“A
loucura de pregar está tão enraizada em nós que emerge de profundidades
desconhecidas ao instinto de conservação. Cada um espera seu momento para
propor algo: não importa o quê. Tem uma voz: isto basta. Pagamos caro não ser
surdos nem mudos...” (Emil M. Cioran – Breviário de decomposição. Trecho de O
antiprofeta).
......Certas
coisas que condeno em outros escritores pratico muito bem! (risos). Quero
dizer, não suporto o “endeusamento” de um autor – não suporto em mim e nos
outros. É esta contradição estranha que me obrigo a explorar neste ensaio. Vou
explicar melhor. Exceto por alguns artigos que defendi em algumas
universidades, nunca me achei “bom” o suficiente para escrever sobre três
filósofos: Schopenhauer, Nietzsche e Cioran. Mas escrevi! (risos). E esta
barreira chegou a tal ponto que, imediatamente após ter defendido os citados
artigos na academia, me desfiz deles (dos artigos)! Observe o nível da “frescura”.
Não consegui suportar uma associação do meu nome com o nome dos tais filósofos.
O simples fato de citá-los, já me provoca reprovação. Alguns caras são sérios
demais para você tocar nos seus nomes sem sentir o peso da responsabilidade.
......Dia
8 de abril deste ano, comemorou-se o aniversário de nascimento de Emil Michel
Cioran (1911-1995). Nascido na Romênia e (er)radicado na França. A primeira vez
que tive contato com sua obra deve-se a um feliz acaso. Procurando, na
biblioteca da universidade, por um livro de história, me chamou atenção o
título de uma obra: História e Utopia. Um livro pequeno, mas poderoso. Uma obra
sem rodeios, ia direto ao ponto. O simples fato do autor tratar a história como
uma ilusão – o que concordo plenamente! – onde o ser humano deposita sua ficção
de megalomania, seu desesperado apego as Utopias, seu exagero na fixação no
passado – nostalgia -, fez com que eu suspirasse entusiasmado:_ rapaz! É esse
livro que busquei por muito tempo! Vasculhei a biblioteca inteira atrás de
outra obra do sujeito... incrível! Numa biblioteca com milhares de livros, só
havia disponível este exemplar.
......De
cinco livros em romeno e dez em francês, apenas cinco livros haviam sido
traduzidos para o português. Todos esgotados há décadas! Diferente de
Friederich Nietzsche – que eu pesquisava na época (e continuo pesquisando!). Pesquisei
tudo que pude, e Cioran reabasteceu toda minha necessidade por filosofia ácida!
( Embora o próprio autor se denominava Anti-filosófico: isso não me apavorou!
Descartes foi anti-filosófico no seu contexto, Schopenhauer, Nietzsche! Basta
uma leitura mais crítica da tradição filosófica para você perceber que a
filosofia é feita de marginais insólitos!). Nunca fui convencido da
justificativa da filosofia como crítica cultural – ideológica, nem a papagaiada
marxista que reduzia a filosofia a mera “interpretação do mundo” – banana para
Marx! Filosofia sempre me foi uma tradição marginal – na margem do pensamento
geral - , não só uma criação de conceitos e interpretações, mas transformadora
e inventiva, REVOLUCIONÁRIA E REVOLTADA até o limite de estalar e arrancar
faíscas do pensamento, literária e de leitores ativos: nada de respostas fáceis
e autoajuda consoladora. Pois bem, Cioran parecia de acordo comigo, e eu, mais
ainda de acordo com Cioran. Estava maduro para tal encontro com Cioran! Dois
anos antes eu teria recolocado História e Utopia na prateleira! Teria ido para
casa com um Hobsbawn ou Le Goff – que vexame!!!
......Cioran
cooperou com meu “desaprendizado” em ler a história! Dialética crítica é o
caralho! A história é feita de uma projeção utópica (portanto, no futuro) de
uma nostalgia passada (portanto, do passado). Nostalgia e Utopia são
perspectivas ideológicas que tornam nossa existência factual um verdadeiro
tormento! Deste duplo delírio (Nostalgia e Utopia) nascem as “boas novas”, os reformadores
de todo sofrimento. As ideologias que movimentam as massas. O blábláblá que se
resume na promessa sintetizada em: “um futuro melhor”, caiu aos pedaços diante
de mim, assim que travei conhecimento com a citada obra. Depois deste “desaprendizado”,
de toda a ladainha que se dizia pós-metafísica e portanto “materialista”, nunca
mais fui capaz de suportar qualquer ideólogo! Bastava um cara pegar num
microfone/megafone e dizer “NÓS” para mim saber que se tratava de um patife, de
um desgraçado que incapaz de duvidar de suas crenças tentava impor sua “verdade”.
De “quebra”, o que era desconfiança em relação a todas as manobras democráticas
– a propaganda entusiasmada dos partidarismos políticos, sindicatos financiados,
manifestos recheados de promessas de um mundo melhor, religiões do pós-vida,
movimentos sociais com ampla margem de negociação para com representantes do
governo -, o que era desconfiança em mim se tornou ceticismo.
......Se
com Nietzsche, já notava que toda promessa de redenção futura negava a
existência presente, com Cioran tive provas de que nenhum “ativismo” era gratuito.
Afirmado, o ativismo – a maioria deles -, até as últimas consequências,
resultava em poças de sangue – inclusive justificadas por promessas redentoras
que desaguavam num futuro utópico.
