caixa. 
Ele juntou o cigarro do chão e apagou no prato. O mundo acabando e os caras preocupados com um cigarro - refletiu. Ergueu-se apoiando as mãos na mesa. Quando passava pelo caixa o sujeito de óculos falou:_ E a conta cidadão? 
_puxa, não tenho dinheiro... – resmungou mexendo nos bolsos. 
_Aqui ninguém come de graça, cara! Se você não pagar eu vou ter que chamar a polícia. – o nervosismo deixou a voz do atendente mais aguda, um pouco falha. Parecia uma porta velha rangendo.
_Façamos o seguinte. Quando você pescar um peixe aqui por perto... o dinheiro da conta vai estar na boca do peixe, te juro. 
O sujeito no caixa sorriu para o garçom. “Pode chamar a polícia para esse senhor”. Nessa hora ele meteu a mão no bolso e sacou uma nota de cem. 
_Fique com o troco! – Disse. 
_O caralho! Aqui a gente trabalha certo. – Abriu a registradora e devolveu o troco. – se vier com gracinhas, da próxima vez a gente não te atende.
_Vou te curar desta miopia – falou estendendo as mãos em direção aos olhos do caixa. 
_Sai pra lá! – gritou afastando as mãos dele com um tabefe.- se me tocar te sento a mão na cara, seu tarado!
_Mas é só passar um pouco de saliva... – prosseguiu falando...
_passar saliva no seu cu! SOME DAQUI!
O garçom empurrou o sujeito para fora da lanchonete. Da outra vez foi assim também, pensou. A gente aprende a relevar.
Andou até a praça da Sé. Na verdade era só atravessar a rua. O movimento do período da tarde era semelhante a um formigueiro. Entre a catedral, as bancas de jornais e o chafariz, transitavam centenas de pessoas por minuto. Alguns mendigos com seus cachorros arrastavam-se nas sombras. O lugar era perigoso e com o passar das horas, tornava-se cada vez mais hostil. Ao fim da tarde o lugar adquiria um aspecto terrível. E quando adentrava à noite, todo silêncio dos becos, eram o presságio puro de uma facada nas tripas.
Encontrou uma sombra, no pé de uma estátua, e ali ficou, apenas observando. A estátua de mais de três metros era de um padre jesuíta. Nos seus pés alguns índios - provavelmente sendo salvos.
Um senhor andou até o centro da praça, onde o sol castigava. Virou seu pequeno corpo, metido em um terninho cinza, de frente para a entrada subterrânea do metrô. Retirou uma pequena bíblia com a capa preta de um bolso interno e gritou: ALELUIA IRMÃOS! – com a voz um pouco rasgada, mas bastante potente. Assim que fez isso, algumas pessoas se aproximaram. E o senhor de terninho, com os cabelos brancos e o rosto vermelho por causa do calor, começou a citar trechos desconexos de salmos e passagens bíblicas. 
Na parte inferior da praça, perto de um cruzamento, outro sujeito, desta vez um pouco mais jovem, cabelos castanhos e terninho preto, fez a mesma coisa. Tinha ele um rosto que lembrava um cavalo. Colocou uma caixinha de madeira ao seu lado. As pessoas que passavam, atiravam algumas moedas na caixinha. O sujeito de terno preto agradecia e continuava pregando o evangelho.
Ele cansou de ficar observando aquilo tudo e andou até uma pequena farmácia próxima, sempre pela sombra. Seu suor fedia vinho, evaporava álcool. Ainda se sentia nauseado. “Seria pecado estalar os dedos e fazer passar a ressaca?” – cochichou para si.
Cruzou as portas da farmácia, percebeu um senhor negro e de jaleco branco que respirou fundo. Pôde ler sua mente: “agora um bêbado! Só o que me faltava!”
_Ali colega! – Resmungou – do seu lado direito, dentro da cestinha. Todos esses remédios são para ressaca.
 Pegou alguns.
_Papel higiênico... – disse, ainda grogue. 
_No final desse corredor aí – apontou o sujeito do jaleco.  
Comprou seis rolos de papel higiênico, uns frasquinhos com um líquido preto para ressaca e um desodorante. Pagou e caiu fora. 
Subiu a rua e atravessou a praça. A multidão se aglomerava – ainda! - em torno dos pastores. Do outro lado da rua viu outro sujeito de terno chegando e repetindo o procedimento dos anteriores. Este tinha um chapéu marrom diante de si – e ali depositavam, os curiosos, punhados de moedas. 
Acendeu um cigarro e voltou para seu apartamento enquanto sacudia negativamente a cabeça. 

