......Alguma coisa estranha está
acontecendo aí no mundo. Me disseram que era só ter talento... Então quais são
as ruas da fama e fortuna? Alguém me deve muitas explicações! É isso ou o mundo
mudou – e ninguém me avisou. Será que passou o tempo dos escritores fodidos?
Quero dizer... DOSTOIÉVSKI, REAJA HOMEM! Isso quer dizer: Estou cheio de ideias
que ninguém quer! Não é por aí, as pessoas tem que me querer. Não me venham com
histórias...
......O som agudo do telefone
atravessa como flecha a sala do apartamento – 6º andar, prédio amarelo.
Ricocheteia nas paredes, atravessa os jardins do sossego, se mistura ao som dos
Ramones humilhando o rádio, “o segundo verso é igual ao primeiro...e ela
morria...”, escrever é fácil, o problema é essa..._Alô...que que foi?
_E aí Adriano, seu pançudo! Vou dar um pulo aí!
_Jô, venha! E preciso de dinheiro emprestado... venha!
_Não vai rolar! Até mais amigão! – Desligou, Deus existe.
......O negócio é vodka e suco de manga. Atiro os chinelos para o lado – um para cada lado- e cato minhas botinas de 400 r$ em seis vezes sem juros- um homem tem todo direito de gozar dos prazeres do capitalismo e foda-se o sistema. Atravesso a sala escura com dois passos. Tranco a porta e pego o elevador. Enquanto o elevador desce ensaio a dança da Macarena. Vinte segundos e já estou na portaria. Na portaria os dois porteiros se acabam de rir. Um deles, um negro grandalhão de uniforme azul estica a cabeça para fora rindo.
_Você é uma comédia cara!- Diz ele.
_Fodam-se vocês que ficam olhando essas camerazinhas! – faço o sinal clássico de foda-se.
......Transfiro meus cento e poucos quilos para o outro lado da rua. Tudo está deserto, mas logo vai mudar. Os bares e os prostíbulos erguerão suas portas de lata e as ruas sujas de São Paulo estarão cobertas de diabos – de todos os tipos, para todos os gostos e maus gostos-, todos dançando a melodia do caos urbano. Você não vai querer estar no meio disso, ou vai? Ruas úmidas, todo o horizonte tapado por prédios. Na outra esquina um mendigo - baixinho com boné de posto de gasolina virado para trás- vigia o perímetro. Camiseta amarela encardida, chinelo de dedo e tudo mais. Tragava um cigarro de palha. Estende a mão para mim. Dizia Cioran que os mendigos exploram a selva da piedade. E quem não explora de vez em quando?
_primeiro me dá um cigarro! – Digo.
_Me vê umas moedas pra tomar um trago!- retruca enquanto me passa o cigarro.
_Não tenho! Eu uso cartão.- Tiro o cartão do bolso.- Vê? CarTão! Só uso cartão. Uso para tudo. Compro o mundo em suaves prestações!
_Então me devolve o cigarro! – Fala com indiferença nos olhos.
_Você já ouviu falar de Dostoiévski? – pergunto tragando o cigarro de palha.
_Prefiro Kafka!- Responde. Sentencio com uma dor maligna no coração:_ Então você é um bosta! – Passo o cigarro. Ele pega o cigarro e se afasta resmungando “ainda prefiro o Kafka”...
......Se fosse cego, não teria problema. Iria sem esbarrar em nada até a prateleira de vodka e suco no mercadinho da esquina. Deus existe- eis o milagre! Talvez seja o fato do mercado ser 10x8. Mas prefiro acreditar que sou um lobo farejador – o último da matilha, o que esconde os rastros ao mesmo tempo em que diz para os outros por onde avançar. Sinto o vento frio nas canelas. A calça que uso é curta demais. Vou até o caixa na porta do mercado. Uma atendente nova. Morena, magra, com um bigodinho que me lembrava a Frida Khalo. Charmoso, para falar a verdade. Charmoso para quem gosta do Charles Bronson, quero dizer. Seus olhos escuros eram estáticos, pareciam até vazados... Reparo que ela tem dois tiques. Gira um anel de pedra branca no dedo médio e levanta o ombro esquerdo. A frequência com a qual faz isso, em termos musicais, seriam 120 bpm. Dava para gravar um grunge rock usando ela como metrônomo.
_Cartão ou dinheiro?- As palavras esbarram no bigode...
_Sim. Uso cartão para tudo. Compro o mundo...
_Certo. Débito ou crédito?
_Débito!
_Crédito?
_Crédito...
_Crédito ou débito?
_Débito é quando...
_Passei Débito.
_Débito, então...
