......A
maior armadilha para um jovem filósofo é pensar que depois de ter se revolvido
em dois milênios de tradição, levando cruzados de direita, de esquerda, de
cima, de baixo, dos velhos mestres, será tranquila sua convivência com um
rebanho que tem dificuldades até mesmo para pedir licença para usar o banheiro.
Você não acha? Embora seja fácil para eu escrever essa frase de abertura, não
podemos perder de vista que a escrita não é sempre a linguagem mais adequada
para manifestar o ruído de nossos ossos estalando enquanto apreendemos algumas
verdades. Ou você acha que os escritores de todos os gêneros apenas se sentavam
e cagavam obras primas? Primeiro eles/elas levaram uma “centena de milhar” de
bofetadas na cabeça – e outra centena de bofetadas no espírito! É claro que as
coisas ficam mais críticas quando o aluguel vence no dia 5.
......
Eu imagino que se você já ponderou todas essas questões que levantei acima, já
deve ter superado uma série de outras questões mais “prosaicas”. Quer dizer,
você já se deu conta que bajular as massas não é filosofia, que salvar o mundo
também não é filosofia (Ou Batman seria um grande filósofo!), assim como deve
ter sentido na pele que fazer críticas a sociedade nunca transformou ninguém em
filósofo, e que é mais fácil dizer “Adeus à filosofia” do que dizer “E aí gata,
pronta pra outra?” (Viu Cioran? Achou que eu não tinha respostas para você?).
Com o pouco de experiência que tenho já deu para entender que escolher se
expressar por onde a tradição nos liberta é escolher levar a sério uma fratura
exposta! Ora, sugiro para qualquer um que desanima, que examine com mais
cuidado sua própria solidão. Foi conquistada? – Já começamos bem! Foi infligida
por outros? – Já começamos mal!
......Para
mim a Arte – sim, a com “A” maiúsculo – seria a prima da filosofia.
Provavelmente a parente mais próxima nesses dias. Talvez a diferença mais óbvia
entre ambas no trato – na maneira em que comumente se trata ambas, quero dizer
– é que as grandes obras estão disponíveis para se tirar uma bela foto ao lado!
(Eu mesmo já escapei de um segurança e tirei uma foto em frente a uma obra do
Modigliani!). Já no caso da filosofia não dá para você tirar uma foto ao lado
de um conceito! Por isso a maioria das pessoas acreditam saber o que fazer com
uma grande obra de arte, mas não sabem muito bem o que fazer com um conceito.
Já que não é possível ensiná-lo (um conceito em filosofia só se conquista com
um salto, nunca com um mero lance de escadas), não é possível comprá-lo numa
galeria, não é possível trocá-lo por uma imensa quantia em dinheiro (é com a
escada que a editora fatura, não com o conceito!) e mesmo que você insista em
colecioná-los, não vai dar para se gabar quando aqueles seus amigos chiques
vierem visitá-lo. No máximo aquela sua amiga ou aquele seu amigo chique cairão na gargalhada se você jogar um conceito filosófico sobre a mesa durante um
jantar. Irão dizer:_Uau, não entendi nada do que você disse, você deve estar
louco! Obs: Ser chique é quase sinônimo de ser idiota! – Só para constar. Obs
2: Não reduzi a arte a “tal coisa”... apenas disse que “tal coisa” é possível
com a arte – e é claro que ela perde sua singularidade no trato, algumas vezes,
mas não sempre!
