terça-feira, 24 de junho de 2014

O Legado do Gesto interditado!



"Para manifestar seu desprezo pelo ouro, os habitantes de Utopia utilizam-no para fabricar penicos e correntes de escravos" - Ciprian Valcan 


......É no livro "A ordem do discurso", resultado da aula inaugural  do filósofo Michel Foucault no Collège de France (pronunciada no dia 2 de dezembro, 1970), que aparece a noção de Discurso Interditado. Dizia ele, no citado livro, que "em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade". [Isto está nas primeiras páginas, se você quiser conferir].
......Agora não se preocupe! Não vou ficar aqui ocupando seu tempo re-explicando Foucault. Isto não me serve aqui e é complicado para um ensaio tão curto.
......Que um dos elementos mais óbvios de uma sociedade é o "Controle", creio que nós já sabemos. Mas "existe controle e controle". Quero dizer com essa frase meio idiota que existe um controle enquanto organização desta sociedade e existe um controle enquanto interdição de certos gestos. 
......Ouvi por aí que vivemos em uma democracia representativa. Por democracia eu entendo uma certa "autonomia" dos sujeitos que constituem uma sociedade - autonomia esta que, muito provavelmente, tende a tecer que tipos de controle a maioria dos sujeitos desejam que persistam nessa sociedade. Um exemplo que me atinge é a proibição de acender um cigarro num ambiente público "fechado", "cercado". Eu concordo com esse controle! Quando é impossível sensibilizar um sujeito para seu gesto - que pode prejudicar outros - uma interdição parece necessária. Podemos falar, por exemplo, do uso da violência, da manifestação do preconceito, do assalto, do roubo, etc. 
......Mas há casos de interdição que me parecem bastante curiosos e geralmente são os menos perceptíveis. Por exemplo: vi que nos últimos dias, nos estádios de futebol, foi interditado o uso de quaisquer adereços que façam qualquer que seja crítica à realização do tal evento denominado Copa (da FIFA). Segundo alguns críticos bem pouco razoáveis, os sujeitos que frequentam os benditos estádios construídos com "financiamento público" (interessantíssimo esse termo...) não estariam corretos ao protestar politicamente. Segundo os tais críticos - que me fazem imaginar sobre o grau de escolaridade que foram capazes de cursar- isso seria uma incoerência! Seguindo a "genial" coerência dos citados críticos, Eu, como professor que sou, não poderia dar aulas de Filosofia: uma vez que ao mesmo tempo que participo do "sistema educacional" não perco uma chance de criticar tal sistema. Se se eleva à nível de legislação esta lógica, meu diploma, talvez, fosse interditado. (se você soubesse das interdições que foram elevadas a nível de legislação...ah, se você soubesse colega...). 
......Nesta sociedade democrática estou, particularmente, sempre receoso quanto certas interdições que certos grupos querem elevar ao nível de leis. Quando o "jogo" democrático permite a manipulação das massas com sensos valorativos próprios de computadores (código binário "0" e "1"): útil, inútil; bem, mal; bom, ruim; eu começo a por em questão o nível cognitivo desse coletivo todo. Me parece certa infantilização moral dos sujeitos. Até onde conseguem refletir sobre o convívio social parecem que resumem tudo em um simples: Gosto/Não gosto. E suas questões de "gosto" - quem sabe de mal gosto?- parecem querer ordenar todas as instituições numa espécie de "Engenharia Social". E a perversidade e estratégia (sem um pingo de ética) que alguns grupos são capazes de levar até as últimas consequências me fazem lembrar  de qualquer coisa "ditatorial". 