...... Levo meus cento e “Jesus amado” para o outro lado da rua – não o do meu lar. O negócio é cigarros agora. Vi em um episódio dos Simpsons que com trezentos quilos você pode trabalhar em casa. É possível na legislação brasileira? Sempre sonhei em ser o Wolverine. Pequeno, atarracado, bebendo, fumando de tudo e brigando bem. Ser bom de briga é importantíssimo! Wolverine acabou com a Yakusa. E ainda disse para o membro mais poderoso:_ Como é que vai ser xará? Se todos se inspirassem no Wolverine, a sociedade estaria salva. Mas as pessoas ainda se inspiram no Chico Xavier e assistem Renato Aragão no domingo. Quanta merda! Continuo querendo ser o Wolverine, mas só me restou ser escritor. Falta de estudo, presumo.
...... Refaço o percurso de volta. Na esquina ainda o mendigo.
_E agora?- Digo.
_Nada, pô!
_Então pega aí!- Atiro uma garrafa de pinga e um maço de Ritz para ele._ Sou o seu anjo da guarda. Lhe resguardo da sanidade insuficiente, amém! Diga que ama Dostoiéviski!
_Nunca! – Retruca o mendigo.
_É aí que você não sabe o que é perder a vida em um jogo!- Retruco. Estalo os dedos para dar ênfase na minha frase.
_Você é que não sabe, almofadinha de merda! Vive seguro em um condomínio. Quer sugar minha marginalidade! – Diz rindo de mim.
_...Me devolva tudo, bostão!- estendo a mão direita (a esquerda é revolucionária).
_Amo Dostoiéviski!- ele diz.
_mendigos corruptos!- resmungo.
......Guardo dois cigarros de palha no bolsinho da frente na camisa. Comecei a usar camisas com bolso na frente depois que passei por duras experiências com a falta de habilidades em manusear duas mãos ao mesmo tempo. Goro é legal! Tem quatro braços. Consegue mandar quatro pessoas se foder ao mesmo tempo. Fora a vodka é isso que todo homem precisa. Mas a vida não é um jogo de vídeo game – dizia uma canção da Okervill River. Banda texana. É importante que saibamos dessas coisas. Não vou pagar o plágio ao Henry Miller.
......Chego na portaria. “Identifique-se”. Sou o Bob esponja calça curta. “Você é uma comédia cara, pode entrar”. Comédia é vocês dois a noite toda nesse cubículo – já assumiram a relação para suas famílias? “Hahahahaha”. Riam enquanto podem, safadinhos! Aperto doze vezes o botão do elevador – homenagem aos doze apóstolos. Judas traiu Jesus com um beijo e Jesus disse:_ Te pego na saída rapá! “Jesus não era um cara muito esperto”, uma vez que não existem mais saídas. Não fui eu quem disse isso, foi Bertrand Russell – vão se entender com ele. Finalmente estou em casa depois da caçada! É bonito estar em casa.
......Hora de criar. Cuidadosamente espalho oito folhas de papel sulfite (A4) sobre uma mesa perto da sacada – de frente para o metrô. O nome da rua escura e suja em que passa o metrô é Torquato Neto. “Para mim já chega!”. O mundo perdeu Neto porque não tinham criado o Playstation 3 ainda. Se ele tivesse a oportunidade de escolher o Goro, sua frase teria outro sentido agora. Coloco sob a mesa duas canetas pretas, a garrafa de vodka, a caixa de suco, a minha inspiração e duas carteiras de cigarro. Sento e sinto vontade de mijar. Deus deve ter algum propósito estranho para mim... Levanto e soco um demônio imaginário – nocaute nos primeiros dez segundos do primeiro round. O demônio se chamava “Jones” e eu Lyoto. Passo pelo espelho do banheiro e olho só com o canto do olho. Alguma coisa estranha está acontecendo aí no mundo, penso. Levanto a tampa branca do vaso. Meu pênis esta pensando em Melissa Laoren – com tristeza, julgo pela sua cara. Melissa me ignora depois de tudo que fomos um para o outro. Meu pênis chora sua ausência! – a ausência da Melissa, não do pênis. Vai ver foi melhor assim. Faço que tenho um revólver nas mãos. Chuto a porta do banheiro e vou para a sala. Consigo alvejar dois zumbis antes de sentar e jogar no chão o revolver imaginário – na verdade soltei com todo cuidado, pois, vai que dispara essa droga e me acerta a canela? Estalo os dedos e finalmente estou no meu melhor lugar! Aí começo a encarar a parede branca na minha frente. Trinta minutos se passam e eu continuo encarando a parede. Escuto um ruído no centro da sala. Um dos zumbis levanta a cabeça e diz:_ pô, para com essa merda aí e começa a escrever logo...filho da puta!
...... “Melissa Laoren era o nome da garota. Uma francesa que desistiu da medicina para ser atriz pornô. Me amava loucamente, dizia ela” – mentira – “E dizia: Isso não vai mudar o meu amor por você Adriano” – Isso é mentira cara! – “Como qualquer homem de sanidade comum, eu não soube administrar a imoralidade de nossa relação” – tá ficando chato isso aí...- “ sua especialidade era sexo anal” – agora ficou interessante! – “mas a gota d’água foi quando ela começou a usar isso nos filmes. Foi aí que comecei a colocar em questão o amor que ela sentia por mim” – Deixa a garota trabalhar! – “E cada vez mais os filmes em que ela trabalhava possuíam cenas de sexo anal” – hehehehe, corno!- “com meu cartão de crédito eu havia dado o mundo para ela, em suaves prestações” – Cafetão! – “então um dia eu bati a porta da nossa casa e disse adeus enquanto escorria uma lágrima do meu olho esquerdo”- isso que eu chamo de primeiro parágrafo de um corno fresco! Larguei a caneta. Desviei o olhar do papel para o centro da sala.
