sábado, 17 de agosto de 2013

Decote...



......“Você pensa que o seu problema são as pessoas, mas o seu real problema é que você não passa de um imbecil” – Gritou Gabriela e depois bateu a porta. Um provérbio de Willian Blake dizia que “Aquele que já esteve sob seu domínio, te conhece”. Tanto faz. Blake é fresco e Gabriela vai voltar. A coisa toda começou lá pelas duas da manhã. Ela insistiu em me apresentar para dois amigos dela da faculdade de letras. Diziam eles que seria bom para seus estudos conhecer um escritor de verdade e trocar umas ideias... Bem, não sei o que é um escritor de verdade e desconfio da integridade moral de gente disposta a trocar ideias. Você já percebeu que todo bunda mole se sente excitado com essa ladainha toda de sentar num bar e trocar ideias?
......Lá estava eu, Adriano Maranello Jr, ouvindo blues em um bar e esperando os tais amigos de Gabriela. Minha camisa estava meio apertada na gola e meus sapatos novos estavam apertando os ossos nos meus pés; mesmo irritado com essas coisas, tudo melhorava meus ânimos uma vez que tinha o blues! Ela, com seus longos cabelos escuros e um decote descomunal, olhava apreensiva para o relógio. “Eles estão atrasados... será que se perderam?” – Resmungou preocupada. Aquela sua voz de menina meiga... Encarei seus olhos castanhos e sorri.
_...eles não vão vir. Vamos indo! – Falei.
......Uma faísca brilhou no fundo daqueles olhos castanhos. Aquele era o sinal de que eu acabara de irritá-la.
_...Sei o que você quer... Quer voltar para casa, transar, tomar um porre e ir dormir! Estou cansada disso Adriano! Chega de ficar trancafiado naquele apartamento! Precisa fazer como as pessoas normais! Conhecer gente nova, se divertir, porra!
......Exceto sobre o porre, Gabriela havia acertado. Exceto sobre o “fazer como as pessoas normais”... exceto sobre o “conhecer gente nova”... ela estava certa! A ideia do porre começou a ganhar espaço na minha mente. Ao som do blues, cantarolava mentalmente agora: O porre... o porre... tomar um porre e ir dormir... transar e tomar porre e ir dormir...
......Os caras apareceram. Estavam sorridentes. Tinham os dentes bem alinhados e as roupas bem passadas. Gabriela se levantou e acenou para eles. Primeiro abraçou o mais alto. Claudio era o nome dele. Estava vestido de azul e usava um cachecol vermelho. Tinha olhos grandes e voz anasalada. Depois ela abraçou o mais baixo. Jorge ele disse que se chamava. Usava uma jaqueta de couro e parecia que malhava da cintura para cima. Falava pouco, mas compensava sorrindo para todo mundo. Quanto a mim, até que fui simpático, até que apertei e sacudi a mão dos dois, quase me levantei da cadeira. Quase não sorri. Pensei nos avanços da pediatria, no quanto era complexa a manipulação de remédios nos laboratórios e nos conceitos chave do neoliberalismo. Aí acenei para o garçom e pedi mais uma cerveja e mais dois copos.
......Fiz um balanço geral sobre a situação. Bem: eles vão falar bastante... talvez duas horas? Aí serão quatro da manhã. Adriano é um sujeito de mente aberta. Enquanto bebe, consegue conversar sobre todos os tipos de assunto. Pode entrar e sair de qualquer pauta. Por exemplo, pode falar sobre o Oriente Médio, sobre a Rota da seda, sobre a economia atual, sobre o teatro e a dança, sobre as diferenças ideológicas dos jornais Folha de São Paulo e Estadão, sobre as costuras duplas nas botinas dos pedreiros, sobre a raça ideal de cachorros para se adestrar no interior afim de facilitar o trabalho com o gado, sobre o horóscopo chinês e o último filme sobre o Wolverine. É bastante coisa, não acha? Estipulei uma meta. Sair às quatro da manhã, pegar um táxi e depois pegar a Gabriela, tomar as seis últimas cervejas na geladeira, fumar um cigarro e ir dormir fedendo. O que faz um homem são seus objetivos e metas na vida! – e quantos rounds ele é capaz de suportar antes de cair ensanguentado ou jogar a toalha.  
“Tudo é simples, apenas não se mate” – dizia um cara que trabalhava numa ferro-esquadrilha.
......A coisa toda seguia conforme o planejado. Até que Claudio e Jorge foram ao banheiro. Gabriela esperou eles sumirem de vista e começou com a chateação:_ Caralho! Você só sabe dizer “sim”, “não”, “talvez” e “concordo”? Por que está sendo tão chato com as pessoas?