......É evidente que tal coisa vem ocorrendo há muito tempo, mas nesse último ano pude perceber um atenuamento agudo quanto a toda essa 'vocação' para interditar gestos. Ainda nesse último ano, fiz um exercício, certa tarde, de compreender uma cacetada que um policial desferiu em um manifestante. Retrocedi dos gestos até as ordens - nos dois sujeitos. Um ato violento deixa seu rastro, se é que você me entende (não só de sangue...). E raras às exceções, me parece que a violência é legitimada por um lado e interditada por outro lado. Assim como, quando vejo uma violência ocorrendo, também percebo mãos que aplaudem e bocas que vaiam. É uma chuva de gestos! E estes gestos parecem não ir para além do Pode/Não pode. Se a questão se resumisse a isso, eu gostaria de não conviver mais numa sociedade idiotizada dessas. 
......Uma evidência que me assombra - porque denuncia nosso retorno até níveis muito pouco racionais do ponto de vista humano - é reduzir todos os últimos acontecimentos até a questão do "lucro" e "prejuízo" unicamente em termos financeiros. Pouquíssimas pessoas estão atentas ao tipo de interdição de gestos que estamos configurando sob o mandamento do "lucro". Uma sociedade que "lucra", mas explora desenfreadamente até o desejo das criaturas, detém o monopólio de seus sonhos, não é uma sociedade de "sucesso internacional" - como estou vendo gente almejando fanaticamente -, uma sociedade assim é um grupo que deu muito errado! É algo como um inferno de padrão elevado. Nem um demônio seria capaz de tamanha perversidade.  
......O espetáculo que interdita todos os gestos que não estão direcionados para o espetáculo, sincronizando o maior número possível de gozos, coordenando todos os discursos plausíveis de serem feitos sobre tal ato, eu te pergunto, pode ser chamado de "Avanço"? Ou será de um retrocesso jamais visto?  Cá entre nós, você acreditaria se alguém lhe falasse no pé do ouvido que tal espetáculo está acima da luta por autonomia, travada ao longo dos séculos da história humana? (a tal da Política - em sentido amplo). Não acreditaria? Mas já lhe disseram e eu desconfio que você gostou da ideia.
......Como dizia o músico e poeta Renato Russo "vamos faturar um milhão" - Bilhões, obviamente. Eu não duvido! Mas depois da festa vem a ressaca... e eu espero que você e eu sejamos capazes de calcular o que perdemos com isso. Isso se ainda nos restar potência para um gesto ainda não previsto. Em nome de que tipo de "progresso" você estaria disposto a ser trancafiado em uma jaula que determina seus gestos e seus prazeres? 
......Ouvi por aí que estamos no país do futuro... mas faz tanto tempo que estamos no futuro que esse futuro já está se decompondo e começando a feder cadáver. Se George Orwell (1984) e Aldous Huxley (Brave new world) dessem uma espiadinha no nosso contexto atual, se auto-denominariam "videntes"!
......Um ditado na Grécia antiga dizia mais ou menos o seguinte: "Não há nada que os suínos amam mais do que chafurdar na própria merda". Sinto muito, mas me parece que este é o caso. A interdição de nossos gestos está nos ensinado a contemplar e aplaudir a própria merda - gastamos até o que não tínhamos para construir gigantescos penicos! Enquanto o pessoal é doutrinado a comemorar toda essa sucessão de gestos interditados, a sociedade vai adquirindo cada vez mais o aspecto que lembra um chiqueiro. E como a lavagem nos cochos é abundante os suínos rolam satisfeitos na lama. Quem diria "pós-modernidade"; vivendo e pensando como porcos!
......Mas fique tranquilo aí no sofá - eu sei que você é pobre e assiste todo espetáculo pela televisão-, é bem possível que eu só diga e escreva essas coisas porque sou "oposição". Oposição em relação à que? Nem te conto! (risos). Minha odisseia particular é não permitir que dominem o poder de meu acontecimento aleatório. Amo ser livre pensador! Amar está para além de quem diz mudar as coisas.


