terça-feira, 25 de maio de 2010

Quem Disse que Resisti 30 Anos?



Um dia depois do outro é mais do que uma indecência. É
um Monte Fuji (pela neve e claridade também indecentes). Dois
galões antes do salto: e, na interposição entre um dia e outro, mais
ou menos dez anos sobre mim. Um dia depois do outro é uma
tripudiação. Quem disse que amanhã vai ser diferente?
Amanhã, por exemplo. Amanhã vou dar um fim nos pés de
mamona. Amanhã mesmo vou comprar uma televisão e um forno
de microondas (a minha ambição são as pipocas amanteigadas).
Vou contratar uma empregadinha. Amanhã mesmo vou atear fogo
nesta minha bela casa de praia com vista para o mar. Amanhã é o
meu dia de ser feliz. Amanhã não vai ser diferente.
Resistir não é Resistir.
É sobretudo não ter ninguém. Mijar na pia. Dormir sobressaltado
e ter pesadelos mesquinhos. Resistir é um dia inteiro de
esquecimento. Um cachorro. Um cachorro, não. Resistir não é ser
impetuoso e não é ser covarde. Resistir não é resistir. É saber que
de noite alguma coisa vai se perder. Os cogumelos crescem nestas
noites em que as coisas se perdem (esta noite um cogumelo brotou
dos meus tímpanos). Assim é resistir onde tem poeira. Às quartas-
feiras costumo ligar para os meus orientadores. E eles querem
saber do movimento das marés – o que também faz parte da resistência.

Mas quem são eles?
Em contrapartida meu vizinho paralítico dá piruetas em sua
cadeira de rodas. Tive trinta anos para fazer amizade com ele. Eu
lamento, ao longo destes trinta anos, não ter conseguido. Com a
surfistada nem pensar, eu considero uma aproximação irrealizável.
Eu gosto de imaginá-lo girando sobre os eixos (imaginários, todavia),
ele na cadeira de rodas e eu na mesma cena, apoiado meio
que distraído no parapeito – do ponto de vista de quem olha do
meu terraço uso uma camisa salmão de mangas compridas – dando
as costas para o mar e facilitando as coisas para ele, evidentemente.
Pôr-do-Sol / Eu jogo com as pretas.
Agora é a vez dele. Admito ter sacrificado uma torre em vão
(depois de trinta anos).
De modo que resisto.
Não se trata especialmente do meu interesse por aleijados.
Talvez alguma afinidade em papel celofane com o dia seguinte, eu
não falo exatamente (do meu Fellini em “sonho de valsa”...), tratase
menos de uma cena estilizada e mais do aleijado estilizado que
afinal ele é – daí que num arroubo canalha e sobre-humano ele
movimenta o bispo (como se ele pudesse levantar daquela maldita
cadeira de rodas) para ameaçar meu Rei!
Não é um jogo de sombras. Não é pôr-do-sol.
Deixa pra lá. Ou resistir não é resistir.
Os mortos mexem as unhas (é por isso que elas crescem),
elas, as unhas, crescem de felicidade. Quem está vivo não sabe o
que é a felicidade das unhas. Eu não sei do próximo instante. Mas
sei da minha retórica.
Ou estarei chafurdando no inconsciente? Outra vez?
Pois acabo de me transformar num tubarão adolescente e,
dentro de poucos anos, minhas barbatanas estarão valendo um
bom dinheiro no mercado negro. Chang, o chinês da auto-elétrica,
disse que sim. Creio que daqui pra frente vou ficar mais carní
voro. Uma prova: eu havia prometido para mim mesmo, à moda
dos índios charruas, que jamais escreveria a palavra “fluidez”. Aí
está: fluidez, cooptação, fluidez e cooptação. É porque eu sou um
tubarão. Eu acho que sim. Chang me garantiu.
Em se resistindo...
Aqui vão algumas anotações: ter band-aid em casa é importante
por motivos sentimentais. Sabonete eu gasto um por semana.
Desodorante sem álcool. Óleo para lubrificar minhas barbatanas.
Uma lista de livros não lidos. Nabokov também cansa. Mil
vezes os autores americanos aos brasileiros (com as exceções de
Márcia Denser e Raduan Nassar, é claro). Um cachorro. Um cachorro,
não.
O que mais? Vejamos.
Um plano de fuga. De sumir daqui. Amanhã mesmo, antes
de completar trinta e um anos, antes de o fogo consumir esta minha
bela casa de praia com vista para o mar.
-------------------------------------------------------------------------
Marcelo Mirizola
(Trexo do livro: Fátima Fez os Pés Para Mostrar na Choperia)

Nenhum comentário: