quinta-feira, 24 de abril de 2014

Sonhei que você era minhas férias!



......Quem sabe toda expressão seja uma mentira depois que passa pelas regras de comunicação. E acho que a coisa fica pior uma vez que escrevo para mim. Por exemplo, agora: sinto vontade de ir para um lugar que seja como um lar... Mas não tive isso, apenas uma idealização tosca disso. Como posso sentir falta de um lugar que nunca tive e nem quero estar?  Viu? Isso não dá para expressar nem em mil poemas.
......Sonhei que você era minhas férias, mas não foi dormindo... foi na sacada, depois de uma madrugada de insônia.
......Quando o sol nasceu e os sons da rua ficaram insuportáveis, tive que me perguntar se estava mesmo onde queria. “Olha, esse é o melhor lugar para uma pessoa como você” – resmunguei. Tive vontade de me atirar da sacada depois disso, tive que rir.
......A pior parte quando estou assim, de mal com as palavras, é que não expresso o que sinto. E quando não expresso o que sinto, me sinto pior.  Preciso da escrita como uma velha precisa de suas orações pela família. É horrível essa dependência por algo inútil!
......O que acho ridículo em um ser humano é a convicção nas palavras. A confiança nessa espécie de uivo adestrado – me sufoca. Essas alucinações gramaticais são um porre de vodca barata. Vai ver é por isso que não me dou bem com coisas que falam... e se falam muito, e se falam alto... despertam um vulcão de ódio – que com muito custo mantenho inativo.
......Não desejo nada além de férias. E que você seja essas férias. E que possamos passar meses trancando o mundo do lado de fora de um abraço nu. Nenhuma palavra mais!
......Todo escritor que não sente um misto de nojo e prazer com as palavras, para mim é uma piada! Todo escritor que segue um método, que limpa sua escrita, que se preocupa com a técnica, na minha irritada opinião merece 39 chicotadas nas costas – e uma no cu. Enquanto ninguém sofrer para falar, para escrever, tudo será uma bosta. – desejo para todos os escritores medíocres, aulas de escrita criativa!!! Milhões de oficinas para “trocar ideias”. E não é para eles ficarem bons, é para continuarem mantendo a mediocridade do mercado editorial – confio nisso para vencer um dia! (risos). – o aluguel continua enchendo o saco no dia 5 e a cerveja teima em acabar em horas inconvenientes.
......Eu consigo entender e até consigo aceitar o fato de você não ser minhas férias. Eu sou feio, desengonçado e mal humorado. Costumo rir na cara de gente que se acha bacana e todos meus amigos já pensaram em me matar um dia!
......Sonhei que você era minhas férias... isso é insuportável para mim. O último pistoleiro em pé – é o que dizem.
......Você lembra quando disse que sentia falta de um lugar que fosse como um lar? Eu menti para te impressionar ou essa falta já passou.
O que eu sinto falta mesmo é de um cachorro
Adestrado para buscar cigarros na padaria
E
Que invés de latir, grite:_ VÁ SE FODER!
Para São Paulo inteira ouvir.

Pois é.


r.A.

PS. Ao som de Sonic Youth - Sweet Shine.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Coisas que você pode "desaprender" com CIORAN



“A loucura de pregar está tão enraizada em nós que emerge de profundidades desconhecidas ao instinto de conservação. Cada um espera seu momento para propor algo: não importa o quê. Tem uma voz: isto basta. Pagamos caro não ser surdos nem mudos...” (Emil M. Cioran – Breviário de decomposição. Trecho de O antiprofeta).