r.A.
ps. 
Disseram para mim que quem não torce pelo grupo de potros adestrados mais famigerado e bem pago do país é um vira-lata! Pois prefiro ser um vira-lata que pensa do que qualquer coisa que muge e governa. Prefiro também não mamar nas tetas!


A citação do início do ensaio foi retirada de:
http://emcioranbr.wordpress.com/tag/ciprian-valcan/


sexta-feira, 20 de junho de 2014

Chá de laranja


......Estava tentando escrever algo, mas todas as frases que escapavam pela minha mão e respingavam no papel não serviam nem para limpar a bunda. Não dá para ser um escritor desse jeito - resmunguei. Então imediatamente fiz o que faço de melhor. Escrevi um contrato no papel. "Ok diabo, leve a alma e deixe uma ideia". Depois assinei. Você acha que veio alguma ideia? Exato! Minha alma não vale lá muita coisa. 
......Andei pela casa. Resolvi tomar banho. A merda do chuveiro não esquentava. Escovei os dentes e fiz a barba. Alguma coisa de assassino desperta em mim quando não consigo escrever. Estou dizendo isso porque vinha a imagem do meu pescoço dilacerado pela navalha. "Saio desse mundo de merda para entrar para as estatísticas de merda" - bilhete ao lado do corpo. Grande cara aquele Getúlio Vargas. Ele entendeu o recado de Deus. Amém. 
......Procurei o telefone e descobri que havia escondido ele atrás de uma caixa de livros. Às vezes a gente não quer ser encontrado - você sabia dessa? Comecei olhando para o contato das amiguinhas. Ter amiguinhas é muito bom. Não, não estou falando de amigas! Não sei se você me entende. A porra das amiguinhas estavam todas aliviando a vida de alguém - imaginei. Que beleza, muita gente não vai se matar hoje, refleti. 
......HOMEM É TUDO IGUAL - gritava minha mãe do quarto quando eu desmaiava na porta depois de uma noitada daquelas. Colega... os tempos já foram bons! As mulheres não são muito inteligentes, escolhem sempre os piores! É que os bons terminam solitários se afogando numa garrafa de vinho. Por falar nisso, não tem vinho aqui. Isso é o que eu chamo de "absurdo". 
_Com quem estou falando? - Finalmente uma amiguinha atendeu o telefone. Patrícia. Rapaz... 
_Adriano Maranello Jr. O escritor, aquele! - Me apresentei animado. 
_O desgraçado que me convidou para sair esses dias e na balada fugiu com uma amiga minha? Esse? - gritou ela.
_NÃO! Esse era outro. O de agora é muito mais bacana!- Respondi. 
_Ah, VÁ SE FODER!
Desligou. 
Você acredita que ela desligou? 
                                  ***
......Você quer saber onde é que mora o perigo? Já vou te contar. Espera eu fazer mais uma dose. Resposta: Ele mora em tudo que é canto. Está sempre por aí. Espreitando por uma fresta. Por exemplo agora. Quebrei um copo na pia. Se não sou ligeiro, os cacos de vidro entram pelo buraco do meu nariz e cortam todo meu cérebro engenhoso. "Era um cara Quase inteligente, mas um pouco louco" - jornal. 
......Você termina com uma garota. Não muito esperta, mas cheia de habilidades e malabarismos. Ela fica sabendo que você está com outra garota. Numa madrugada dessas, ela te dá um tiro na rua.  No peito quero dizer, não na rua necessariamente. Tá vendo? É o perigo!
......Uma vizinha bate na porta do seu apartamento. Pedindo qualquer coisa. Eu digo:_ quer entrar? E ela aceita. O noivo dela fica sabendo depois que volta da academia de jiu-jitsu. Entendeu? 
......Esse mundo está infestado de gente doente. Na sombra de todas as mulheres tem um desgraçado louco para me matar. Posso ser paranoico, mas isso não muda o fato. 
...,,,Não tem o que fazer. Não há o que fazer! Não posso escrever, não posso entrar em contato com amiguinhas, não tenho para onde ir. Quando eu tinha 15 anos pensava que chegar aos 25 seria o máximo, seria o auge. Mas de lá para cá o mundo acabou. O apocalipse não era só uma lenda cristã. Ninguém pode me tirar desse buraco maldito e me dar uma noitada decente. Eu não mereço isso! Pago tantos impostos...

