sábado, 8 de maio de 2010

Uma senhora cansada atravessa a rua em direção a uma igreja. Todos na sua família se foram. Ela se sente entediada com sua durabilidade e com o frio vento cortante. Não há histórico de doença no estender-se de minha vida, disse ela para si, nem o risco de vida me quis, concluiu. A direção foi tudo que lhe restou. Pessoas não me causam fastio, esse não é meu problema, o problema poderia ser o fastio que causo nas pessoas, mas não foi. Minha fala é monótona, minha voz trincada, minha intensidade salubre, minha carne enrugada. Setenta verões, invernos, outonos e primaveras. Milhões de rostos e palavras. Uma que outra lembrança, todas em preto e branco. Não houve falta de amor, nem depressão. Poucos problemas e conforto acima da medida. Talvez se tivesse sofrido... Se tivessem me partido o coração, me imposto um desafio que eu perdesse, uma frase que me escapasse a compreensão, dado um conselho inválido, comido uma carne dura em um restaurante barato, tivesse vômito ou azia, reclamasse da juventude nos outros pós o fim da minha, a morte de meu esposo - nem uma lágrima além das necessárias-, o fim do pai e da mãe, a mãe primeiro e prematura, uma fila de banco, uma burocracia qualquer que me esquentasse a cabeça, um pensamento que me lograsse o sentido de aqui estar, um livro desgostoso, a ausência de papel higiênico no banheiro, a visão da primeira ruga, o trombadinha que me arrancou a bolsa e correu sentindo o calor de um pequeno crime, se tivesse sentido raiva... A favelinha que a senhora observava pela janela de seu apartamento úmido era compreensível, as novelas, os jornais, o vendedor suado de algodão doce, a padaria, o caso do padeiro com a mulher do pedreiro Antônio, o menino que lhe ajudava com as compras, o último bombom na caixa ao lado do sofá, as festas e as guerras, os latidos do cachorro da casa ao pé do edifício, a vida e a morte, a razão dos poemas, o sotaque das línguas, a letra W em seu nome, a mão na arma do guarda, o cheiro de peixe na feira, a menstruação da vizinha de quinze do trezentos e oito, o dente torto, o inconsciente, o 2+2, um tetraplégico, o olho do boi, os tomates, arte contemporânea, a conta de luz, o sorriso sombrio do impotente, o alcoolismo, a personalidade impossível, a lua nova e a bituca de cigarro que acabara de pisar em cima, tudo compreensível, até a incompreensibilidade. A senhora cruza a porta da igreja, o pastor cita: “Vinde a mim os fracos e oprimidos que eu os aliviarei!”
_Amém!

r.A.

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