......Toda
utopia humana, que transbordam os bueiros e alagam as ruas, arrastam multidões,
passou a ser meu presságio de apocalipse.
Se a sociedade humana incendiar esse planetinha do sistema solar, não
tenha dúvidas que será em nome de uma “boa causa”. Difícil de acreditar para
quem está crente no progresso e numa dialética recheada de boas intenções, não
é mesmo? Os fanáticos injetaram na veia suas convicções. Agora o fanatismo
desfila sem medo do ridículo com o peito estufado, diante de nós.
......Veja
só, caro leitor, das coisas que pode se desaprender com Cioran, a confiança
veio pra ficar. Uma filosofia que coloca em xeque-mate qualquer que seja a
verdade, ideologia, perspectiva histórica – social – psicossocial. O ser humano
é “idólatra por instinto” – parafraseando Cioran -, isto é, apenas pelo tesão
de participar de algo tudo se justifica. A banalidade do mal que a filósofa
Hannah Arendt testemunhou no nazismo, já estava presente antes e está presente
agora. Basta você “desaprender” um pouco e desconfiar bastante, para perceber
isso! Basta uma certeza para auxiliar qualquer ser humano a puxar um gatilho
– Inclusive no suicídio.
......Nossa
“saudade do paraíso”, nossa tentativa em ato de realizar a utopia na História
(esse “desfile de absolutos” – acrescento: ficções abobadas), nossa
justificativa racional de nossos delírios e tormentos, nosso engajamento ideológico
(defendido como “não-alienação”) manchou essa terra de sangue incontáveis
vezes. Meu “desaprendizado” realizado, partindo de Cioran, demonstrou que “quem
luta por algo, morre por algo, mata por algo!”. E este “algo”, sempre foi uma certeza. Qualquer
sujeito que se atravesse no caminho daqueles que estão convictos de uma
ideologia (nem precisa ser um totalitarismo) é definido como um inimigo.
INIMIGO foi o termo sempre usado em guerras para legitimar o massacre! O
engraçado é que nações em guerra são conduzidas a guerras por ALGUÉM, alguém
com grande poder de convencimento, alguém com RESPOSTAS. Não te soa familiar?: O INIMIGO da nossa
causa, O INIMIGO da nossa sociedade, O INIMIGO da nossa nação, O INIMIGO DA
DEMOCRACIA, O INIMIGO do nosso governo, O INIMIGO da nossa religião, O INIMIGO,
O INIMIGO, O INIMIGO... todo CONVICTO tem um inimigo! – O inimigo é o bode expiatório
de qualquer reforma. O diabo, O forasteiro, O de direita, O de esquerda, O
bandido.
......Quando
você for formular sua perspectiva de INIMIGO, experimente espiar qual é a TARA
que você está justificando por baixo dos panos! Será mesmo que você é tarado
apenas pela democracia? (risos)...
,,,,,,Este
Cioran, não só foi de uma consciência monstruosa em relação ao que ficcionamos “humanidade”,
como foi de um comportamento desconcertante, típico de um filósofo. Renunciando
prêmios literários e “mimos” da cultura francesa (e dos defensores da cultura
em geral – por Deus... hoje há tantos defensores...) deixou a ferida aberta
nessa nossa mania de sucesso! Não cedeu, nem por um milésimo de segundo, a
tradição literária de AGRADAR a todo custo. Depois de levar a sério o intento
de “caluniar o universo” foi capaz de abandonar a escrita. Devolveu a filosofia
a arrogância de não ceder à tentação de “justificar-se”. É por aí que o admiro
profundamente – embora saiba que minha admiração e a de toda a humanidade, para
ele, fosse indiferente. Se outro de seus “colegas” de contexto – Jean-Paul
Sartre – renunciou ao Nobel para salvaguardar o fato de que não estava “acabado”,
Cioran rejeitou tudo numa demonstração empírica de que a humanidade não fez
dele uma vítima, no final das contas. A cultura – esse engajamento que ninguém,
nos nossos dias, ousa declarar escárnio – não passou para Cioran de um mal
estar. Uma inconveniência para os filósofos – do seu “tipo”. Ai de um filósofo,
hoje, confessar que esse amor declarado pela cultura não passa de um
subterfúgio para um “empresário das ideias”! O “povo” condenará no ato tal arrogância!
A sociedade não perdoa intentos intelectuais que não visem a cultura do povo.
Mas Cioran soube cedo que esta era uma das grandes mentiras da filosofia!
Desmascaramento da filosofia: ela não é serviçal da cultura! (Não me desculpem
autoproclamados “agitadores culturais”, vocês não são filósofos, sinto muito,
contenham as lágrimas!). O filósofo legítimo e o “homem do povo”, nasceram
apartados. Esta foi a última de minhas “desaprendizagens”
que tive com Cioran. Deus me livre de Deus e de justificar a filosofia dizendo
que tudo é cultural! (risos).
r.A.
“Dom
Quixote representa a juventude de uma civilização: ele se inventava
acontecimentos; nós não sabemos como escapar aos que nos perseguem” (Emil M.
Cioran – Silogismos da amargura).
“Que
tristeza ver grandes nações mendigarem um suplemento de futuro!” (Emil M.
Cioran – Silogismos da amargura).
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