                                     ***

......Um vizinho interfona me convidando para jogar bola. Nem respondo. Desligo. Olhe para minha cara de quem quer jogar bola! Enfiem no cu a bola. Enfiem até sair pela boca. Só mocorongos gostam de futebol. Só gente que não é gente. Essa porra de planeta não é uma bola? Uma bosta flutuando no espaço. Cheia de idiotas flutuando junto. E aí um filho da puta se sente no direito de me interfonar para me convidar para jogar bola. "Faz bem pra saúde". Faz nada. Faz mal. Deixa todo mundo burro. 
......Se eu quisesse jogar bola não estava escrevendo - ou fingindo escrever. Se eu gostasse de jogar bola já teria me dado um tiro na cara. Teria me enforcado, teria tomado veneno, teria cortado o pau fora e cravado no ouvido. Tenho nojo de quem gosta de jogar bola. Tenho nojo de quem me interfona - quando não é uma amiguinha. 

                                 ***
......Vou te contar um segredo. Mas morre aqui, entre nós. Estou pensando em sair dessa. Virar uma pessoa boa. Acordar cedo e trabalhar. Desistir, sabe? Vou parar de escrever, sobretudo de "putear". Desencanar de toda complicação. Respirar a tranquilidade da disciplina e do orgulho cívico - no meio disso, vou aprender a cantar o hino nacional com a mão no coração. No domingo levar os filhos para brincar no parque. Não tenho filhos, mas eu adoto uns.  Se não puder adotar um filho eu compro um cachorro. De qualquer forma estarei no parque no domingo - você vai me ver lá, com certeza. Jogando farelo para os pombos ao entardecer. Contarei os dias para a aposentadoria. E nos sábados vou ajudar como churrasqueiro nas festas das comunidades cristãs. Acredite em mim que eu acho que não é saudável fazer piada com essas coisas dignas. Não duvide que eu sou capaz de qualquer loucura - inclusive aceitar um convite para jogar futebol quando me interfonarem. Eu e mais um punhado de sacudos que apanham da mulher, babam assistindo Faustão, são motivo de risada para os filhos adolescentes e lobotomizados, mas brigam no trânsito. Enquanto esse dia não chega, vou vivendo. Que bom viver, né? 

                                      ***

......Dessa vez foi Janaína quem ligou. Eu já tinha tirado os sapatos e tomado um chá para dormir. Chá é bom. Ainda mais com vodka. Chá de laranja. É importante você saber o que eu tomei. É peça chave nessa história. 
_Você ligou, mas eu só vi agora. Tá fazendo o que Adriano? - Disse ela, com aquela voz fininha. Irritantezinha...
_Estou aí, vendo o mundo se desintegrar... - Respondi. 
_Então... Estamos aqui numa festa, tá cheio de escritor aqui. Tem um pessoal do rock também. Já pediram de você, aliás. 
......Desliguei. Anote essa colega. Às vezes tudo que você precisa entender é quando ficou tarde demais. Essas coisas não se aprende na companhia de pessoas e por isso...



r.A. 

(ao som de BB King - The thrill is gone)

sábado, 7 de junho de 2014

Imaturidade fritinha com limão e sal Ou "depois de Rimbaud a gente só improvisa"...



