......“Você
pensa que o seu problema são as pessoas, mas o seu real problema é que você não
passa de um imbecil” – Gritou Gabriela e depois bateu a porta. Um provérbio de
Willian Blake dizia que “Aquele que já esteve sob seu domínio, te conhece”.
Tanto faz. Blake é fresco e Gabriela vai voltar. A coisa toda começou lá pelas
duas da manhã. Ela insistiu em me apresentar para dois amigos dela da faculdade
de letras. Diziam eles que seria bom para seus estudos conhecer um escritor de
verdade e trocar umas ideias... Bem, não sei o que é um escritor de verdade e
desconfio da integridade moral de gente disposta a trocar ideias. Você já
percebeu que todo bunda mole se sente excitado com essa ladainha toda de sentar
num bar e trocar ideias?
......Lá
estava eu, Adriano Maranello Jr, ouvindo blues em um bar e esperando os tais
amigos de Gabriela. Minha camisa estava meio apertada na gola e meus sapatos
novos estavam apertando os ossos nos meus pés; mesmo irritado com essas coisas,
tudo melhorava meus ânimos uma vez que tinha o blues! Ela, com seus longos
cabelos escuros e um decote descomunal, olhava apreensiva para o relógio. “Eles
estão atrasados... será que se perderam?” – Resmungou preocupada. Aquela sua
voz de menina meiga... Encarei seus olhos castanhos e sorri.
_...eles
não vão vir. Vamos indo! – Falei.
......Uma
faísca brilhou no fundo daqueles olhos castanhos. Aquele era o sinal de que eu
acabara de irritá-la.
_...Sei
o que você quer... Quer voltar para casa, transar, tomar um porre e ir dormir!
Estou cansada disso Adriano! Chega de ficar trancafiado naquele apartamento!
Precisa fazer como as pessoas normais! Conhecer gente nova, se divertir, porra!
......Exceto
sobre o porre, Gabriela havia acertado. Exceto sobre o “fazer como as pessoas
normais”... exceto sobre o “conhecer gente nova”... ela estava certa! A ideia
do porre começou a ganhar espaço na minha mente. Ao som do blues, cantarolava
mentalmente agora: O porre... o porre... tomar um porre e ir dormir... transar
e tomar porre e ir dormir...
......Os
caras apareceram. Estavam sorridentes. Tinham os dentes bem alinhados e as
roupas bem passadas. Gabriela se levantou e acenou para eles. Primeiro abraçou
o mais alto. Claudio era o nome dele. Estava vestido de azul e usava um
cachecol vermelho. Tinha olhos grandes e voz anasalada. Depois ela abraçou o
mais baixo. Jorge ele disse que se chamava. Usava uma jaqueta de couro e
parecia que malhava da cintura para cima. Falava pouco, mas compensava sorrindo
para todo mundo. Quanto a mim, até que fui simpático, até que apertei e sacudi
a mão dos dois, quase me levantei da cadeira. Quase não sorri. Pensei nos
avanços da pediatria, no quanto era complexa a manipulação de remédios nos
laboratórios e nos conceitos chave do neoliberalismo. Aí acenei para o garçom e
pedi mais uma cerveja e mais dois copos.
......Fiz
um balanço geral sobre a situação. Bem: eles vão falar bastante... talvez duas
horas? Aí serão quatro da manhã. Adriano é um sujeito de mente aberta. Enquanto
bebe, consegue conversar sobre todos os tipos de assunto. Pode entrar e sair de
qualquer pauta. Por exemplo, pode falar sobre o Oriente Médio, sobre a Rota da
seda, sobre a economia atual, sobre o teatro e a dança, sobre as diferenças
ideológicas dos jornais Folha de São Paulo e Estadão, sobre as costuras duplas
nas botinas dos pedreiros, sobre a raça ideal de cachorros para se adestrar no
interior afim de facilitar o trabalho com o gado, sobre o horóscopo chinês e o
último filme sobre o Wolverine. É bastante coisa, não acha? Estipulei uma meta.
Sair às quatro da manhã, pegar um táxi e depois pegar a Gabriela, tomar as seis
últimas cervejas na geladeira, fumar um cigarro e ir dormir fedendo. O que faz
um homem são seus objetivos e metas na vida! – e quantos rounds ele é capaz de
suportar antes de cair ensanguentado ou jogar a toalha.
“Tudo
é simples, apenas não se mate” – dizia um cara que trabalhava numa ferro-esquadrilha.
......A
coisa toda seguia conforme o planejado. Até que Claudio e Jorge foram ao
banheiro. Gabriela esperou eles sumirem de vista e começou com a chateação:_
Caralho! Você só sabe dizer “sim”, “não”, “talvez” e “concordo”? Por que está
sendo tão chato com as pessoas?
