segunda-feira, 20 de outubro de 2014

As fantásticas aventuras de um cara sem propósito


(Ao som de Men At Work - Down Under. Porque sim)



_Adriano, você é um imbecil!
         Foi assim que nos conhecemos melhor. Se não fosse o nojo recíproco naquele momento, poderia ter sido amor à primeira vista. Era uma tarde horrível como essa e cruzei minha enorme carcaça negra e mal humorada com Janete e seus amigos no estacionamento da universidade. “Maconheiros de merda” – sussurrei para o grupo. Foi aí que Janete me chamou pelo nome. Fiquei tão ofendido que quase escorreu uma lágrima no canto de meu olho esquerdo – vai nessa, ra ra ra!
_Puta cara conservador esse aí, né Janete? – alguém falou nas minhas costas. Alguém com uma barbinha suja.

***
         Queria mesmo conservar alguma coisa além do hábito de beber toda noite. Passava dias sem comer, mas continuava barrigudo e inchado. Qualquer coisa de destino – foi assim que Deus quis!
         Entrei na sala para assistir uma aula de psicologia clínica. Sentei nos fundos para ter uma visão estratégica. Turma cheia. Havia apenas mais dois caras. Todos fazendo pose – e se encarando com o canto do olho. Nada mais óbvio do que nossos motivos.
         No intervalo três garotas se aproximaram. Clarice, Janaina e não entendi o nome da outra. Sorriam.
_Começou hoje? – falou Janaina, mexendo nos cabelos loiros.
_Apenas ouvinte. – resmunguei.
_A gente veio te convidar para uma festa do centro acadêmico... – disse a que eu não lembro o nome. Tinha os cabelos curtos, magra e alta.
_Olha, é possível que eu vá. Mas não prometo.
_Ah, deixa disso. É bom para você conhecer o pessoal. – Janaina novamente, ainda mexendo nos cabelos.
_Não prometo. – devolvi.
         Me passou o endereço. Era na casa de alguém. Entrei na sala, peguei minhas coisas e caí fora. A professora parece que não gostou muito. Particularmente eu gostei de tudo, isso é que importa.

***
         Cheguei na festa. Um enorme casarão de dois andares. No portão de entrada, dois caras meio sofrendo de anemia aguda. Um de óculos, barba suja – as gatas se amarram; dizem por aí. E outro com uma camiseta branca com uma estampa do Bob Marley. “Dei um tiro no xerife”. Achei engraçado.
_E aí, beleza? – o do Bob Marley apertou minha mão. O da barbinha suja virou a cara.
_Tem que pagar?
_Sim cara. Estamos arrecadando fundos para um jornalzinho subversivo que escrevemos.
_Abaixo o capitalismo, menos opressão, essas coisas... – resmunguei.
_É esse o espírito brother!- deu um tapinha no meu ombro.
         Paguei os 20 e entrei no casarão. Quase cinquenta metros do portão até a casa. Uma piscina embaixo de uma sacada. Só faltou um mordomo para me receber na porta. E eu com uma calça jeans rasgada nos joelhos. Olhei para o desfile de moda do pessoal correndo pela casa e me senti um cara que veio dos anos 90. Vai ver eu fiquei velho, pensei.