......Você pode não acreditar, mas já tive meus BAIXOS e baixos. Altos nunca! Quando você está por baixo é sempre bom lembrar de quando esteve mais baixo ainda. 
......O caso é que andava trabalhando num emprego fodido de seis horas diárias. Seis horas remuneradas, quero dizer. O restante ia para os cofres públicos para ajudar algum político com sua vida difícil de herói que salva o mundo. Eu trabalhava bem mais do que seis horas - como todo mundo. E andava quatro horas de metrô e ônibus todos os dias, para ir e para voltar do tal trabalho. Foi meu estágio provatório no centro da humanidade. Acordava às quatro da manhã e precisava estar dormindo ou desmaiado às nove da noite - mas nunca conseguia dormir na hora que necessitava. Deitava na cama e olhava para o teto. "Que merda de vida é essa?" - resmungava até desmaiar, quando conseguia. 
......Ganhava 50 reais por dia, mas gastava 30. Minha piada favorita naqueles tempos era: "um dia tudo vai melhorar". Deve ser em momentos como esse que desenvolvi um senso de humor bastante dissimulado. Reduzido a nada ou você se torna um humorista no palco de sua tragédia ou se torna um assassino. Tudo depende de alguma coisa que nem sei. 
......Sentava por horas dentro de um café e me concentrava em não desabar por baixo da mesa. Durante essas horas que me concentrava em fases piores - e se não eram fases piores, usava de toda minha criatividade para torná-las, pelo menos, insuportáveis - ruminei um passado não muito distante daquele café. 
......Vou contar só para você sobre esse passado. Queria me tornar um escritor e achava que esse tipo de coisa se aprendia na universidade e na vida. Agora sei que isso é mentira, mas na época me capturaram vivo. Morava de favor e tinha uma bolsa de estudos. Precisava decidir entre comer, dormir ou encher a cara. Para ganhar tempo, nunca fazia uma coisa só por vez. Isso quer dizer: Comia cerveja num estado fisiológico entre o sono e o pesadelo, com os olhos abertos. Nos intervalos despertava sentado com a água do chuveiro entrando pelo nariz e pelos ouvidos - até hoje sou fanho e surdo! ha ha ha (some a isso o fato de ter desenvolvido deficiências visuais das mais variadas, pode-se concluir que eu sou mais parecido com uma berinjela do que com um humano). Rapaz, só dói quando a gente ri. 
......Se não bastasse eu estar no auge do meu "Sonho de um homem ridículo", escrevendo minhas "Notas do subsolo", ainda estava envolvido em uma relação com três mulheres histéricas.  Existem mulheres suficientemente loucas para se sentirem atraídas por berinjelas - digo isso antes que você pense que eu era sedutor. Por falar nisso, nunca fui capaz de "conquistar" nenhuma mulher. Não é difícil você imaginar os motivos. Mas! Ser um idiota ajuda muito mais com elas do que ser um cara descente. Não é uma lei, mas é quase uma regra de ouro. (se você é mulher, não muda muita coisa você morder os lábios e fazer que não com a cabeça depois de ler isso. Você sabe do que estou falando).
......Quando você é um desgraçado todas suas habilidades convergem para piorar tudo. E todas as vidas que se entrelaçam à sua sentem o sabor da dinamite. É quase uma música sertaneja dos anos oitenta! Sim, eu também acho cafona. 
......Tão logo eu brigava com uma das histéricas, me acertava com outra e continuava investindo na terceira. É claro que elas queriam me matar e quanto a mim, também andava pensando em morrer logo. Imaturidade fritinha com limão e sal. Depois de Rimbaud a gente só improvisa. 
......Arrastava meu corpo de berinjela pelas ruas me achando o máximo. E minha miséria espiritual podia ser ouvida em tudo que escrevia no meu quarto emprestado. As imagens mais nítidas na minha memória - pensando sobre isso - são a rua úmida que levava de um bar à outro e a luz do poste iluminando parcialmente meu quarto enquanto escrevia compulsivamente. 
......Um dia um cara bateu na minha porta e pediu para entrar. Um cara alto, negro e com olhos de assassino. Ele foi até meu quarto e catou alguns rascunhos que estavam pelo chão. Acendeu um cigarro e examinou meus textos por uns minutos. Fui até a cozinha e peguei duas garrafas de cerveja para nós. Ele resmungou:_ a maior parte do que você escreve é infantil, não acha? - Sorri e pensei: tai um cara que sabe como insultar um escritor onde dói! 
