......Agora
que muito se fala dos vinte anos da morte de Kurt Donald Cobain (1967 – 1994),
vocalista, letrista e guitarrista do Nirvana, eu não poderia deixa de pensar em
como passei a admirá-lo profundamente. A primeira vez que ouvi falar dele foi
pouco antes de sua morte. Eu era criança demais para entender o que aconteceu.
A única coisa que me lembro é que o disco Nevermind circulava em minha casa
graças a minha irmã. E deste disco, mesmo eu não tendo 10 anos de idade
completos e mesmo não entendendo direito o que dizia a letra, eu botava para
tocar Territorial Pissing repetidas vezes.
......Só
fui voltar a pensar nesse sujeito com 13/14 anos. Tinha ido visitar um amigo
(Gustavo Fiorentin) e como ele morava longe de minha casa, havia ficado tarde
demais para eu retornar. Fiquei hospedado no quarto de um de seus irmãos mais
velhos. Sem sono, comecei a folhear algumas revistas de rock e me deparei com
uma revista especial sobre Nirvana. Comecei a ler as entrevistas e achei o
sujeito complexo e inteligente demais para ser “verdade”. Até ali, rock para
mim era um excesso de pose e um barulho mais suportável – do que o que havia
para se ouvir. Mas, diferente da maioria dos adolescentes, não tinha se tornado
uma febre na minha vida.
......Pela
manhã comecei a torrar o saco desse meu amigo para encontrarmos pelo menos uma
música da banda daquele sujeito. Vasculhamos vários CD’s, e não encontramos
nada. Mas ele sabia do que se tratava, já eu, não consegui associar o disco
Nervermind de minha irmã ao nome da banda. Discutimos por um tempo as
entrevistas, as críticas que o tal Kurt fazia ao “negócio” que era o rock. Pedi
se ele podia me emprestar àquela revista. Receoso com os seus irmãos mais
velhos, ele disse que não poderia me emprestar antes de consultá-los. O
‘estranho’é que essa revista estava na minha mochila quando voltei para casa...
(risos).
......Foi
uma das poucas coisas que me interessaram na época. Não tinha apreço por ler e
tão pouco pensar sobre o mundo – quem diria!!!. Consegui reunir mais material
sobre a banda e em pouco tempo sabia muitos detalhes sobre Kurt Cobain, lia
várias de suas letras como se fossem poemas (aprendizado fundamental quando
comecei a compor!), mas não havia ouvido o som. Esse mesmo amigo conseguiu para
mim um daqueles discos/seleções de clássicos do rock e foi aí que pude ouvir
“Come as you are” e “Smell like a teen spirit”. Como até ali não era um fã de
rock, não sabia onde procurar discos de rock. Lesado o suficiente para não
entrar numa loja de discos! –DÃh! Um dia, entrando numa lojinha que vendia
discos piratas, consegui o Unplugged in New York do Nirvana. Foi o meu disco
favorito, mesmo mais tarde, tendo conseguido todos os discos e mais materiais
ao vivo.
......Apenas
para constar, tive uma iniciação ao Nirvana e ao legado de Kurt Cobain, mais
pelas entrevistas, pelas letras e pelas biografias, do que pelos discos. E por
isso, fui capaz de pensá-lo, não partindo de uma crítica musical, mas por sua
poética caótica, desconsolada e desesperada. Fui levado a um estudo minucioso
sobre a tradição musical que foi e é o rock. Graças a esse feliz acaso, sempre
tive uma avaliação partindo do conteúdo – de qualquer artista – e não apenas
pelo entusiasmo. Coisa semelhante aconteceu comigo com bandas como Joy
Division, Sex Pistols e Two Gallants.
......Gastei
mais tempo da minha vida discutindo e refletindo sobre isso do que estudando no
ensino médio – Gustavo Britto, Ivandro Pagani, e, garrafões e mais garrafões de
vinho barato, confusões e mais confusões a níveis inimagináveis para qualquer
adolescente! Mal acredito que sobrevivemos (risos).