......Certas coisas que condeno em outros escritores pratico muito bem! (risos). Quero dizer, não suporto o “endeusamento” de um autor – não suporto em mim e nos outros. É esta contradição estranha que me obrigo a explorar neste ensaio. Vou explicar melhor. Exceto por alguns artigos que defendi em algumas universidades, nunca me achei “bom” o suficiente para escrever sobre três filósofos: Schopenhauer, Nietzsche e Cioran. Mas escrevi! (risos). E esta barreira chegou a tal ponto que, imediatamente após ter defendido os citados artigos na academia, me desfiz deles (dos artigos)! Observe o nível da “frescura”. Não consegui suportar uma associação do meu nome com o nome dos tais filósofos. O simples fato de citá-los, já me provoca reprovação. Alguns caras são sérios demais para você tocar nos seus nomes sem sentir o peso da responsabilidade.
......Dia 8 de abril deste ano, comemorou-se o aniversário de nascimento de Emil Michel Cioran (1911-1995). Nascido na Romênia e (er)radicado na França. A primeira vez que tive contato com sua obra deve-se a um feliz acaso. Procurando, na biblioteca da universidade, por um livro de história, me chamou atenção o título de uma obra: História e Utopia. Um livro pequeno, mas poderoso. Uma obra sem rodeios, ia direto ao ponto. O simples fato do autor tratar a história como uma ilusão – o que concordo plenamente! – onde o ser humano deposita sua ficção de megalomania, seu desesperado apego as Utopias, seu exagero na fixação no passado – nostalgia -, fez com que eu suspirasse entusiasmado:_ rapaz! É esse livro que busquei por muito tempo! Vasculhei a biblioteca inteira atrás de outra obra do sujeito... incrível! Numa biblioteca com milhares de livros, só havia disponível este exemplar.
......De cinco livros em romeno e dez em francês, apenas cinco livros haviam sido traduzidos para o português. Todos esgotados há décadas! Diferente de Friederich Nietzsche – que eu pesquisava na época (e continuo pesquisando!). Pesquisei tudo que pude, e Cioran reabasteceu toda minha necessidade por filosofia ácida! ( Embora o próprio autor se denominava Anti-filosófico: isso não me apavorou! Descartes foi anti-filosófico no seu contexto, Schopenhauer, Nietzsche! Basta uma leitura mais crítica da tradição filosófica para você perceber que a filosofia é feita de marginais insólitos!). Nunca fui convencido da justificativa da filosofia como crítica cultural – ideológica, nem a papagaiada marxista que reduzia a filosofia a mera “interpretação do mundo” – banana para Marx! Filosofia sempre me foi uma tradição marginal – na margem do pensamento geral - , não só uma criação de conceitos e interpretações, mas transformadora e inventiva, REVOLUCIONÁRIA E REVOLTADA até o limite de estalar e arrancar faíscas do pensamento, literária e de leitores ativos: nada de respostas fáceis e autoajuda consoladora. Pois bem, Cioran parecia de acordo comigo, e eu, mais ainda de acordo com Cioran. Estava maduro para tal encontro com Cioran! Dois anos antes eu teria recolocado História e Utopia na prateleira! Teria ido para casa com um Hobsbawn ou Le Goff – que vexame!!!
......Cioran cooperou com meu “desaprendizado” em ler a história! Dialética crítica é o caralho! A história é feita de uma projeção utópica (portanto, no futuro) de uma nostalgia passada (portanto, do passado). Nostalgia e Utopia são perspectivas ideológicas que tornam nossa existência factual um verdadeiro tormento! Deste duplo delírio (Nostalgia e Utopia) nascem as “boas novas”, os reformadores de todo sofrimento. As ideologias que movimentam as massas. O blábláblá que se resume na promessa sintetizada em: “um futuro melhor”, caiu aos pedaços diante de mim, assim que travei conhecimento com a citada obra. Depois deste “desaprendizado”, de toda a ladainha que se dizia pós-metafísica e portanto “materialista”, nunca mais fui capaz de suportar qualquer ideólogo! Bastava um cara pegar num microfone/megafone e dizer “NÓS” para mim saber que se tratava de um patife, de um desgraçado que incapaz de duvidar de suas crenças tentava impor sua “verdade”. De “quebra”, o que era desconfiança em relação a todas as manobras democráticas – a propaganda entusiasmada dos partidarismos políticos, sindicatos financiados, manifestos recheados de promessas de um mundo melhor, religiões do pós-vida, movimentos sociais com ampla margem de negociação para com representantes do governo -, o que era desconfiança em mim se tornou ceticismo.  
......Se com Nietzsche, já notava que toda promessa de redenção futura negava a existência presente, com Cioran tive provas de que nenhum “ativismo” era gratuito. Afirmado, o ativismo – a maioria deles -, até as últimas consequências, resultava em poças de sangue – inclusive justificadas por promessas redentoras que desaguavam num futuro utópico.