_Acho! - devolvi. 
_Um dia alguém vai acabar com essa tua festinha, camarada. - Resmungou ele, rindo. 
_A festa sempre acaba para todo mundo... - devolvi. 
_Mas parece que a tua vai acabar meio cedo... - prosseguiu ele. 
_Então vou aproveitar! - retaliei. 
_É. Aproveite. - devolveu ele. Depois saiu. 
"Não há quem tenha me conhecido que não tenha se decepcionado" - podiam muito bem escrever na minha lápide. Antes que o cara saísse ainda tive a audácia de perdi-lhe um cigarro. Não contente com isso pedi que ele acendesse para mim. Enquanto fumava refleti: Rapaz, você acha que está num filme de cowboy, mas a verdade é que está num pornochanchada de quinta categoria. 
......Bem, depois do ocorrido, uma das mocinhas se endireitou - o que prova que às vezes as mulheres ficam entretidas com idiotas até que um homem de verdade apareça na vida delas. Outra das mocinhas decidiu que arranjar outras mocinhas era mais interessante do que berinjelas - o que prova que em alguns casos mulheres se entendem melhor com mulheres do que com homens, se é que você me entende. E a últimas das mocinhas que restaram naquela minha vidinha ridícula achou mais interessante ir bater palma para o sol e tomar chá de mijo para salvar a espiritualidade. E não tiro sua razão, o sol é muito mais interessante para ser aplaudido. Quanto ao chá de mijo, melhor ficar com a cerveja.
......E seus escritos dessa época? - Você pode estar se perguntando. E se for esse o caso, é óbvio que coloquei todos num saco preto. Antes de deixar o quarto emprestado esqueci os textos no lixão da cidade. Dizem às boas línguas que, quando tacaram fogo no saco preto, um cheiro de merda queimada pairou sobre a montanha mágica. Não duvido. "Mas se você está escrevendo sobre isso é porque ainda não foi tudo superado" - dizem os psicanalistas de plantão. Mas nesse caso me parece que só escrevo sobre o que consegui superar (Como dizia Nietzsche). Bola pra frente - dizem os técnicos de futebol e os maconheiros profissionais. 
......Se eu me orgulho de tudo isso? É claro que não! Mas você acha que eu sou daquele tipo que só escreve para inflar o meu ego? Terapêutico mesmo é confessar vergonhas! E se eu lhe contei tudo isso é para "salvar" o que havia de literatura nisso tudo... O que é pouco, aliás. Fora o aprendizado na ingenuidade!
......Vamos voltar agora ao interior daquele café onde minha luta era não desmaiar. Eu quero te contar uma coisa sobre ser escritor. Toda a "filosofice" sobre ser um escritor é papagaiada, mas ninguém que escreve consegue pular essa página. Quando estou nos meus BAIXOS e baixos escrever é a coisa menos importante na minha vida. Falar "apesar de todas as dificuldades ele continuou escrevendo" é de uma besteirada inacreditável. Esse papo de vocação deveria ser banido da literatura. E não confunda "vocação" com "dedicação". Quando se multiplicam os livros sobre isso invés de se multiplicarem os próprios romances e tudo mais, acho que à coisa toda está desandando - feito água na maionese. Para mim isto se torna mais óbvio quando se nota que em uma palestra com escritores eles falam mais de suas obras do que sobre "como escrever uma obra". Todo escritor mais ou menos esperto sobre a composição só dá palestra para vender seus livros. Eles sabem que não se ensina isso para ninguém. Cá entre nós, eu sempre desconfiei de gente que fala sobre literatura e nunca publicou nada - exceto em jornais. (em jornal se escreve para vender jornal, pô!- quem não admite isso é mal caráter). Os "críticos", veja só, são aquele tipo que chupa bala com o plástico e faz cara de "gotosu pu bebezinho". Se você é um caso dos que embarcam nessa onda acho que você caí na mesma ilusão que eu caí por anos. 
......Não sei se você já soube sobre Henry Charles Bukowski, mas ele mesmo admitiu que essa conversa fiada de sofrimento não faz de um escritor um Escritor. Mas e se houver alguma coisa que possa salvar disso tudo? Quando um cara que realmente sofreu tem coragem de dizer que não é o testemunho do sofrimento, mas a escrita, que poderá perdurar um pouco mais, me parece que um pouco de sinceridade conseguiu penetrar pelo rabo do mundo. 