......Mais
tarde, (16/17 anos), quando comecei a estudar música – guitarra, bateria,
baixo, vocal, composição, etc. – pude observar que Kurt Cobain era tão
competente como poeta quanto como músico. Seu potencial criativo era muito
maior do que o que foi capaz de expressar. Vou repetir isso: Seu potencial
criativo era muito maior do que foi capaz de expressar. Se tivesse sido um
artista plástico – lado que também ‘enveredou’ e cogitou -, um escritor ou um
poeta, dificilmente não teria obtido um lugar de destaque. Era impossível –
embora o sucesso tenha o ajudado significativamente – seu gênio ter passado
despercebido.
......De
minha perspectiva, não é, de forma alguma, um exagero colocá-lo, em seu determinado
contexto e em sua poética, ao lado de sujeitos (em seus contextos, suas
poéticas e suas linguagens de expressão...) como Jim Morrison, Leonard Cohen,
Nick Drake, Arthur Rimbaud, Charles Baudelaire, Bukowski ou filósofos do nível
de Schopenhauer e Cioran. Apontá-lo meramente como “apenas mais um ícone do
rock” é reduzir demais seu significado artístico. Há outros desse ‘feitio’ no
rock? – óbvio que há! Mas acredito serem poucos (poucos do ponto de vista da
quantidade de ‘ícones do rock’). Não foram poucos que conheci que me disseram:_
Não gosto da música do Nirvana, mas entendo a importância de Kurt Cobain para a
música. Gente que está para além do “gosto/ não gosto” é raro hoje em dia!
......Hoje,
quando vejo milhares de artigos de revistas e sites referindo-se a Cobain como
meramente um cara problemático ou “porta voz da geração 90, ou geração Grunge
rock”, não deixo de imaginá-lo resmungando “fuck you” em algum lugar.
Provavelmente – como o próprio citou várias vezes -, ele diria que não tem nada
a ver com uma porção de milhares de pessoas que andam por aí com sua cara
estampada em uma camiseta. Cito-o: “Se você for machista, racista ou homofóbico,
pode deixar de comprar nossos discos e vir aos nossos shows!”.
......Deixe-me
falar do título que usei para este rápido ensaio. Não muito tempo atrás – coisa
de três anos – estava sentado em uma mesa de bar com alguns músicos de bandas
de rock, apenas falando sobre a importância social que temos como artistas. O
nome de Kurt surgiu na conversa, ao que, alguém resmungou:_ ah, a geração 90 se
resume a lamentar que os pais e a sociedade não os compreendiam! Isso foi dito
num tom de menosprezo. Com um certo cansaço para debater certos assuntos, com a
desculpa de fumar um cigarro, me retirei da mesa. Obviamente não voltei mais –
nunca mais! (risos). Primeiro, não suporto roqueiros incapazes de autocrítica,
aliás, não suporto nenhum tipo de pretenso artista que não esteja provido de
uma autocrítica ácida sobre si mesmo. Kurt – recorde-se do título deste ensaio
– era cruel em sua autocrítica como artista e inclusive era capaz de uma
leitura poderosa sobre seu próprio contexto. E mais! Foi capaz de entender, sem
rodeios, direto ao ponto, o que a massa – induzida pelos (maioria dos)
jornalistas- pensava sobre seu “sucesso”. Foi capaz, no seu último disco (In
utero), de disparar uma ironia que incluía não apenas a si mesmo, mas todo o
contexto-psico-social. Te pergunto: Visionário? Hoje a angústia adolescente não
vem pagando muito bem? E depois, cansado, foi capaz de amadurecer e ser sincero
falando que isso tudo o entediava. Se os roqueiros tivessem se dado ao trabalho
de pensar um pouco ao invés de se masturbar no palco, acho que o rock teria (a
maior parte do rock, me refiro) tido um rumo mais interessante além de falar de
bebedeira e diversão. (Sem falar na rebeldia de se entocar num sítio fora da
cidade para usar drogas e boquejar sobre o capitalismo... mui rebelde!