***
         Encontrei Janaina – dentro de um vestidinho preto e em cima de uns saltos. Não estava mais tão simpática, provavelmente eram minhas calças. Não combinavam com o visual da festa revolucionária. Contei uma piada sem vergonha e ela finalmente riu.
_O que ele está fazendo aqui? – alguém gritou.
_Colaborando com a causa! – respondi antes de me virar.
         Dei de cara com Janete. Também de vestido e de salto. Mudar de roupa fez bem para ela. Até o brinco no nariz ficou mais charmoso (brinco no nariz, para quem veio dos anos 90, se chama piercing). Janaina sorriu e arrumou uma desculpa para se afastar.
_A casa é minha! – falou Janete, raivosa.
_Parabéns, é uma bela casa. – devolvi.
_Fica mais bonita se você estiver do lado de fora! – fechou os punhos para mim.
_É, olhando de fora parece mais bonita. – sorri.
_Eu não gosto de você Adriano! Suas piadinhas me irritam!
_Isso é uma pena. Porque eu estava passando aqui na frente da sua casa e pensei em entrar e pedir sua mão em casamento para seus pais.
Nem ela conseguiu se segurar e riu. E ficou com raiva porque riu.
_Se começar com seu showzinho de debochar das pessoas, vou te arrebentar essa cara de peixe-boi. – ameaçou tentando conter o riso.
_É por isso que você está com trinta anos e solteira! Ameaçar seus pretendentes não apimenta a relação.
_Não tenho trinta anos e não temos nenhum tipo de relação! – apontou o dedo para mim.
_O futuro é imprevisível! – falei perto do seu ouvido.
_Você é muito descarado. – deu ênfase no “muito”.
_É uma questão de saber interpretar. – comentei olhando nos seus olhos.
_Cala a boca! – disse sacudindo a cabeça e me deu as costas. Saiu pisando forte no chão.

***
         Procurei Janaina. Não que tenha procurado muito, mas achei. Outro cara achou primeiro – infelizmente para mim. Estavam se beijando perto da escada que dava para o segundo andar da casa. Reconheci o cara pela camiseta. Esse negócio de andar por aí fazendo apologia a atirar nos xerifes funciona com as mulheres. “Isso aí deve ser muito rebelde” – desconfio que elas comentam umas com as outras. Sei lá.
         É a idade. Mais cinco anos e todo mundo vai me chamar de tio. Por hora olham para mim e pensam: Tá quase um tio, ein? Se sua mãe tem uma irmã – cuidado comigo!
         Tomei mais dez cervejas para garantir a consumação da grana que dei para os “camaradas”. Alguém do bendito jornalzinho me reconheceu e pediu se eu não poderia colaborar com um texto.
_Posso falar mal do Bob Marley?
Uma baixinha, morena, com os seios saltando de um decote sorriu para mim e resmungou.
_É claro que não pode! Manda um daqueles seus contos das fantásticas aventuras de um cara sem propósito. A galera adora ler essas coisas. Todo mundo acha engraçado.
_Então não vou enviar bosta nenhuma! – disse seco. Esse tipo de resposta é possível comigo quando a bebida já começou a agir.
_Tanto faz, você não é um escritor famoso mesmo!- comentou a baixinha. 
_Isso que você disse é coisa de gente ressentida! – acusei.
_Você que é ressentido. – devolveu, bufou e deu no pé.
         Quase escorreu a lágrima novamente. Mas não foi dessa vez. A única reação foi uma coceira na ponta do pé. O pé doidinho para acertar o meio da bunda da baixinha peituda. Se ela estiver lendo isso, espero que saiba que já rezei para que Deus murchasse pelo menos uma de suas tetas. Se a fé move montanhas, não deve ser difícil murchar qualquer coisa. Amém.
        
***
         Acordei com dor de cabeça. Não lembrava como e quando cheguei no meu apartamento. Podia ser pior – porque já foi pior. Mais sozinho que um sapo seco na beira do asfalto. E menos vivo.
         Mais uma coisa. Outro dia encontrei Janete no refeitório da universidade. Deu uma de humana e pediu desculpas pela discussão na sua casa. Para falar a verdade eu nem recordava.
_Nem sei como acabou aquilo tudo. – confessei.
_Tá falando sério? – disse indignada, gesticulando com as mãos.
_Sim.- respondi convicto.- Às vezes eu falo a verdade também.
_Bem, você pegou um cara pelo fundo das calças e atirou ele da sacada dentro da piscina da minha casa e resmungou “ninguém atira no xerife nessa festa”. Eu sabia que você daria um jeito de estragar tudo desde que te vi. – pelo menos ela sorria enquanto falava. – aí eu pedi para você ir embora se não eu iria chamar a polícia.
_Muito justo – murmurei um pouco envergonhado – e depois?
_Você não lembra mesmo? – disse ela, tocando meu braço.
_Não. – respondi olhando nos seus olhos. – Não lembro! – repeti.
_A gente se beijou, seu idiota!
_Isso é impossível. – sorri.
_Também achei. Sorte sua não lembrar. – bufou.
_Outro dia a gente tenta de novo. – falei enquanto ela se afastava.
_JAMAIS! – urrou sem se virar.
Fiquei rindo. Não podia acreditar. E nem vou.




