Aquela praça cheia de gente e os bares
cheios de gente. A escada onde sentamos uma madrugada e você me disse que não
sabia me dar prazer – naquele momento estava me dando prazer e nem fazia ideia
o quanto. Aquelas pessoas todas falando e eu atravessei a rua com as mãos nos
fundos dos bolsos da calça jeans manchada na cocha esquerda: nem sempre acerto
na dosagem do sabão em pó e em todo resto.
Aquele momento em que você se sente
apartado de todo mundo e pensamentos fazem redemoinhos nos cantos escuros de
seu crânio, sentimentos coçam feito pulgas no peito. Dou passos mais largos e
mais rápidos na esperança de gastar a energia do corpo e apagar qualquer coisa
da mente. Quem sabe se isso funciona?
Uma implacável fome do desejo. O desejo
ficando raquítico e implorando para que eu deixe de ser malvado com ele. Essa
absurda autodisciplina com a ilusão de ser de ferro. Observe qual é a ferida
que estou cauterizando enquanto meus passos medem as ruas. Os ursinhos
carinhosos vencendo meu coração gelado.
_Não
pode ser. – resmungo olhando o reflexo de meu rosto cansado na janela de uma
lanchonete lotada de gente.
Gente. Gente por toda parte. Nas ruas
festejando qualquer coisa, nos carros buzinando nas avenidas; nas livrarias
folhando livros que não tem nada dentro, gente que não quer entender do que eu
preciso. No início tive curiosidade, depois detestei todos por exporem apenas
seus desejos o tempo todo, mais depois ainda, encontrei consolo em uma quase
indiferença. Aquelas ruas empesteadas de gente e de mim. Eu intoxicado de mim.
Na verdade não preciso de muita coisa, sabe?
Aquele caminho que meu corpo se lança
sem pensar muito. E lá vai ele, o enorme corpo, passeando com os sentimentos
acima da cabeça como se fossem um balão de parque de diversões: formato de
peixe-boi. Agora pisando com cuidado no lugar onde de maneira secreta suporto a
solidão. A gente trocando olhares na calçada, fingindo segurança para quase
ocultar enormes valas de saudade. A gente é muito sensível quando pode. E pode
sempre, mas não quer.
Se por um momento eu fosse todo mundo
seria todo mundo engolindo o choro da sua ausência – inclusive você. Se por um
segundo eu fosse a consciência da multidão essa multidão desabaria em
convulsões. Acontece que sou somente eu, sem você, atravessando a cidade como
se procurasse algo e sabendo que você não está lá. Saber que você não está lá
se chama “que merda, vida filha da puta!”.
As travessas, os viadutos, as pontes,
os sinais de trânsito. Os mendigos, os alegres cachorros dos mendigos, os
vendedores de artesanato, o grupo de conhecidos que te chamam para se juntar em
volta de algumas garrafas e você sorri desanimado e sacode negativamente a
cabeça. Não queria te dizer isso mas concluo que a saudade é a fome do desejo.
Sussurro canções até chegar num apartamento alugado que já não me defende de
nada lá fora.
Preencho páginas, páginas e outras
páginas. Leio um livro, dois, três e quatro. Bebo outra caneca de café e abro a
segunda carteira de cigarros. Cruzo as pernas e observo uma sala escura toda
bagunçada. Você acertou quando disse que sou um péssimo ganhador e um sujeito
cagado de sorte. Talvez o fogo que me consome brote justamente das faíscas
dessas duas pedras friccionando uma na outra.
Aquele silêncio se espalhando nos
cantos e no teto. Aquele silêncio entrando pelos meus ouvidos e me preenchendo
completamente. Eu sendo pleno silêncio desde de ter andado quilômetros procurando
o que não estava lá e nunca poderia pegar e abraçar junto ao corpo. Essas
coisas só te enlouquecem enquanto você não compreende o quanto precisa disso.
Não podemos mais imaginar o que eu seria se não fosse essa loucura toda. Aquele
silêncio louco que sou eu, às vezes.
Parte do meu corpo arrasta a outra
parte do meu corpo. Parte de minha vida arrasta a outra parte da minha vida.
Parte dos meus desejos morrendo de fome de você, a parte que sobrou morrendo de
sede de você. Vai ver que tem gente que nasceu para não ficar junto – e nessas
horas agradeço por saber dizer Foda-se o destino ou a ideia de destino. Parte
de mim arrastando outra parte de mim em direção ao novo nascimento silencioso.
Eu jogo dados na fronteira e monto meu pequeno acampamento na margem. Molho a
pena com a qual escrevo na tinta negra que escorre do cadáver de Deus. Parte da
minha boca sorri.
Tiro a botina do pé esquerdo. O que foi
que matei nessa madrugada? Tiro a botina do pé direito. É dos sonhos que me
defendo? Tiro as meias e coloco dentro das botinas. Não sei reconhecer o que
ganhei? Tiro a camisa preta, penduro em uma cadeira no quarto. Você recitaria
Rimbaud para alguém numa noite dessas? Tiro as calças e jogo a cueca na pilha
de roupas sujas. A gente sabe que tudo morre? Abro o chuveiro e fico lá por dez
anos. Não entendo direito porquê estou rindo, mas estou.
Aquele mundo inteiro rindo e eu rindo
também. Porém não estamos rindo da mesma coisa e só um desses risos entre
bilhões nunca se justificará. Depois a gente tentará dormir devorando a si
mesmo por causa dessa fome.
r.A.
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