[risos]). E em segundo lugar, vejo que Kurt foi capaz de ‘educar’ boa parte dos
roqueiros (inclusive não-roqueiros!) quanto às angústias “subjetivas –
singulares” que podem destroçar uma pessoa! Por que toco nesse assunto? Ora, o
rock (a maior parte, é sempre a isso que estou me referindo e no contexto
atual, esse texto tem uma data, ok?), quando não sofre de um excesso de
intelectualismo barato, sofre de uma banalização festiva. Isto é, poucos não
caem de um lado ou do outro do cavalo! – aposto na sua inteligência para
entender a metáfora!
......Por
fim, desejaria profundamente, que esta recordação da morte de Kurt Cobain,
embarcasse no seu significado contraditório! Já que o próprio Kurt foi
testemunha fiel do drama da contradição ‘pós-moderna’, ou seja, da crise de
identidade dramática do nosso contexto. “Roqueiro autodestrutivo depressivo”
nunca foi sua sugestão! Foi seu lamento – se pudesse ter escolhido, ele não
teria optado por isso. Vítima de uma sociedade ridícula? Também, mas vítima de
uma genialidade que estava longe de ser ‘morna’, de uma sensibilidade abissal.
Louvá-lo pela morte é no mínimo mórbido e estúpido. Enquanto os intelectualóides de plantão estão
denunciando paradoxos, penso que é justamente o paradoxo que deve ser exposto a
sério – e (quase) como conquista sensível! Somos paradoxais! Mas nem por isso
devemos sentir “vergonha” de nossa contradição. Nossos problemas não devem ser
um obstáculo para nossa pretensa felicidade, mas um constitutivo que nos
compõem. Kurt foi um embate MORAL entre o que se tem por “certo” – ser “alguém
na vida”, não ter vícios, seguir a moda e a opinião geral vigente! – e o que se
tem por “errado” – assumir suas fraquezas, sua ignorância, suas opiniões
singulares. Se você acha que já estamos fazendo isso, basta você olhar para a
música hoje, que dita a regra da ostentação a todo custo! A ditadura da boa
vida e da boa saúde – Isso não é só o capitalismo, poupe-se dessas críticas
ingênuas!
......Kurt
Cobain foi homem o suficiente para nos expor dramaticamente que a humanidade
não é Ordem e Coerência, mas Caos e Paixão! Não é uma questão de fazer a
apologia do Caos e da Paixão, como muitos fazem se autoflagelando só para
manter o “fashion shits, fashion style”. Antes de morrer ele ainda tinha uma
máxima: PAZ (um pressuposto ÉTICO/MORAL), AMOR (Um pressuposto SUBJETIVO) e
EMPATIA (Um desafio PSICOSOCIAL, alteridade). Até onde me consta, bastando-me observar
nossa realidade social, estamos muito longe disso. Pois então, que o
significado contraditório de sua vida se faça valer. Longe de torná-lo um
mártir, mas entendê-lo como um gênio provocador.
......Sem
Kurt Cobain, com toda certeza, eu não teria desenvolvido gosto pela música,
pela arte, pela literatura, por causas políticas e sociais (inclusive
anti-políticas e a anti-sociedade!). Não posso imaginar o que teria sido de mim sem conhecer sua profunda e atormentada obra,
mas posso entender a influência que esse cara exerceu sobre mim.
r.A.
PS.Este ensaio é dedicado a duas criaturas do absurdo. Tem um cara que é autoridade na vagabundagem e no tiro de pistola– André
Romanoski é como foi registrado, numa fria tarde de dezembro – e me ajudou a
concretizar o sonho de ter uma banda de rock chamada Sodoma H. E outro cara que
é autoridade na cerveja e na guitarra – que atende pelo nome de Antônio Marcos
–, que nunca me deixou desistir da música. Essas duas criaturas do pântano, que
seduzem mocinhas desavisadas, me mantiveram no mau caminho. Tentei aconselhar
os meliantes a ir para a luz, mas eles se corromperam e me levaram junto para
as sombras. Não poderia terminar esse ensaio sem citar as criaturas. Se eu
fosse um sujeito religioso, rezaria a Kurt para que seus copos nunca secassem.
Embora saiba que se rezasse para que seus copos secassem, nem toda fé do mundo
seria suficiente. Causas perdidas... Se o rock e a safadeza não existissem,
eles teriam inventado.
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