......No
renascimento (alemão e italiano) os burgueses pagavam escritores medíocres para
escrever a biografia de suas vidas. Que essas biografias não tenham chegado até
nós é um acontecimento que poderia ser estudado com profundidade. Mas minha
hipótese é que a vida de um burguês é tão entediante que até um escritor
medíocre sentia que fora um mau negócio ter aceitado a empreitada! Quer dizer,
provavelmente não valeria o esforço e tão pouco à recompensa.
......Schopenhuaer
(aquele filósofo alemão que ninguém conhece) disparava na cara de sua mãe que
os relatos de viagem que ela fazia e que lhe renderam uma espécie de aceitação
enquanto literatura, não passava de uma baboseira. Ora, baboseira essa que
enganava, inclusive, caras sérios – tipo Goethe. Basta você saber que
Schopenhauer era um filósofo para entender que tomar biografias como literatura
só podia ser de péssimo gosto!
......Dia
desses eu andava dentro de uma livraria – estava procurando um livro de Russell
– quando parei por um segundo para
pensar, me vi trocando olhares com Neil Young. Uma cara de velho, um pouco
sombria, com um chapéu puído e o olhar escondido na sombra da aba do chapéu. Li
na capa: Autobiografia. Ao lado desta capa, biografia do ACDC, biografia do
Metallica, biografia do Aerosmith, biografia do One direction, Justin “baby”,
até do Restart! Perguntei para a moça que atendia no balcão:_ Isso tudo vende?
E ela, sorrindo gentilmente:_ É o que mais vende na nossa livraria! É claro que
pensei: O dia que eu estiver falindo, tratarei de escrever minha autobiografia,
vai que consigo um dinheiro para o aluguel?
......Se
você pensar a sério sobre um autor de transição do renascimento para a
modernidade – na França -, você chegará em Renè Descartes. E seu “Discurso do
método” e o seu “Meditações metafísicas”, começam com um caráter
autobiográfico. Sabe o que é engraçado? Quando passo pelas bancas de jornais na
Av. Paulista, o que mais vejo é esse livro Discurso do método. É claro que fico
pensando quem teria saco para ler esse livro – embora saiba de sua importância
histórica e filosófica... aliás, nunca vi um autor mais mal compreendido nas
universidades do que Descartes. Quando alguém das ciências humanas fala “essa
modernidade cartesiana” eu sei que se trata de alguém que não sabe o que é modernidade
e não sabe o que é cartesiano! Fora Descartes, você encontra também, nessas
banquinhas de jornais, algum diálogo do Platão. Outro bem pouco compreendido.
Quando alguém das ciências humanas fala “esse idealismo platônico”, sei que se
trata de alguém que não sabe o que é Idealismo e não sabe o que vem a ser
Platão. Sabe, quando alguém fala “mundo
das ideias” ao invés de “mundo das formas”, eu já sei que tipo de tradução o
infeliz andou lendo. Agora, você acha que eu me incomodo com isso? Claro que
não! É bem sabido que o lugar onde mais se falam coisas sem se compreender do
que se está falando é nas universidades.
......Ontem,
enquanto estava matando tempo e me esquivando de diversos afazeres, folhava uma
revista de história. Lá pelas tantas me deparo com um artigo com um tema mais
ou menos assim: “o resgate histórico das biografias”. O artigo, “bem mal”
escrito, obviamente. Realmente gostaria que o pessoal das ciências humanas
fizessem algumas oficinas de escrita para parar de acreditar que basta meia dúzia
de citações e alguns comentários para atingir um trabalho “razoável”. Mas
enfim, me torturei lendo o bendito artigo. Não havia nenhum resgate da escrita
biográfica, havia apenas uma nota do tipo: “então, hoje em dia, se tem retomado
o valo histórico da biografia e autobiografia” – só. Tratava-se de um
doutorando em história... fiquei mexendo nos meus bigodes e me perguntando:_
quem orienta esses diabos? Espremendo o artigo de dez laudas, não dava para
retirar cinco frases razoáveis. Você não
acha isso triste?
......Acredito
mesmo que existem autobiografias dignas de passagem, por exemplo “Ecce Homo” de
Nietzsche. Esta autobiografia me livra das baboseiras de comentadores que
pensam poder chegar ao conceito de um filósofo se fiando na bendita “contextualização”.