......Parecia
ser uma questão interessante. Não havia me dado conta que tinha evitado por uma
hora inteirinha qualquer tipo de conversa longa. “Então você escreve?- Sim –
Gosta de Sam Savage, não é? – Talvez- Essa banda é boa... – Sim – Estamos estudando
Graciliano Ramos na faculdade...- Concordo – É bem remunerado esse tal mercado
editorial? – Não.”
_...Gabi...
Prometo que entrarei a fundo no próximo assunto. – Jurei. “Assim espero” – ela reclamou.
......Vi,
lá longe, nas outras mesas, que os sujeitos estavam voltando. Arrisquei uma
apologia para salvar meu lado com ela.
_Gabi...
Como posso te dizer isso... Sou um cara velho, sabe? Um sujeito um tanto
cansado e sofrido... Tenho uma certa reserva para com as pessoas e além do
mais, sou tímido...
......Gabriela
girou os olhos nas órbitas e suspirou. Balançou os seios e isso chamou a
atenção dos meus olhos para aquele decote. Essa parte foi ruim porque me fez
pensar no preço que me custaria espiar um pouco mais daquele decote. Senti um
minúsculo Adrianinho dentro de mim, vagando solitário por entre imensas
geleiras, arrastando os pés com dificuldade. Na medida em que os sujeitos se
aproximavam da mesa onde estava sentado, visualizava esse pequeno “eu”
escavando com as mãos nuas no gelo em busca de um pouco de graça e simpatia.
Lágrimas brotavam dos escuros olhos deste pequeno Adriano, mas decotes de
morenas balançavam no horizonte gélido para incentivá-lo. E agora, dentro de
mim, uma decisão fatal deveria ser tomada... uma questão de prazer ou morte! As
mulheres não ligam para o gosto do fel na boca do sujeito que corre o risco de
voltar sozinho para casa...
......A
seis passos de Jorge e Claudio chegarem a mesa, Gabriela resmungou “Você não é
velho e não é tímido, você é um mentiroso cara de pau”. Enfim, a verdade surge
quando a gente menos espera, pensei.
......As
intenções mais estranhas estão por trás de uma mulher que exige você ao seu
lado. Às vezes você é bonito – esse não é o meu caso. Às vezes você é um
sujeito em evidência que uma mulher pode usar para se destacar em um grupo –
também não é o meu caso. Às vezes uma mulher te ama incondicionalmente – dizia
mamãe... Augusto Cury, uma canção de sertanejo universitário e duas
adolescentes bêbadas. Ou às vezes você é um cara legal com essa mulher e ela
gostaria que você fosse tão legal como é com ela com os amigos dela... Tudo
exige muito empenho!
......Quando
os sujeitos voltaram, mudei da água para o vinho – um milagre, quero dizer!
Porque na verdade mudei da cerveja para as doses de whisky. Teci tratados
filosóficos sobre a literatura, a música, a existência e tudo mais. Eles
adoraram, um deles até aplaudiu. Gabriela adorou o quanto me tornei afetuoso.
Empurrei-lhe vários copos de cerveja até que ela sentiu de ir ao banheiro.
Quando voltou os sujeitos decidiram que era chegada a hora de partir. Vai ver
eles não gostaram muito do meu lado mais humano, concluí. Nos abraçamos
afetuosamente, trocamos telefone, prometemos nos ver qualquer dia desses.
Alguma coisa me dizia que esse negócio de conhecer gente nova, travar novas
amizades e etc., enfim não era lá tão ruim assim.
......Gabriela
acabou de bater a porta e dizer que sou um imbecil. É claro que esse tipo de
situação é muito constrangedora para um homem. Mas pensando bem, acho que ela
vai voltar... Olhei no relógio e passava um pouco da uma hora da tarde. Abri
uma cerveja e sentei no chão do apartamento porque estava um pouco grogue –
ressaca. Vi um bilhete sob a mesa do computador e estiquei a mão para alcançá-lo.
Era, sem dúvidas, a letra de Gabriela – uma letra feia dos diabos! Li. “Imbecil.
Não acredito que você subornou meus amigos para eles irem embora e quando eles
não aceitaram o suborno, você ameaçou bater na cabeça deles com uma garrafa.
Você é estúpido e não quero mais ver você! Espero que morra”.
......Como
ela descobriu o meu feito, nem sei. Imaginei que ela ligou para eles logo que
acordou. Terminei minha cerveja com um pouco de vergonha de mim. Aquilo não foi
muito gentil, realmente. Peguei o celular para ver se alguém havia me ligado
nesse meio tempo. Ninguém. Decidi me castigar por ser um sujeito tão ruim –
tomei banho e voltei para a cama.
r.A.
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