......Por
outro lado, temos a poesia. Dizer que a poesia não faz parte da filosofia –
depois de Nietzsche – é querer levar umas duras bordoadas na frente de um
filósofo (risos). Mas você já foi num recital de filosofia? Não me leve a mal,
mas mesmo que houvesse, eu não iria! Para ser sincero, é difícil para mim ir
até a um recital de poesia – ao menos que tenha vinho bom no cardápio (e de
graça, assim como em exposições de arte! Alguém tem que acalmar meus olhos e
ouvidos por aturar tanto...). Nada contra a poesia, mas os recitais são tipo um
atentado contra a poesia! Mas dá para fazer! Vê? Já é alguma coisa – ruim, mas
é. Os poetas ou seus funcionários terceirizados (risos) conseguem fazer isso. E
em geral, tem muita gente que adora! Alguns até pagam. Ei! Me ocorreu uma ideia
agora. Provavelmente foi isso que matou Sócrates: Recitar filosofia! Se ele
tivesse dito que era um poeta, teria chegado aos 73 anos! Mas voltando ao
assunto, se você disser que é um poeta, aqueles que não pensam que você não
passa de um vagabundo, pensaram que você é um grande intelectual. Sendo um
grande intelectual, você já corre o risco de ter sua foto estampada na capa de
alguma revista – e nem precisa ser de poesia -; já vi foto de poeta até em capa
de folheto de revendedora de carros, calendários para fixar na geladeira,
bandeira de time de futebol, camiseta de roqueiros em decadência, etc. Mas e quanto aos filósofos? Ops, recordo de
uma história! Um cara uma vez me abordou – obviamente em um show de rock – com
uma tatuagem do Nietzsche. É claro que mandei ele a merda! A tatuagem estava
horrível. Mas vamos continuar...
......É
impossível para mim não abordar uma passagem cômica na vida de todos (ou a
maioria, pelo menos) que escolheram a filosofia muito cedo. (Consigo até ver
algum engraçadinho dizendo “nunca é cedo demais para a filosofia” – então
ensine Schopenhauer para uma criança de 2 anos, cowboy!). Aquele domingo,
naquele encontro de família, onde algum parente seu pergunta o que você faz da
vida e você responde:_ Sou filósofo (A). Ou professor(A) de filosofia – que é
uma tautologia. Diga aí, qual é a
próxima pergunta? Ah, não seja tímido! A próxima pergunta é:_ E ganha quanto
com isso? Ou “que diabo é isso?”. É nessas horas que toda a galera violenta vem
na sua cabeça (Heráclito, Sócrates, Platão, Aristóteles – pulemos os medievos,
ok? – Descartes, Hume, Kant, etc.) e você sabe que quanto melhor explicar sua
escolha, menos será compreendido. Também há dois riscos em não ser compreendido
nessas situações: 1- É louco (A). 2- É vagabundo (A) e essa vagabundagem já o
levou a loucura! Era mais fácil ter dito que era poeta – pelo menos se livrava
do “louco”. Sempre gostei de um termo
que minha família usava para mim: “Louco de sem vergonha”. Bem, melhor do que
ser vereador.
......Depois,
chegando na reta final para o término do seu curso de filosofia (eu imagino que
você não é bobinho o suficiente para dizer por aí que é filósofo sem nunca ter
cursado filosofia em uma universidade – e não estou me referindo à “filosofia
da educação” – razoável), se você for um sujeito dedicado irá perceber que seus
professores lhe ensinaram apenas o superficial. Pior que isso! O superficial de
suas próprias interpretações dos filósofos! Eu me referi aos dedicados porque
sei que existe uma porção de ‘sofistas’ no curso de filosofia. Quero dizer,
gente que teria sucesso como vendedor de t.v. à cabo tanto quanto filósofo!
Gente que quase desmaia quando ouve falar em Marilena Chauí ou Viviane Mosé –
nada contra, mas que tal começar a falar de Deleuze, Foucault, Heidegger, até
Sartre...? Os professores nem sempre tem culpa da superficialidade, mas
acontece que numa universidade – que não dá bola para a filosofia, e é raro uma
universidade se preocupar com a filosofia – os professores são obrigados a
trabalhar muitos períodos e autores que não dominam. E é pior quando não
gostam! Resumindo: Na reta final, se você for alguém que se dedica para além
das demonstrações de erudição patética no bar, começará a perceber que terá de
reler quase tudo – novamente! Pelo menos isso aconteceu comigo. Passei dois
anos com um olho nos “clássicos” – sem perder de vista que o clássico é sempre
uma conveniência – e com outro olho nas questões atuais – nos contemporâneos,
por assim dizer. E o aluguel ainda vence dia 5.
......Para
esse texto não ficar mais longo do que já é, vou resumir mais alguns problemas.
O descaso do estado com a educação, a baixa remuneração, a sociedade de cultura
banalizada gerando adolescentes lobotomizados – que você raramente consegue
reverter suas energias em pensamentos... –, a guerra de cargos nas escolas...