Uma lógica que desanda em um imenso fiasco: “e fulano pensava assim graças ao
seu contexto histórico-social, blábláblá”. Está é a leitura mais idiota que se
pode fazer de um filósofo, de um escritor, de um artista, etc. É muito raro
você precisar o que foi causado pelo contexto e o que não foi em um autor. Um
filósofo, com raras exceções, transvalora seu contexto em texto! Essa passagem,
esse tipo de “alquimia”, as palavras não fazem figurar. A palavra é
insuficiência no caso da filosofia. Porém, um mal necessário. Coerência é
ingenuidade de matemático – até um matemático sério sabe que seu pensamento
transmutado em função passa por uma aproximação, uma analogia, nunca uma
igualdade! Calcular é “calcular em relação a algo” e isso é mais metafísico do
que se quer admitir! A maiêutica socrática, Platão transformou em ironia para
dar bordoadas nos sofistas. Os pitagóricos nunca iludiram Platão!
......Não
lembro direito onde Cioran (filósofo e antí-filósofo, ao mesmo tempo) disse
isso (acho que foi em uma obra chamada Silogismos da amargura), mas disse que
achava engraçado que na possibilidade da biografia, alguém ainda não teria
renunciado a vida. E está foi minha chave de interpretação para este fenômeno
editorial (risos) da biografia – autobiografia. Dado o interesse crescente pelo
“indivíduo” (não confundir com o individualismo), a biografia e autobiografia
passou a suscitar curiosidade. E no capitalismo todos sabem que gente curiosa
pode significar lucro! Os que já foram famosos (até tu Neil Young? – risos)
agora tentam o último golpe, revelando como chegaram até lá! E os que nunca
tiveram fama, agora, contratando um escritor medíocre, sentem que podem, pelo
menos, gerar uma biografia que insista em uma identificação com o público. Veja
só, eu falo isso com conhecimento de causa – bem profunda, aliás. Tenho aqui,
entre os livros na minha biblioteca particular, biografias de Kurt Cobain, Jim
Morrison, Ian Curtis, Sex Pistols, Charles Bukowski, e alguns outros. (Cito
biografias de bandas porque nessas biografias se tem uma coleta de dados em
conjunto).
......Tenho
cá comigo que há duas maneiras de conseguir “fama”. E nenhuma delas são
positivas. O(s) sujeito(s) que persegue(m) fama, parece(m) se encaixar muito
bem no que Cioran disse: Renunciam a vida pela possibilidade de uma biografia
interessante – interessante para as massas, para o coletivo. Se é esse o seu
caso, vou lhe dar uma boa dica – de graça, ainda! Faça o diagnóstico do que
agrada a maioria das pessoas. Feito esse diagnóstico, fale em público apenas o
que agrada – guarde para si o que desagrada! Simples. É assim que hoje se faz
política no Brasil. Tanto faz se você é de direita ou de esquerda, isso é um
detalhe. Os partidos estão tão desvinculados com suas ideologias, que fazer
política está mais para fazer marketing pessoal do que para “lutas
ideológicas”. Nesse sentido, só um bobalhão acredita em um partido por
pressupostos ideológicos! As reuniões de portas fechadas nos sindicatos não são
mais para decidir rumos ideológicos, são para fixar parcerias! A verdadeira
decisão é tomada no bar ou no churrasco de domingo! Não sou tão pessimista
assim, imagino que existam pessoas que realmente vistam a camisa
“política-ideológica”, mas estes estão mais para o sujeito que vai num baile de
formatura de chinelo de dedo – E reclama porque as “minas” não querem ficar com
ele! (risos).
......Uma
segunda possibilidade de adquirir a bendita “fama”, reside em ser
“garoto/garota propaganda de alguém/empresa/marca – fantasia/ etc.”. Também é
um jeito ótimo de renunciar a vida na possibilidade de uma boa biografia. Se
até o Tom Zé conseguiu, por que você não conseguiria? (risos). Dado que Tom Zé
deve possuir muito mais pressupostos e conceitos sobre arte do que você – e eu.
Agora você gostaria de resmungar algo para mim sobre indústria cultural e
capitalismo? Rapazes/ Moças, conheço Adorno melhor do que ele gostaria de ser
conhecido, nem vou entrar em méritos filosóficos!
......Só
para finalizar esse texto, já que sei que tenho entre meus leitores muitos
músicos, vou contar um caso para vocês. Conversando com um roqueiro aqui de São
Paulo sobre gravadoras, empresários, rock n’ roll, etc., este sujeito me conta
sobre a biografia (risos) musical de sua banda. Contava-me ele, já com cabelos
brancos, que estava cansado de tocar nas centenas de bares de rock da grande
São Paulo e não passar de “entretenimento noturno para bêbados bem
intencionados”. Repliquei que conheço bem essa situação. Inclusive, em São
Paulo, na noite, nos bares de rock, você encontra gente de todo tipo e de todos
os lugares – do mundo! Estávamos, durante essa conversa, num show de um trio de
blues vindo dos EUA. Este sujeito me contava sobre o contato que teve com um
estúdio (Bonadio – produziu Mamonas Assassinas, CPM 22, NX Zero, etc.), onde a
própria produção de um disco envolvia o lançamento nas melhores rádios de rock
de São Paulo e apresentações televisivas nas emissoras SBT e GLOBO. Eu não sei
se você entendeu, mas eu vou repetir para você. A produção de um disco já
envolvia o lançamento nas mídias de grande circulação nacional – já estava
incluso no pacote.