......Parecia ser uma questão interessante. Não havia me dado conta que tinha evitado por uma hora inteirinha qualquer tipo de conversa longa. “Então você escreve?- Sim – Gosta de Sam Savage, não é? – Talvez- Essa banda é boa... – Sim – Estamos estudando Graciliano Ramos na faculdade...- Concordo – É bem remunerado esse tal mercado editorial? – Não.”
_...Gabi... Prometo que entrarei a fundo no próximo assunto. – Jurei. “Assim espero” – ela reclamou.
......Vi, lá longe, nas outras mesas, que os sujeitos estavam voltando. Arrisquei uma apologia para salvar meu lado com ela.
_Gabi... Como posso te dizer isso... Sou um cara velho, sabe? Um sujeito um tanto cansado e sofrido... Tenho uma certa reserva para com as pessoas e além do mais, sou tímido...
......Gabriela girou os olhos nas órbitas e suspirou. Balançou os seios e isso chamou a atenção dos meus olhos para aquele decote. Essa parte foi ruim porque me fez pensar no preço que me custaria espiar um pouco mais daquele decote. Senti um minúsculo Adrianinho dentro de mim, vagando solitário por entre imensas geleiras, arrastando os pés com dificuldade. Na medida em que os sujeitos se aproximavam da mesa onde estava sentado, visualizava esse pequeno “eu” escavando com as mãos nuas no gelo em busca de um pouco de graça e simpatia. Lágrimas brotavam dos escuros olhos deste pequeno Adriano, mas decotes de morenas balançavam no horizonte gélido para incentivá-lo. E agora, dentro de mim, uma decisão fatal deveria ser tomada... uma questão de prazer ou morte! As mulheres não ligam para o gosto do fel na boca do sujeito que corre o risco de voltar sozinho para casa...
......A seis passos de Jorge e Claudio chegarem a mesa, Gabriela resmungou “Você não é velho e não é tímido, você é um mentiroso cara de pau”. Enfim, a verdade surge quando a gente menos espera, pensei.
......As intenções mais estranhas estão por trás de uma mulher que exige você ao seu lado. Às vezes você é bonito – esse não é o meu caso. Às vezes você é um sujeito em evidência que uma mulher pode usar para se destacar em um grupo – também não é o meu caso. Às vezes uma mulher te ama incondicionalmente – dizia mamãe... Augusto Cury, uma canção de sertanejo universitário e duas adolescentes bêbadas. Ou às vezes você é um cara legal com essa mulher e ela gostaria que você fosse tão legal como é com ela com os amigos dela... Tudo exige muito empenho!
......Quando os sujeitos voltaram, mudei da água para o vinho – um milagre, quero dizer! Porque na verdade mudei da cerveja para as doses de whisky. Teci tratados filosóficos sobre a literatura, a música, a existência e tudo mais. Eles adoraram, um deles até aplaudiu. Gabriela adorou o quanto me tornei afetuoso. Empurrei-lhe vários copos de cerveja até que ela sentiu de ir ao banheiro. Quando voltou os sujeitos decidiram que era chegada a hora de partir. Vai ver eles não gostaram muito do meu lado mais humano, concluí. Nos abraçamos afetuosamente, trocamos telefone, prometemos nos ver qualquer dia desses. Alguma coisa me dizia que esse negócio de conhecer gente nova, travar novas amizades e etc., enfim não era lá tão ruim assim.
......Gabriela acabou de bater a porta e dizer que sou um imbecil. É claro que esse tipo de situação é muito constrangedora para um homem. Mas pensando bem, acho que ela vai voltar... Olhei no relógio e passava um pouco da uma hora da tarde. Abri uma cerveja e sentei no chão do apartamento porque estava um pouco grogue – ressaca. Vi um bilhete sob a mesa do computador e estiquei a mão para alcançá-lo. Era, sem dúvidas, a letra de Gabriela – uma letra feia dos diabos! Li. “Imbecil. Não acredito que você subornou meus amigos para eles irem embora e quando eles não aceitaram o suborno, você ameaçou bater na cabeça deles com uma garrafa. Você é estúpido e não quero mais ver você! Espero que morra”.  
......Como ela descobriu o meu feito, nem sei. Imaginei que ela ligou para eles logo que acordou. Terminei minha cerveja com um pouco de vergonha de mim. Aquilo não foi muito gentil, realmente. Peguei o celular para ver se alguém havia me ligado nesse meio tempo. Ninguém. Decidi me castigar por ser um sujeito tão ruim – tomei banho e voltei para a cama.



r.A.

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