Tá bom para você ou quer mais? Seguimos. Se você quiser retornar para a
universidade, espero que tenha um bom padrinho! – Só isso. Já vi muito
‘sofista’ desfilando por aí com doutorado. Gente que ainda acha que teoria das
ideias não é uma ilustração que Platão ironizou para tirar um sarro da cara de
uns sofistas. Gente que pensa que Nietzsche era nazista! (risos). Já vi cada
coisa nesse campo meus amigos... Já vi até historiador escrevendo artigo sobre
Paulo Freire e relacionando com “Assim falou Zaratustra” – e se dizia filósofo
à praga! E já que para ser filósofo hoje em dia basta dizer que é (assim como
para ser artista basta expor nos sesc’s por aí...), tenho me espantado quando
pergunto para o dono do bar aqui da esquina se ele é filósofo e ele me responde
“pela milésima vez, NÃO!”. r.A.:_... mas e sua mulher? Não sei não... vai ver
ela é doutora da USP e lê Kant escondida de você! – aí o desgraçado finge que
não me ouve e saí.
......Não
sei não, hoje em dia a gente tem que desconfiar de todo mundo. Antes de vir
morar aqui em São Paulo, uma tarde cheguei em casa e vi a porta aberta. Era
minha mãe. Já que ela sabia onde eu escondia a chave, entrou para me esperar.
Aproveitou que não tinha nada para fazer e correu os olhos em algumas anotações
que deixei sobre a mesa da sala. Quando entrei e perguntei como ela estava, ela
respondeu:_... olha filho... não querendo ser chata, mas acho que mesmo que
você chame de “torção” a maneira como Deleuze aplica os conceitos de um
filósofo de um contexto para outro contexto... quero dizer, ignorando o
percurso que o filósofo trilha até compor seus conceitos mais maduros, ele se
equivocou com Nietzsche ao interpretar “O nascimento da tragédia” com o
conceito de “Força” que Nietzsche só desenvolve depois da Gaia Ciência. Mesmo
que você desenvolva a noção de história da filosofia de Deleuze como uma
geografia do pensamento e não como uma historiografia, você ainda vai ter que
melhorar isso!
-Pronto.
Minha mãe. Nem completou o ensino médio. Filósofa e aniquilando meu projeto
para o mestrado! Obs: Isso que vocês não viram ela falando de Diderot.
......Outro
dia ainda, entrei no bar e o dono do bar, enquanto recolhia os copos
resmungava:_ Hegel. Sua fenomenologia do espírito era simples demais. Disputa
de duas consciências-de-si! Que disparate! Não estou certo se uma história que
se desenvolve em uma dialética rumo ao absoluto possa ser chamada ainda de
dialética. Que fiasco! – Ainda prefiro Schopenhauer. Unff.
(rá
rá rá).
É por isso que eu frequento esse bar!
......O
truque para fingir que há alguma coerência em todos os meus escritos, é retomar
a primeira frase! Digamos então que você esteja se vendo em maus lençóis por
ter escolhido a filosofia em algum momento de sua vida. Digamos que você se vê
nesse estado porque não vê resultado, não faz fortuna com isso e nem fica
famoso. Isso são problemas a longo prazo. Vamos pensar nos mais imediatos.
Digamos que você nota que o número de pessoas com quem você frequentemente
conversava, agora, o simples timbre de suas vozes lhe causa um mal estar e você
pensa que o problema é com você. Te diria que realmente é com você. Para ser
franco, não entendo como pessoas que reclamam dessas coisas ainda não mudaram
de curso ou profissão. Quero dizer, vá para o direito, para a arquitetura, faça
um concurso para um banco, essas coisas – você sabe. Com essas reclamações, não
vai dar pra ti! E isso é só o começo. As coisas vão piorar muito daqui para
frente. Eu já trabalhei numa mecânica, numa floricultura e cogitei a hipótese
de trabalhar numa funerária – buscava tranquilidade, sabe. Se você descobrir
que queria reconhecimento e dinheiro, vai descobrir que realmente não queria
filosofia! Em algum momento você pensou – por alguma interpretação equivocada,
sei lá – que a filosofia era bacana! Ser filósofo, nesses termos, nesses tempos,
é pior que... ser lutador de boxe ilegal – também fiz isso por um tempo, mas
tinha um problema no nariz (ele doía quando batiam nele).