_O negócio é o seguinte! – Apontei para os dois zumbis que estavam rindo no centro da sala enquanto teciam críticas destrutivas ao meu texto. Não interessa se eles eram imaginários! – se não gostam do jeito que escrevo, tratem de se retirar desta casa!
......Levantei e abri a porta do apartamento. Os dois zumbis se ergueram um pouco bravos. Um deles manquejou até a sacada e se jogou. O outro passou por mim. “Aguarde a ligação do meu advogado. Logo pela manhã ele entrará em contato para resolvermos esse probleminha da minha participação no presente conto. Passar bem”. Bateu a porta.
......Onde estávamos? Ah sim, o texto estava uma droga. Amassei a primeira folha. Cinco minutos depois a segunda, vinte minutos depois a terceira. Três horas depois só me restava a oitava folha – vai ter que ser agora! Mas não foi. A inspiração rolou de cima da mesa e caiu embaixo da mesa. Chutei-lhe na bunda e ela saiu gritando com o rabo entre as pernas (caim,caim,caim,caim,caim).
......Então eu fiz uma analogia com a bíblia sagrada. Eu era uma espécie de Jesus meditando sobre a crucificação. Chorava – metaforicamente falando- e questionava o motivo de ter que passar por isso! Traído por um beijo de Melissa Laoren... e nem foi em mim, foi em um jardineiro (no seu último filme: As aventuras de Melissa com o jardineiro fogoso). Com a última folha comecei a escrever uma carta:
...... “Melissa. Não tenho nada contra você ter adquirido toda sua fama e fortuna dando o cu. Os últimos anos como escritor fracassado me ensinaram a ser mais humano- desde que meu cu não esteja em jogo. Alguma coisa estranha está acontecendo aí no mundo. O capitalismo venceu e os cus estão em alta agora. A loucura tomou conta de todos e começa a penetrar em mim – não por esse orifício, com toda certeza. Sinto sua falta. Tenho cartão. Volta pra mim. Adriano”. Peguei um conta gotas e pinguei algumas gotas de vodka na carta – para ela pensar que eu chorei. Escolhi a vodka porque se pingasse suco de manga iria parecer outra coisa...
......Fumei e esperei. O suco acabou e fui forçado contra minha vontade (fraca) a beber a vodka no gargalo. Coloquei a carta num envelope sujo. Acabou o tempo dos escritores fodidos! Agora eles são apenas fodidos, já que todo mundo é escritor – e quem tá fodido é idiota. As editoras equilibram a qualidade pela quantidade vendida de livros – todo ano. Tá tudo bem...tá tudo bem. A gente não critica mais as pessoas por uma questão de boas maneiras, a gente critica o sistema (porque ele não é feito de pessoas...). Estou esperando Jesus voltar, mas nem o papai Noel -que nem mora tão longe- voltou... Acabou a vodka e encontrei meia garrafa de rum. Hoje o cu superou o pensamento, mas pelo menos nós temos cartões de crédito ou débito. Dá até para comprar um cu, em suaves prestações, para entreter o pensamento! Escrevi o endereço no envelope. O sol apareceu todo bonito e mentiroso. Vomitei no elevador.
_Você é uma...
_Vão à merda! – disse para os porteiros.
......Estava andando pelas ruas em direção ao correio da Sé. Os carros abarrotavam as ruas com ruídos de motores construindo a sinfonia de um futuro melhor. Comecei a suar frio. Peguei um caminho errado e tive que retornar. Minha visão começou a turvar. Enxuguei o suor da testa no envelope com a carta. Minhas pernas começaram a se atrapalhar e esbarrar uma na outra. Comecei a correr sem motivo aparente. Atravessando um canteiro perdi uma das botinas. Caí no meio da rua e rolei para fora dela enquanto pensava em maneiras de vencer a luta de classes no capitalismo contemporâneo – encontrei a maneira, mas me esqueci. Peguei um cigarro de palha do bolso da frente na camisa – mas não tinha com o que acender. Vi meu reflexo na vitrine de uma loja de roupas íntimas femininas e comecei a rir. Uma quadra antes do correio caí e comecei a me arrastar. Alguém pisou na minha mão. “saí da calçada mendigo bêbado”. Apoiando-me na caixa do correio, consegui me levantar e colocar a carta na caixa. Vomitei no meu próprio peito. Gritei “VITÓRIA” e apaguei com um sorriso. A carta não tinha selo.
r.A.