......É
claro que pedi para ele prosseguir com o causo! Dizia ele, então, que chegou
até a pré-produção e lá já não existia mais a sua amada e com longa carreira na
noite paulistana, banda. Eles só mudaram a nome da banda, o “tipo” de som da
banda, o release da banda, a maneira de se vestir dos integrantes... só. É
claro que tudo isso envolvia também um contrato de 500 mil reais para ser
assinado, referente à produção do disco de estreia – os discos independentes da
banda não contavam! Pagar esses míseros 500 mil reais não era o problema! Seria
descontado da banda – que já tinha a sua “aparição de sucesso” garantida –
fazia parte do pacote, obviamente. Como dizíamos antes, nada mais do que renunciar
a vida em nome de uma biografia! Vou resumir a história. A banda aproveitou a
oportunidade, mas não “vingou” e agora tinha só uma despesa de 500 mil reais a
serem pagos. Disse-lhe:_ bem, aproveite o disco e se inscreva nos editais dos
sesc’s por aí! Respondeu-me o sujeito:_ Não resolveria nada. Os sesc’s
manufaturam as apresentações culturais e pagam uma migalha tão insignificante
que o artista termina por pagar para se apresentar. Embora engorde o
“currículo” (biografia?) do artista para apresentações futuras! Depois disso,
tentamos chegar a uma conclusão. Se valia mais a pena, para um artista, se
apresentar no sesc ou tocar viola na “feira da madrugada” – no Brás. (para quem
não conhece: feira de produtos que escaparam da fiscalização e por isso são
reduzidos à metade do preço).
......O
filósofo Safranski escreveu a biografia do filósofo Schopenhauer. O título é
muito instrutivo: “Os anos mais selvagens da filosofia”. Conta Safranski que
certa feita, Schopenhauer se livrou de uma tentativa de golpe estelionatário de
um banco. Disse ele ao gerente:_ Infelizmente você tentou passar a perna num
sujeito que leu KANT. Quer dizer, o filósofo sabia dos riscos de um
investimento de conhecimentos “à priori” e “à posteriori”. (risos). E tem muito
idiota aí que ainda se perguntando para que serve a filosofia. E mais idiotas
por aí falando em filosofia enquanto vendem o rabo para jornais... esses são
piores!
......Pois
bem, é preciso concluir. E lá vamos nós. Pensemos que a moral da história
(risos) é que muita gente confunde sua produção no campo artístico com fama.
Existe um maremoto de paspalhões que estão mais implicados em se mostrar do que
em produzir sua arte. Também há uma outra enxurrada de salões, festivais,
concursos, todos loucos para corresponderem ao maremoto de paspalhões. Alguém,
provavelmente um idiota – eu tenho facilidade em irritar idiotas... isso ainda
vai me arruinar! – deve estar resmungando: “ e você r.A., que não faz nada,
fica aí sentado debochando de todo mundo”. Acho que é isso mesmo, eu não faço
nada e fico debochando de todo mundo! Para esses eu digo que preciso mesmo de
gente para debochar enquanto tomo minha cerveja! E graças aos deuses, material
para mim trabalhar não falta! (gargalhada). E para ser bem sincero, estou
desapontado com Neil Young... ele não está tão velho assim e falido para
precisar publicar sua autobiografia – ou está? Na dúvida, faça como Descartes,
tome um porre de vinho e comece a pensar que está sendo enganado pelo diabo!
Mas não se engane com essa moda de escrever sobre si mesmo como se fosse grande
coisa, ou pedir para que alguém faça isso. Faça como faz o macaco – ria! Pare
de acreditar em concursos, recitais, partidos, biografias, boas intenções,
gravadoras, revistas de história, seu emprego e sua dignidade moral. Você é um
macaco que pensa, então ria! Ria enquanto pode...
r.A.
ps.
– Numa dessas noites paulistas um produtor musical disse:_ Que tal mudar o nome
do duo de rock que você faz parte? Tipo, de Sodoma H. para “Pop duo rock”?
Seria mais comercial! Minha resposta:_ E que tal se eu mudar o seu nome para
“Enfia o dedo no cu e rasga”? Seria mais comercial!
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