"O homem pode ser destruído e derrotado. Enquanto o Homem for feito apenas para ascender e não para cair, o Homem será derrotado, e destruído e derrotado e derrotado e derrotado e destruído. Somente quando o Homem aprender a salvar o que puder é que será menos derrotado e destruído."- Bukowski: Pedaços de um caderno manchado de vinho - Um velho bêbado que a sorte abandonou.

......E o que eu salvo - por exemplo agora- nunca é a ficção de minha história. É outra coisa que minha escrita pode deixar "entrever" nas frestas e nas faíscas. Se um macaco pudesse escrever a sua história você acha que ele diria que é um macaco ou um super-homem? 
......Fiz um gráfico aqui, nessa madrugada, enquanto olhava para a parede, com todo rigor da matemática econômica e segundo consta os dados nossa existência oscila entre o zero e o "-7". É de aplaudir de pé, não é?


r.A.

"Eu passava por um longo e fodido processo de aprendizado". 

terça-feira, 3 de junho de 2014

Otimismo para idiotas & pessimismo para dengosos!



......O filósofo francês Luc Ferry escreve no prefácio de seu livro "Aprender a viver" algo com o que concordo - e muito. Diz ele que para um cidadão comum é imprescindível conhecimentos básicos de história, literatura e matemática, mas é incrível que perdoamos que esses tais "comuns" não tenham um mínimo de instrução em Filosofia. Quanto a mim, penso que um sujeito que não saiba basicamente sobre Platão - no mínimo - deveria urgentemente voltar para a escola. E não sair de lá até que aprenda. (Nossa pedagogia está longe de fazer isso!).
......Já o alemão Friederich Nietzsche dizia na sua obra "A filosofia na era trágica dos gregos" que uma cultura que se pergunta para que serve a filosofia já está em plena decadência! A filosofia se legitima na medida em que se filosofa e uma cultura que não filosofa não fez seu dever de casa. Veja só, não estou dizendo de forma alguma que deveríamos todos nos tornar filósofos - nada disso! Continuo fazendo par com o tal Luc Ferry: um mínimo de instrução. 
......Acho no mínimo risível que poucos de nós sentimos a necessidade de filosofar. Digo risível porque acho ridículo. E sem filosofar, pelo que tenho visto, temos ampliado bastante nosso deserto da estupidez. 
......Somos cotidianamente bombardeados por máximas tanto do otimismo para idiotas quanto do pessimismo para dengosos. Bem, se essas máximas circulam livremente ausente de qualquer crítica o sintoma é óbvio: Se por um lado perdoamos que não se tenha um mínimo de instrução filosófica, por outro lado aceitamos qualquer baboseira 'bonitinha' que não passa do raso. Penso que uma coisa anularia a outra - na maioria das vezes. É possível que não levemos a vida a sério. Onde a vida é banalizada me parece que podemos esperar o pior. E por isso aceitamos que se diga qualquer coisa da vida - que se resmungue qualquer perspectiva frouxa. As consequências dessa preguiça intelectual são nítidas na cultura. Hoje uma bunda e um punhado de dinheiro se tornou o bem supremo! Nada exageradamente contra bundas e punhados de dinheiro, mas deixar essas coisas se tornar o norte de uma cultura nos torna um pouco mais medíocres. 
......Não tenho notícias de outro contexto histórico-social onde se falou tanto em superação - de 1970 pra cá. Mas quando observo mais atentamente o que é que foi superado por aqueles que falam tanto em superação me deparo com bundas lipo-aspiradas ou magrelos/magrelas que conseguiram adquirir mais carne para enfeitar os ossos e por aí segue o baile. Um amigo que dirige uma academia de ginástica e musculação disse esses dias que não aceita críticas sob suas tais superações. Aliás, dizia ele que não aceita críticas de gente gorda! (risos). Para ele e seu aguçado senso crítico os "gordos" sentem ciumes de suas superações! A mesma justificativa tenho visto para garotas cujo sentido existencial é mostrar os seios na internet. Dizem elas que tem o direito de fazer o que se sentem bem - não discordo, de forma alguma; desde que esse direito não atropele os direitos de outros em uma sociedade. Mas seguem discursando, as tais que encontraram o sentido último da vida, que qualquer crítica dirigida a elas não passa de ciume (geralmente dizem ser recalque, mas recalque é um conceito mil vezes mais complexo...).  
