terça-feira, 24 de junho de 2014

O Legado do Gesto interditado!



"Para manifestar seu desprezo pelo ouro, os habitantes de Utopia utilizam-no para fabricar penicos e correntes de escravos" - Ciprian Valcan 


......É no livro "A ordem do discurso", resultado da aula inaugural  do filósofo Michel Foucault no Collège de France (pronunciada no dia 2 de dezembro, 1970), que aparece a noção de Discurso Interditado. Dizia ele, no citado livro, que "em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade". [Isto está nas primeiras páginas, se você quiser conferir].
......Agora não se preocupe! Não vou ficar aqui ocupando seu tempo re-explicando Foucault. Isto não me serve aqui e é complicado para um ensaio tão curto.
......Que um dos elementos mais óbvios de uma sociedade é o "Controle", creio que nós já sabemos. Mas "existe controle e controle". Quero dizer com essa frase meio idiota que existe um controle enquanto organização desta sociedade e existe um controle enquanto interdição de certos gestos. 
......Ouvi por aí que vivemos em uma democracia representativa. Por democracia eu entendo uma certa "autonomia" dos sujeitos que constituem uma sociedade - autonomia esta que, muito provavelmente, tende a tecer que tipos de controle a maioria dos sujeitos desejam que persistam nessa sociedade. Um exemplo que me atinge é a proibição de acender um cigarro num ambiente público "fechado", "cercado". Eu concordo com esse controle! Quando é impossível sensibilizar um sujeito para seu gesto - que pode prejudicar outros - uma interdição parece necessária. Podemos falar, por exemplo, do uso da violência, da manifestação do preconceito, do assalto, do roubo, etc. 
......Mas há casos de interdição que me parecem bastante curiosos e geralmente são os menos perceptíveis. Por exemplo: vi que nos últimos dias, nos estádios de futebol, foi interditado o uso de quaisquer adereços que façam qualquer que seja crítica à realização do tal evento denominado Copa (da FIFA). Segundo alguns críticos bem pouco razoáveis, os sujeitos que frequentam os benditos estádios construídos com "financiamento público" (interessantíssimo esse termo...) não estariam corretos ao protestar politicamente. Segundo os tais críticos - que me fazem imaginar sobre o grau de escolaridade que foram capazes de cursar- isso seria uma incoerência! Seguindo a "genial" coerência dos citados críticos, Eu, como professor que sou, não poderia dar aulas de Filosofia: uma vez que ao mesmo tempo que participo do "sistema educacional" não perco uma chance de criticar tal sistema. Se se eleva à nível de legislação esta lógica, meu diploma, talvez, fosse interditado. (se você soubesse das interdições que foram elevadas a nível de legislação...ah, se você soubesse colega...). 
......Nesta sociedade democrática estou, particularmente, sempre receoso quanto certas interdições que certos grupos querem elevar ao nível de leis. Quando o "jogo" democrático permite a manipulação das massas com sensos valorativos próprios de computadores (código binário "0" e "1"): útil, inútil; bem, mal; bom, ruim; eu começo a por em questão o nível cognitivo desse coletivo todo. Me parece certa infantilização moral dos sujeitos. Até onde conseguem refletir sobre o convívio social parecem que resumem tudo em um simples: Gosto/Não gosto. E suas questões de "gosto" - quem sabe de mal gosto?- parecem querer ordenar todas as instituições numa espécie de "Engenharia Social". E a perversidade e estratégia (sem um pingo de ética) que alguns grupos são capazes de levar até as últimas consequências me fazem lembrar  de qualquer coisa "ditatorial". 