r.A.

ps. Acho que é importante eu avisar que esse conto é uma ficção. Ou quase.

sábado, 4 de outubro de 2014

HOSANA NA SARJETA - Marcelo Mirisola


"Você jamais vai amar alguém na vida!" - M.M.


         Geralmente escrevo sobre escritores mortos. Não sei muito bem o motivo, mas me parece que os mortos decepcionam menos. Portanto em uma madrugada perguntei: E dos vivos? Tem alguém que se salva? – E me veio o nome de Marcelo Mirisola com sua obra: O Azul do Filho Morto (2002). Não que esse cara vá se salvar, mas a obra dele vai!
         Mirisola está lançando Hosana na Sarjeta (2014) pela editora 34. A obra chegou a minhas mãos ontem. Minha impressão: Se Mirisola fosse um boxeador e seus socos tivessem a precisão e peso de sua prosa, Mike Tyson –no seu auge-, (se comparado com Mirisola), poderia lembrar uma boneca Barbie.
         Se você gosta de “frescuras & floreios” quando se trata de literatura, eu não me espantaria nem um pouco de você não conhecer a escrita de Mirisola. Agora se você se diz conhecedor dos “velhos cães que brigavam tão bem” e não conhece esse nome, muito provavelmente na questão literatura brasileira atual, está te faltando Hosana na Sarjeta entre seus livros.
         Marcelo é o tipo de escritor que pisa no próprio pescoço já na saída. Não é dos que ficam rebolando no alto jogando purpurinas pra baixo. E no chão sua escrita fica mais perigosa. Com um pé no próprio pescoço, a outra perna livre lhe aplica rasteiras para que você – leitor – aprecie a existência por outro ângulo. Ele não te convida para novas perspectivas – ele te derruba!
         Em um cenário de literatura nacional onde escritores (as) fazem coraçõezinhos e apodrecem seus dentes com tanto açúcar, a obra Hosana na Sarjeta é como um dos amados touros de Hemingway correndo em direção contrária. Até o espírito da dona Zíbia G. se vê com um chifre atravessado na bunda. Daí que poucos tocam no seu nome – quem quer um touro desmascarando a festinha de gente que só publica, mas não se dá ao luxo de escrever?