***

Deu um tapinha no topo da careca e catou uma garrafa de vinho pela metade. Multiplicou por dez. O chão do apartamento parecia uma adega que faliu. Assoprou na garrafa que estava na sua mão e ela ficou gelada. Vinho do Chile – Deus te abençoe. Enxugou o suor do topo da cabeça e secou a mão na perna da calça. Olhou para um lado, olhou para outro lado. Arrancou a tampa da garrafa e tomou uma golada. O primeiro gole tem que encher a boca para acostumar a língua com a acidez. Cristo entendia dessas coisas.
A enorme barata veio correndo da cozinha. Suas patinhas batendo no chão faziam o som de alguém digitando em uma máquina de escrever. Tirou os sapatos e a meia e deixou num canto da sala. Desabou no sofá. Uma mola fisgou sua bunda rechonchuda. “Filha da puta!”. Rolou para o lado para ficar longe do alcance da mola. 
A barata torceu as anteninhas. Parecia nervosa. 
_Para com essa merda aí, cara! – Resmungou ele e bebeu mais uma golada. – Estar preso nessa forma humana é a pior coisa do mundo! Só bêbado para suportar isso. 
A baratona fez um ruído. Lembrava um garfo sendo pressionado num prato. 
_Não dá para fazer nada hoje. Já está escurecendo! – Disse e acendeu um cigarro – já é quinta-feira. Vou ver se começo a missão depois do fim de semana. Até lá, tenho que me acostumar com isso tudo. Estou traumatizado, se você quer saber!
Exatamente duas garrafas e meia, vinte cigarros depois, alguém bateu na porta. Primeiro foram três batidas de leve. Seguiu mais quatro pancadas um pouco mais fortes.
Analisou aquela unha encravada no dedão e prendeu a respiração. Estava no escuro, a sala parcialmente iluminada pela luz dos postes da praça. 
_A gente sabe que você está aí. Pode abrir. – uma voz doce, um pouco arrastada, até sensual. Feminina. 
_Um homem não pode ter sossego nesse inferno? – Gritou. Mas com esforço se ergueu do sofá e arrastou os pés até a porta. Destrancou e abriu.
Ali estavam paradas, duas figuras. Quase humanas. Um cara com o cabelo preso em coque no topo da cabeça. Sobrancelhas finas acima dos olhos pintados com sombra azul. Cílios postiços, grandes, pretos. Nariz pontudo. Boca grande e com os lábios pintados de vermelho. Barba escura. Pescoço longo. Era um homem magrelo dentro de um vestido curto - prateado. Usava botas de cano longo, salto alto. Sorria. O outro cara era forte, músculos forçando uma camiseta branca. Calça jeans e tênis comuns. Estava sério. A testa um pouco enrugada e os cabelos loiros. 
_Eu sou Gabrielê. Gabrielê. – repetiu. E este é Sediney, meu amiguinho – dizendo isso passou a mão no peito de Sediney e riu. A gente veio te fazer uma visitinha, gato. 
_Não quero receber visitinhas! – Devolveu ele. Sério. 
_Ah, então está é uma visitona! – falando isso empurrou a porta e entrou no apartamento. – Cê sabe o que eu estou fazendo aqui! Você não está cumprindo com o pacto benhê. Assim não pode. 
Passou a mão na careca – era um cacoete- olhou em direção a porta da cozinha. A gorda barata estava ali. Observando tudo. “foi você, miserável” – resmungou. A baratona correu para dentro da cozinha.
Sediney sentou em uma poltrona verde, próximo a janela. Ficou ali com seu rosto sério. Olhos profundos, escuros. Gabrielê acendeu a luz num interruptor na parede. 
_Nossa! Isso aqui tá um chiqueiro! – Sussurrou Gabrielê. E ele ficou pensando: como foi que meteram uma voz dessas numa aberração?
Gabrielê pegou uma garrafa de vinho do chão. Abriu e começou a bebericar. Primeiro enxaguou a boca, fez bochecho com o líquido. Depois acendeu um cigarro. Seu batom deixou marcas no filtro. 
_Sou eu que decido quando as coisas começam. Você sabe como é... – Começou ele bastante irritado. Bebendo de sua garrafa já no fim. Francamente, invadirem seu apartamento para lhe passar sermão sobre como deveria fazer seu trabalho?
_nãonãonãonãonãonão, garotinho – a voz feminina e sensual se contrapôs - Você sabe que todos aqui temos um propósito. – disse de uma maneira debochada, mas era o ar comum da figura. 
_...E o seu propósito é me torrar o saco!- gritou ele.