......É evidente que tal coisa vem ocorrendo há muito tempo, mas nesse último ano pude perceber um atenuamento agudo quanto a toda essa 'vocação' para interditar gestos. Ainda nesse último ano, fiz um exercício, certa tarde, de compreender uma cacetada que um policial desferiu em um manifestante. Retrocedi dos gestos até as ordens - nos dois sujeitos. Um ato violento deixa seu rastro, se é que você me entende (não só de sangue...). E raras às exceções, me parece que a violência é legitimada por um lado e interditada por outro lado. Assim como, quando vejo uma violência ocorrendo, também percebo mãos que aplaudem e bocas que vaiam. É uma chuva de gestos! E estes gestos parecem não ir para além do Pode/Não pode. Se a questão se resumisse a isso, eu gostaria de não conviver mais numa sociedade idiotizada dessas. 
......Uma evidência que me assombra - porque denuncia nosso retorno até níveis muito pouco racionais do ponto de vista humano - é reduzir todos os últimos acontecimentos até a questão do "lucro" e "prejuízo" unicamente em termos financeiros. Pouquíssimas pessoas estão atentas ao tipo de interdição de gestos que estamos configurando sob o mandamento do "lucro". Uma sociedade que "lucra", mas explora desenfreadamente até o desejo das criaturas, detém o monopólio de seus sonhos, não é uma sociedade de "sucesso internacional" - como estou vendo gente almejando fanaticamente -, uma sociedade assim é um grupo que deu muito errado! É algo como um inferno de padrão elevado. Nem um demônio seria capaz de tamanha perversidade.  
......O espetáculo que interdita todos os gestos que não estão direcionados para o espetáculo, sincronizando o maior número possível de gozos, coordenando todos os discursos plausíveis de serem feitos sobre tal ato, eu te pergunto, pode ser chamado de "Avanço"? Ou será de um retrocesso jamais visto?  Cá entre nós, você acreditaria se alguém lhe falasse no pé do ouvido que tal espetáculo está acima da luta por autonomia, travada ao longo dos séculos da história humana? (a tal da Política - em sentido amplo). Não acreditaria? Mas já lhe disseram e eu desconfio que você gostou da ideia.
......Como dizia o músico e poeta Renato Russo "vamos faturar um milhão" - Bilhões, obviamente. Eu não duvido! Mas depois da festa vem a ressaca... e eu espero que você e eu sejamos capazes de calcular o que perdemos com isso. Isso se ainda nos restar potência para um gesto ainda não previsto. Em nome de que tipo de "progresso" você estaria disposto a ser trancafiado em uma jaula que determina seus gestos e seus prazeres? 
......Ouvi por aí que estamos no país do futuro... mas faz tanto tempo que estamos no futuro que esse futuro já está se decompondo e começando a feder cadáver. Se George Orwell (1984) e Aldous Huxley (Brave new world) dessem uma espiadinha no nosso contexto atual, se auto-denominariam "videntes"!
......Um ditado na Grécia antiga dizia mais ou menos o seguinte: "Não há nada que os suínos amam mais do que chafurdar na própria merda". Sinto muito, mas me parece que este é o caso. A interdição de nossos gestos está nos ensinado a contemplar e aplaudir a própria merda - gastamos até o que não tínhamos para construir gigantescos penicos! Enquanto o pessoal é doutrinado a comemorar toda essa sucessão de gestos interditados, a sociedade vai adquirindo cada vez mais o aspecto que lembra um chiqueiro. E como a lavagem nos cochos é abundante os suínos rolam satisfeitos na lama. Quem diria "pós-modernidade"; vivendo e pensando como porcos!
......Mas fique tranquilo aí no sofá - eu sei que você é pobre e assiste todo espetáculo pela televisão-, é bem possível que eu só diga e escreva essas coisas porque sou "oposição". Oposição em relação à que? Nem te conto! (risos). Minha odisseia particular é não permitir que dominem o poder de meu acontecimento aleatório. Amo ser livre pensador! Amar está para além de quem diz mudar as coisas.


r.A.
ps. 
Disseram para mim que quem não torce pelo grupo de potros adestrados mais famigerado e bem pago do país é um vira-lata! Pois prefiro ser um vira-lata que pensa do que qualquer coisa que muge e governa. Prefiro também não mamar nas tetas!


A citação do início do ensaio foi retirada de:
http://emcioranbr.wordpress.com/tag/ciprian-valcan/


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