......Tem
tanto Marx e Freud por aí, não revelados ainda, passando fome, escrevendo boas
coisas, parindo bons conceitos, etc.; e esses caras, daqui meio século ou mais
- se você for apenas um idiota que pensa ser um gênio porque já leu todos os
filósofos e entendeu Kant-, quero dizer, esses caras, vão ajudar outros caras a
rirem das besteiras que você pensou durante uma vida toda. Isso se você chegar
até lá! Se você for bom o suficiente para ser um mediano!
Deixe-me te encorajar ainda mais: Nada disso é a curto prazo. Nada disso é
próximo a quando você terminar de pagar a última prestação do seu carro (em 40
x sem juros). Embora os escritores nunca admitirão isso – muito menos os
artistas -, ser filósofo é pior que ser escritor! Porque todo escritor de
merda, que vomita besteiras bem torneadas, onde a merda e o vazio se oculta por
trás de um estilo (geralmente cópia de algum outro escritor), vai rir dos
filósofos. Faz parte de ser um escritor: Falar merda, escrever nada e rir da
filosofia (eu sei muito bem disso, ataco de escritor às vezes e com outros
escritores medíocres como eu, falo merda, escrevo nada e dou risada da
filosofia – com conhecimento de causa)! E as ciências humanas então... bebem
descaradamente da fonte da filosofia sem nunca admitir! O que é sociologia,
psicologia, história, boiologia, se não métodos lapidados, polidos, até
reluzir? Eles nunca aprendem um conceito, mas se acham aptos para julgar
precisamente as ingenuidades dos filósofos – que enfim, eram apenas humanos,
mais humanos do que as ciências humanas! Prefiro Descartes a qualquer
psicanálise! – Não porque “funciona”, mas porque estava menos preocupado com o
funcionamento do seu bilau.
......Vamos
as coisas boas então, finalmente! A coisa boa é que eu entendo e posso
responder cada frase desse texto. (Os gregos antigos, quando não tinham nada
mais importante para fazer, chamavam isso de “logos”). E cá do meu canto, não
tenho padecido de 99% das coisas que vejo as pessoas padecerem todos os dias.
Tudo que tenho vivenciado em termos de filosofia se resolve imediatamente. Não
vivo corroído por questões (ouviu essa Cioran?). Me sinto bem a vontade com
paradoxos, com o caos (Nem acho o Caos grande coisa, me dá até sono!), com a
morte de Deus, e para ser franco, é coerente e racional demais para mim o
capitalismo. Estou dizendo como a coisa é, não estou reclamando de como as
coisas são. Podia ser diferente? Podia. Isso tem a ver comigo e com você? Tem!
Dá para manter a morte afastada? Não. O quê mais você quer perguntar? Se sua
mulher (homem) vai lhe trair um dia? Depende. Se der na telha dela (e), ela (e)
vai! Se vai adiantar matá-la? A longo prazo, não. A curto prazo, também não.
Vão rir da sua cara do mesmo jeito. Mas fique tranquilo, algum clube vai te
aceitar! – não sei que diabo deu na cabeça das pessoas de pensar que filosofia
é formular questões ou responder questões!
......As
coisas boas? Ah, já tá longo demais esse texto. Leia aí. Tire algumas coisas
boas. Não é possível que eu só tenha escrito coisas ruins – o pior é que é bem
possível. Pior é encontrar uma metodologia para interpretar a memória de uma
sociedade (risos) e acreditar nisso! Pior é acreditar no jornal! Mas se apesar
de tudo você ainda vai querer continuar, conte-me o que foi que encontrou lá.
Lá, onde poucos foram. Lá onde não basta dizer que se é. Lá, onde as palavras
não bastaram, mas foi o que restou. Apesar de tudo, temos a música.
r.A.
“A
vida sem música seria um erro”
_Nietzsche,
possivelmente sóbrio.
“A
vida sem música ou com música continuaria sendo uma sucessão de erros, mas
errar com música é melhor”.
_Rodrigo.
Copo de vodca do lado direito.
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