***
         Hosana na Sarjeta, como o termo pede, já começa professando uma ‘crença’ no seu prólogo: “Houve uma época, antes da internet, que eu acreditava 50% em encontros e 100% em desencontros. Acreditava, inclusive, que encontros somente teriam possibilidade de acontecer em função de desencontros. A vida era óbvia, o universo não levava porcentagens em consideração e conspirava por qualquer coisa [...]”. É nessa grande decomposição que Mirisola em sua autoficção quebra às vertebras do encontro e espia o desencontro. Se você está acostumado com os cafonas encontros de amor da literatura comum (com-um), já é atirado no chão pela obviedade desiludida do desencontro.
         Invés de ficar adiantando a obra com citações e comentários, deixe-me apresentar mais dois pontos que na minha compreensão superam muito bem a necessidade de um enredo, mas asseguram qualquer coisa de coerência. Mas essa “coerência” logo logo se decompõe na narrativa desse escritor que não tem nada de óbvio.
         Quem seria capaz de olhar para um céu tão feio como o céu de São Paulo? Essa obra, em seus cenários bem pontuados, bloqueia esse dirigir os olhos para o céu com esperança (se ele não aprendeu isso com Cioran, deve ter inventado). Essa feiura faz Hosana despencar do céu para a Sarjeta. E aí tem uma mulher, “sem mulher, não há movimento” – escreve Mirisola. Se o céu de São Paulo é um limite poluído, no chão a gente improvisa beijos: “O beijo nos explicava. O beijo apagava o entorno. Essa era a única certeza que tínhamos, nosso beijo. Depois Ariela subia no táxi e ia embora”. Alguma certeza no desencontro. Mas nas forças que Mirisola desvela, até a menor certeza, se estraga.   
         Um dia, imagino, alguém vai tentar apreender a força transbordante que Mirisola exerce na sua escrita – lembra que eu disse que ele seria bom de boxe? -, e nesse dia acho que entenderão que a questão não é a técnica de não usar um roteiro, mas a técnica do roteiro não suportar suas ininterruptas bofetadas! – o cara bate com as duas mãos enquanto escreve, como se suas mãos fossem patas de cavalo.
          A autoficção de Mirisola é arrastada de um lado para outro por duas mulheres. O pior é que elas não o puxam – cada uma em uma ponta -, é o personagem M.M. que se arrebenta pulando de um lado para outro. (Sobre isso, leia o livro, não cabe a mim explicar esse parágrafo).
         E o terceiro ponto que prometi acima passa perto de um encontro. Tão perto que arranca uma faísca nessa fricção! (Eu chamaria essa obra, Hosana na Sarjeta, de “fricção”, não de ficção!). Uma metáfora num pesque e pague ao som de Chitãozinho & Chororó: “Homens e peixes cumpriam seus destinos & enroscos: mais cedo ou mais tarde seriam engolidos uns pelos outros. A vida fisgada pela morte. Resumidamente, esse é o enredo das histórias de amor”.
Agora eu estou no epílogo desta obra. E ali salta aos olhos um termo que deve ter sido demasiadamente caro ao escritor. “Enrosco”. Se o desencontro, nessas questões de Amor, revela que o universo “conspira qualquer coisa” e a “graça” de Hosana despenca na Sarjeta, nada –na vida e na morte- nos poupa do Enrosco. O Amor é o Enrosco violento e avassalador da nossa vidinha de Desencontros? Eis uma pergunta que você só será capaz de sentir o peso se deixar Marcelo Mirisola te dar uma rasteira diante do seu livro. Confesso que Hosana na Sarjeta me nocauteou com sua história – Desde Bukowski, isso não me ocorria!
_Quem diria! Finalmente encontrei um escritor vivo!

***
         Marcelo Mirisola – eu nunca escrevi tantas vezes o nome de um cara em um único texto – tem 47 anos e é um paulista radicado na ponte-rodoviária Bexiga- Rio de Janeiro há dez anos. Escreve e dá patadas no blog Yahoo! (Se você duvida, vá lá conferir).
Já escreveu mais de uma dúzia de livros e apesar das patadas nunca relinchou para se comunicar com seus semelhantes. Como já disse no início desse texto, não acredito que ele vá se salvar, mas a obra dele vai.
 Aparentemente não gosta de piadas que envolvam Machado de Assis – eu tentei uma e ele quase me chamou para fora de um bar para trocar uns socos!
 Já viveu em Santa Catarina e esse é seu único ponto fraco – o meu também. Não fuma e bebe vinho chileno moderadamente no gargalo.
         Dizem por aí que ele já fez coisas bem piores, mas essa história vai ficar para outro texto.
_Ça suffit!


r.A.
        
Livros já publicados:

1998 – Fátima fez os pés para mostrar na choperia
2000- O herói devolvido
2002 – O azul do filho morto
2003- Bangalô
2003- O banquete
2005- Joana a contragosto
2005 – Notas da arrebentação
2007- O homem da quitinete de marfim
2008 – Proibidão
2008 – Animais em extinção
2009 – Memórias da sauna Finlandesa
2011 – Charque
2012 – O cristo empalado
2014 – Hosana na Sarjeta