***

Depois que Gabrielê e Sediney caíram fora, não conseguiu dormir. Continuou bebendo, mas o trago não estava mais fazendo efeito. Seu corpo já havia se acostumado. O propósito de sua volta era anunciar o fim. O jogo terminou. E mais! Ninguém se salvou. A humanidade, evidentemente, não deu certo. A coisa toda foi um erro. Deus cansou da brincadeira, mas se viu refém das cláusulas do contrato. O próprio Satanás, famoso por conseguir piorar tudo, pediu demissão – e ficou triste por isso. O diabo não tinha como piorar a humanidade. A humanidade acendeu a uma maldição que transbordava a ordem divina. O único aperfeiçoamento do ser humano foi para o mal. Era um tipo de mal gratuito – carecia, inclusive, de inteligência e criatividade. O homem não chegou nem a ser profano. Era, simplificando, apenas uma criatura idiota. Os profetas mesmo, mensageiros enviados e iluminados, não conseguiram passar de imbecis arrogantes. Deus para se esquivar das críticas, dizia que foi tudo um mal entendido. E o próprio Cristo entrou em pane total.  Veja o caso da humanidade, ela nem se quer se decidia se queria ser erradicada do mundo ou se queria perdurar – era indiferente. 
Agora, apenas por uma questão de burocracia, os papéis todos que abriam falência da empresa, já começavam a ser preenchidos. Todos queriam estar salvos da responsabilidade pelo fim da humanidade. O livre arbítrio parecia ser a válvula de escape para toda a responsabilidade. Constava na papelada que a humanidade decidiu assim, mas a verdade era que a humanidade nem se quer decidiu sobre qualquer coisa que seja. Estava entediada. Não adiantava mais – por séculos – enviar atrocidades! Nem os anúncios que dramatizavam o fim conseguiam movimentar. O tédio da humanidade já começava a contaminar o reino dos Céus. Depois que Satanás se demitiu o próprio Deus tirou uma soneca.
Sentou no seu colchão, esfregou os olhos com as costas das mãos, repassando a conversa com Gabrielê. “Bonitão, isso tudo é muito simples! Vai lá, anuncia que a coisa toda acabou e saí de cena – fofa”. 
_Puta que pariu, eu tô fedendo feito um monte de merda! – Resmungou, sentindo o próprio cheiro. 
Levantou-se dali onde estava, no quarto, tirou a roupa e foi tomar um banho. Ficou uma hora embaixo da ducha e não conseguiu ver outra solução a não ser parar de adiar seu serviço. Mas que patético, pensou, eu já tinha vindo outra vez para avisar que essa porra toda estava prestes a acabar. Ninguém levou a coisa à sério, concluiu. 
_Como foi que criamos essa multidão de babacas? – resmungou.

***

Quando acordou já era domingo. Escurecia. Estava de cueca e a cueca fedia como se fosse um animal morto.  Estalou os dedos e conjurou uma muda de roupas novas. Camiseta verde de botão, bermudão florido amarelo e sapatos brancos. Vestiu-se e não viu garrafa alguma de vinho pelo chão. Coçou o saco e foi até a cozinha. Dentro da geladeira não havia mais nenhuma cervejinha que usava para rebater o porre. 
_Espirito Santo, o que é que tá acontecendo aqui nessa zona? - urrou. 
Mas a baratona não apareceu. 
Olhou pela janela que dava para a praça da Sé. Muitas pessoas estavam aglomeradas por ali. Aparentemente uma banda de forró tocava na praça. Aquilo serviu de estopim para ele parar de fazer rodeios sobre o fim do mundo.
Sacudiu um braço no ar e na enorme catedral apareceu um letreiro luminoso, piscando em cores vermelhas em um fundo azul: "O apocalipse chegou!"
_Pronto, fiz o anuncio. Cadê meu trago?- resmungou para dentro do apartamento.
Da porta do apartamento escutou um grito "esse desgraçado ficou louco!". A porta caiu e saltou para dentro Gabrielê - Sediney veio logo atrás. Gabrielê estava usando um vestidinho vermelho. Os lábios pintados de azul fosforescente. 
_Que ideia é essa de um letreiro luminoso numa catedral? - gritou Gabrielê! - Seu pai vai nós matar!!!
_Quero meu trago! Vocês não podem fazer isso comigo! - Devolveu ele apertando os punhos. 
Gabrielê empurrou e este caiu sentado no sofá. A mola voltou a espetar-lhe a bunda. Ela tentou fazer desaparecer o letreiro, mas ele substituiu o letreiro luminoso por um ainda maior. 
_Não é assim que você tem que fazer! - resmungou Gabrielê afastando uma mecha de cabelo que lhe caia no rosto - você tem que se pronunciar para o público de todo o mundo! 
_Mas eles vão me matar, porra! - Gritou ele se jogando de joelhos no chão. Lágrimas saiam de seus olhos.
_Mas o plano é esse fofa! É assim que está escrito no contrato! - replicou Gabrielê.  
         Lá fora o céu escureceu e um raio atingiu a catedral. O riso da multidão deu lugar a um grito de terror uníssono. A terra tremeu e fissuras começaram a se abrir. Das fissuras jorrava fogo. Mas a banda de forró não parou, nem se quer vacilou: isso é o que a gente denomina profissionalismo.
_Finalmente acabou... ainda bem. – disse ele sorrindo e acendeu seu último cigarro.



r.A

- A ilustração para este conto foi feita pelo artista plástico Emerson Ferreira da Silva – exclusivamente para esse conto. Outros trabalhos do artista podem ser vistos em:

http://billyilustrar.blogspot.com.br/


Nenhum comentário: