domingo, 6 de abril de 2014

A angústia adolescente pagou muito bem, agora estou entendiado e velho (Kurt Cobain- Server the servants)


......Agora que muito se fala dos vinte anos da morte de Kurt Donald Cobain (1967 – 1994), vocalista, letrista e guitarrista do Nirvana, eu não poderia deixa de pensar em como passei a admirá-lo profundamente. A primeira vez que ouvi falar dele foi pouco antes de sua morte. Eu era criança demais para entender o que aconteceu. A única coisa que me lembro é que o disco Nevermind circulava em minha casa graças a minha irmã. E deste disco, mesmo eu não tendo 10 anos de idade completos e mesmo não entendendo direito o que dizia a letra, eu botava para tocar Territorial Pissing repetidas vezes.
......Só fui voltar a pensar nesse sujeito com 13/14 anos. Tinha ido visitar um amigo (Gustavo Fiorentin) e como ele morava longe de minha casa, havia ficado tarde demais para eu retornar. Fiquei hospedado no quarto de um de seus irmãos mais velhos. Sem sono, comecei a folhear algumas revistas de rock e me deparei com uma revista especial sobre Nirvana. Comecei a ler as entrevistas e achei o sujeito complexo e inteligente demais para ser “verdade”. Até ali, rock para mim era um excesso de pose e um barulho mais suportável – do que o que havia para se ouvir. Mas, diferente da maioria dos adolescentes, não tinha se tornado uma febre na minha vida.
......Pela manhã comecei a torrar o saco desse meu amigo para encontrarmos pelo menos uma música da banda daquele sujeito. Vasculhamos vários CD’s, e não encontramos nada. Mas ele sabia do que se tratava, já eu, não consegui associar o disco Nervermind de minha irmã ao nome da banda. Discutimos por um tempo as entrevistas, as críticas que o tal Kurt fazia ao “negócio” que era o rock. Pedi se ele podia me emprestar àquela revista. Receoso com os seus irmãos mais velhos, ele disse que não poderia me emprestar antes de consultá-los. O ‘estranho’é que essa revista estava na minha mochila quando voltei para casa... (risos).
......Foi uma das poucas coisas que me interessaram na época. Não tinha apreço por ler e tão pouco pensar sobre o mundo – quem diria!!!. Consegui reunir mais material sobre a banda e em pouco tempo sabia muitos detalhes sobre Kurt Cobain, lia várias de suas letras como se fossem poemas (aprendizado fundamental quando comecei a compor!), mas não havia ouvido o som. Esse mesmo amigo conseguiu para mim um daqueles discos/seleções de clássicos do rock e foi aí que pude ouvir “Come as you are” e “Smell like a teen spirit”. Como até ali não era um fã de rock, não sabia onde procurar discos de rock. Lesado o suficiente para não entrar numa loja de discos! –DÃh! Um dia, entrando numa lojinha que vendia discos piratas, consegui o Unplugged in New York do Nirvana. Foi o meu disco favorito, mesmo mais tarde, tendo conseguido todos os discos e mais materiais ao vivo.
......Apenas para constar, tive uma iniciação ao Nirvana e ao legado de Kurt Cobain, mais pelas entrevistas, pelas letras e pelas biografias, do que pelos discos. E por isso, fui capaz de pensá-lo, não partindo de uma crítica musical, mas por sua poética caótica, desconsolada e desesperada. Fui levado a um estudo minucioso sobre a tradição musical que foi e é o rock. Graças a esse feliz acaso, sempre tive uma avaliação partindo do conteúdo – de qualquer artista – e não apenas pelo entusiasmo. Coisa semelhante aconteceu comigo com bandas como Joy Division, Sex Pistols e Two Gallants.
......Gastei mais tempo da minha vida discutindo e refletindo sobre isso do que estudando no ensino médio – Gustavo Britto, Ivandro Pagani, e, garrafões e mais garrafões de vinho barato, confusões e mais confusões a níveis inimagináveis para qualquer adolescente! Mal acredito que sobrevivemos (risos).
......Mais tarde, (16/17 anos), quando comecei a estudar música – guitarra, bateria, baixo, vocal, composição, etc. – pude observar que Kurt Cobain era tão competente como poeta quanto como músico. Seu potencial criativo era muito maior do que o que foi capaz de expressar. Vou repetir isso: Seu potencial criativo era muito maior do que foi capaz de expressar. Se tivesse sido um artista plástico – lado que também ‘enveredou’ e cogitou -, um escritor ou um poeta, dificilmente não teria obtido um lugar de destaque. Era impossível – embora o sucesso tenha o ajudado significativamente – seu gênio ter passado despercebido.
......De minha perspectiva, não é, de forma alguma, um exagero colocá-lo, em seu determinado contexto e em sua poética, ao lado de sujeitos (em seus contextos, suas poéticas e suas linguagens de expressão...) como Jim Morrison, Leonard Cohen, Nick Drake, Arthur Rimbaud, Charles Baudelaire, Bukowski ou filósofos do nível de Schopenhauer e Cioran. Apontá-lo meramente como “apenas mais um ícone do rock” é reduzir demais seu significado artístico. Há outros desse ‘feitio’ no rock? – óbvio que há! Mas acredito serem poucos (poucos do ponto de vista da quantidade de ‘ícones do rock’). Não foram poucos que conheci que me disseram:_ Não gosto da música do Nirvana, mas entendo a importância de Kurt Cobain para a música. Gente que está para além do “gosto/ não gosto” é raro hoje em dia!
......Hoje, quando vejo milhares de artigos de revistas e sites referindo-se a Cobain como meramente um cara problemático ou “porta voz da geração 90, ou geração Grunge rock”, não deixo de imaginá-lo resmungando “fuck you” em algum lugar. Provavelmente – como o próprio citou várias vezes -, ele diria que não tem nada a ver com uma porção de milhares de pessoas que andam por aí com sua cara estampada em uma camiseta. Cito-o: “Se você for machista, racista ou homofóbico, pode deixar de comprar nossos discos e vir aos nossos shows!”.
......Deixe-me falar do título que usei para este rápido ensaio. Não muito tempo atrás – coisa de três anos – estava sentado em uma mesa de bar com alguns músicos de bandas de rock, apenas falando sobre a importância social que temos como artistas. O nome de Kurt surgiu na conversa, ao que, alguém resmungou:_ ah, a geração 90 se resume a lamentar que os pais e a sociedade não os compreendiam! Isso foi dito num tom de menosprezo. Com um certo cansaço para debater certos assuntos, com a desculpa de fumar um cigarro, me retirei da mesa. Obviamente não voltei mais – nunca mais! (risos). Primeiro, não suporto roqueiros incapazes de autocrítica, aliás, não suporto nenhum tipo de pretenso artista que não esteja provido de uma autocrítica ácida sobre si mesmo. Kurt – recorde-se do título deste ensaio – era cruel em sua autocrítica como artista e inclusive era capaz de uma leitura poderosa sobre seu próprio contexto. E mais! Foi capaz de entender, sem rodeios, direto ao ponto, o que a massa – induzida pelos (maioria dos) jornalistas- pensava sobre seu “sucesso”. Foi capaz, no seu último disco (In utero), de disparar uma ironia que incluía não apenas a si mesmo, mas todo o contexto-psico-social. Te pergunto: Visionário? Hoje a angústia adolescente não vem pagando muito bem? E depois, cansado, foi capaz de amadurecer e ser sincero falando que isso tudo o entediava. Se os roqueiros tivessem se dado ao trabalho de pensar um pouco ao invés de se masturbar no palco, acho que o rock teria (a maior parte do rock, me refiro) tido um rumo mais interessante além de falar de bebedeira e diversão. (Sem falar na rebeldia de se entocar num sítio fora da cidade para usar drogas e boquejar sobre o capitalismo... mui rebelde! [risos]). E em segundo lugar, vejo que Kurt foi capaz de ‘educar’ boa parte dos roqueiros (inclusive não-roqueiros!) quanto às angústias “subjetivas – singulares” que podem destroçar uma pessoa! Por que toco nesse assunto? Ora, o rock (a maior parte, é sempre a isso que estou me referindo e no contexto atual, esse texto tem uma data, ok?), quando não sofre de um excesso de intelectualismo barato, sofre de uma banalização festiva. Isto é, poucos não caem de um lado ou do outro do cavalo! – aposto na sua inteligência para entender a metáfora!
......Por fim, desejaria profundamente, que esta recordação da morte de Kurt Cobain, embarcasse no seu significado contraditório! Já que o próprio Kurt foi testemunha fiel do drama da contradição ‘pós-moderna’, ou seja, da crise de identidade dramática do nosso contexto. “Roqueiro autodestrutivo depressivo” nunca foi sua sugestão! Foi seu lamento – se pudesse ter escolhido, ele não teria optado por isso. Vítima de uma sociedade ridícula? Também, mas vítima de uma genialidade que estava longe de ser ‘morna’, de uma sensibilidade abissal. Louvá-lo pela morte é no mínimo mórbido e estúpido.  Enquanto os intelectualóides de plantão estão denunciando paradoxos, penso que é justamente o paradoxo que deve ser exposto a sério – e (quase) como conquista sensível! Somos paradoxais! Mas nem por isso devemos sentir “vergonha” de nossa contradição. Nossos problemas não devem ser um obstáculo para nossa pretensa felicidade, mas um constitutivo que nos compõem. Kurt foi um embate MORAL entre o que se tem por “certo” – ser “alguém na vida”, não ter vícios, seguir a moda e a opinião geral vigente! – e o que se tem por “errado” – assumir suas fraquezas, sua ignorância, suas opiniões singulares. Se você acha que já estamos fazendo isso, basta você olhar para a música hoje, que dita a regra da ostentação a todo custo! A ditadura da boa vida e da boa saúde – Isso não é só o capitalismo, poupe-se dessas críticas ingênuas!
......Kurt Cobain foi homem o suficiente para nos expor dramaticamente que a humanidade não é Ordem e Coerência, mas Caos e Paixão! Não é uma questão de fazer a apologia do Caos e da Paixão, como muitos fazem se autoflagelando só para manter o “fashion shits, fashion style”. Antes de morrer ele ainda tinha uma máxima: PAZ (um pressuposto ÉTICO/MORAL), AMOR (Um pressuposto SUBJETIVO) e EMPATIA (Um desafio PSICOSOCIAL, alteridade). Até onde me consta, bastando-me observar nossa realidade social, estamos muito longe disso. Pois então, que o significado contraditório de sua vida se faça valer. Longe de torná-lo um mártir, mas entendê-lo como um gênio provocador.
......Sem Kurt Cobain, com toda certeza, eu não teria desenvolvido gosto pela música, pela arte, pela literatura, por causas políticas e sociais (inclusive anti-políticas e a anti-sociedade!). Não posso imaginar o que teria sido de mim sem conhecer sua profunda e atormentada obra, mas posso entender a influência que esse cara exerceu sobre mim.

r.A.





PS.Este ensaio é dedicado a duas criaturas do absurdo. Tem um cara que é autoridade na vagabundagem e no tiro de pistola– André Romanoski é como foi registrado, numa fria tarde de dezembro – e me ajudou a concretizar o sonho de ter uma banda de rock chamada Sodoma H. E outro cara que é autoridade na cerveja e na guitarra – que atende pelo nome de Antônio Marcos –, que nunca me deixou desistir da música. Essas duas criaturas do pântano, que seduzem mocinhas desavisadas, me mantiveram no mau caminho. Tentei aconselhar os meliantes a ir para a luz, mas eles se corromperam e me levaram junto para as sombras. Não poderia terminar esse ensaio sem citar as criaturas. Se eu fosse um sujeito religioso, rezaria a Kurt para que seus copos nunca secassem. Embora saiba que se rezasse para que seus copos secassem, nem toda fé do mundo seria suficiente. Causas perdidas... Se o rock e a safadeza não existissem, eles teriam inventado.

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