......Não se trata agora de apenas apontar o quanto isso é uma banalidade. Se trata de apontarmos algo que a sociologia bem transformou em objeto de estudo. Quando um sujeito "recolhe-se" à última resistência que acha possível, a saber, seu próprio corpo, é nítido que está tão frágil que não suportaria qualquer toque. E aqui o exibicionismo tosco denuncia uma ferida narcísica muito grave. A defesa do ego não é evocada gratuitamente! Essas pessoas sofrem - e por isso não param de discursar sobre sua superação. O último investimento destes, os tais otimistas, é transformar em discurso de aceitação o ápice de sua redução a forma orgânica. A luta que essas pessoas travam é a luta pelo resto de identidade que lhes sobrou. Quem agradece e incentiva tal coisa são as empresas de "saúde" e "cosméticos". 
......Nesse caso o otimismo é uma projeção de alguém que está literalmente na merda!
......Como nem só de otimismo se vive a vida, temos o pessimismo para dengosos. O Pessimismo (com P maiúsculo) enquanto sensação filosófica é pura desolação e risco fatal que muitos filósofos tentaram combater. Se pudesse rapidamente traçar um percurso histórico sobre o Pessimismo, teria que retroceder até o berço da civilização ocidental. Isso quer dizer a Grécia dos séculos XIX a.C. Lá, dada a constatação que muitas vezes a vida é sofrida e não tem sentido algum, se perguntava não só na filosofia, mas inclusive na política: A vida vale a pena ser vivida? O longo percurso entre os séculos XIX a.C. até o século III a.C. não deixou de refletir sobre essa questão. Para que a sociedade pudesse existir, para que a humanidade pudesse perdurar, era necessário combater essa falta de sentido da existência e suplantar o antídoto - ou seja: A vida vale a pena ser vivida! (basicamente substituir uma negação por uma afirmação).
......Mas uma coisa é esse Pessimismo "filosófico" e outra coisa é esse pessimismo para dengosos que aí está hoje. O pessimista dengoso é aquele que simula niilismo para ouvir uma palavra de alento - um bom conselho, um abraço e uma palavrinha de consolação. Esse hábito de ser "dengoso" (a lá Los hermanos - risos), no fundo, demanda justamente cuidados exagerados! Trata-se daquele fulano e aquela siclana que parece um poço de amargura, mas um mimo já é suficiente para converter seu mundo em um vale de girassóis. É próprio do que na sociologia se denominou "geração Y" - sobre isso não falo mais nada, se quiser saber mais trate de pesquisar ou fique aí resmungando feito um idiota (risos).
......Voltemos a Luc Ferry, só para fechar bem o texto. O nome de sua obra - que se tornou um dos livros mais vendidos em Filosofia - é extremamente sugestivo. Para Ferry o ser humano não é reduzido a um instinto natural que lhe impulsiona para uma existência determinada (como no caso da maioria dos outros animais) e nunca esta reduzido a mero acidente orgânico. Por tanto o ser humano deve aprender a viver - título da obra. E aprender a viver diz de uma ética. Por isso nosso amigo francês afirma que é imprescindível para qualquer cidadão um mínimo de instrução filosófica. A filosofia, além de uma constate elaboração e reelaboração de conceitos (por isso uma criação de saberes insubstituível em outras áreas do saber humano), é também um aprendizado de vida. Um exercício reflexivo inseparável do Éthos - reflexão sobre a moral. 
......Por isso apelo a filosofia no lugar desses otimismos para idiotas e pessimismos para dengosos. Se invés de ficarmos cuspindo máximas e se afogando no raso - como temos feito -, uma atitude bem mais estilosa e sábia, inclusive mais saudável da perspectiva de nossa vivencia em sociedade, estaria na reflexão sobre nossos conceitos. Porque convenhamos: a vida é bem mais complexa e exige muito mais rigor do que a redução a nossa ótica otimista e pessimista. O mundo cobra bem mais do que masturbação. 


r.A.

ps. Se você acha o máximo essas frases de auto-ajuda (como a da imagem que ilustra esse texto) e tem mais de 16 anos de idade, pelo seu bem, finja que não achou o máximo.