......Toda utopia humana, que transbordam os bueiros e alagam as ruas, arrastam multidões, passou a ser meu presságio de apocalipse.  Se a sociedade humana incendiar esse planetinha do sistema solar, não tenha dúvidas que será em nome de uma “boa causa”. Difícil de acreditar para quem está crente no progresso e numa dialética recheada de boas intenções, não é mesmo? Os fanáticos injetaram na veia suas convicções. Agora o fanatismo desfila sem medo do ridículo com o peito estufado, diante de nós.
......Veja só, caro leitor, das coisas que pode se desaprender com Cioran, a confiança veio pra ficar. Uma filosofia que coloca em xeque-mate qualquer que seja a verdade, ideologia, perspectiva histórica – social – psicossocial. O ser humano é “idólatra por instinto” – parafraseando Cioran -, isto é, apenas pelo tesão de participar de algo tudo se justifica. A banalidade do mal que a filósofa Hannah Arendt testemunhou no nazismo, já estava presente antes e está presente agora. Basta você “desaprender” um pouco e desconfiar bastante, para perceber isso! Basta uma certeza para auxiliar qualquer ser humano a puxar um gatilho – Inclusive no suicídio.
......Nossa “saudade do paraíso”, nossa tentativa em ato de realizar a utopia na História (esse “desfile de absolutos” – acrescento: ficções abobadas), nossa justificativa racional de nossos delírios e tormentos, nosso engajamento ideológico (defendido como “não-alienação”) manchou essa terra de sangue incontáveis vezes. Meu “desaprendizado” realizado, partindo de Cioran, demonstrou que “quem luta por algo, morre por algo, mata por algo!”.  E este “algo”, sempre foi uma certeza. Qualquer sujeito que se atravesse no caminho daqueles que estão convictos de uma ideologia (nem precisa ser um totalitarismo) é definido como um inimigo. INIMIGO foi o termo sempre usado em guerras para legitimar o massacre! O engraçado é que nações em guerra são conduzidas a guerras por ALGUÉM, alguém com grande poder de convencimento, alguém com RESPOSTAS.  Não te soa familiar?: O INIMIGO da nossa causa, O INIMIGO da nossa sociedade, O INIMIGO da nossa nação, O INIMIGO DA DEMOCRACIA, O INIMIGO do nosso governo, O INIMIGO da nossa religião, O INIMIGO, O INIMIGO, O INIMIGO... todo CONVICTO tem um inimigo! – O inimigo é o bode expiatório de qualquer reforma. O diabo, O forasteiro, O de direita, O de esquerda, O bandido.
......Quando você for formular sua perspectiva de INIMIGO, experimente espiar qual é a TARA que você está justificando por baixo dos panos! Será mesmo que você é tarado apenas pela democracia? (risos)...
,,,,,,Este Cioran, não só foi de uma consciência monstruosa em relação ao que ficcionamos “humanidade”, como foi de um comportamento desconcertante, típico de um filósofo. Renunciando prêmios literários e “mimos” da cultura francesa (e dos defensores da cultura em geral – por Deus... hoje há tantos defensores...) deixou a ferida aberta nessa nossa mania de sucesso! Não cedeu, nem por um milésimo de segundo, a tradição literária de AGRADAR a todo custo. Depois de levar a sério o intento de “caluniar o universo” foi capaz de abandonar a escrita. Devolveu a filosofia a arrogância de não ceder à tentação de “justificar-se”. É por aí que o admiro profundamente – embora saiba que minha admiração e a de toda a humanidade, para ele, fosse indiferente. Se outro de seus “colegas” de contexto – Jean-Paul Sartre – renunciou ao Nobel para salvaguardar o fato de que não estava “acabado”, Cioran rejeitou tudo numa demonstração empírica de que a humanidade não fez dele uma vítima, no final das contas. A cultura – esse engajamento que ninguém, nos nossos dias, ousa declarar escárnio – não passou para Cioran de um mal estar. Uma inconveniência para os filósofos – do seu “tipo”. Ai de um filósofo, hoje, confessar que esse amor declarado pela cultura não passa de um subterfúgio para um “empresário das ideias”! O “povo” condenará no ato tal arrogância! A sociedade não perdoa intentos intelectuais que não visem a cultura do povo. Mas Cioran soube cedo que esta era uma das grandes mentiras da filosofia! Desmascaramento da filosofia: ela não é serviçal da cultura! (Não me desculpem autoproclamados “agitadores culturais”, vocês não são filósofos, sinto muito, contenham as lágrimas!). O filósofo legítimo e o “homem do povo”, nasceram apartados.  Esta foi a última de minhas “desaprendizagens” que tive com Cioran. Deus me livre de Deus e de justificar a filosofia dizendo que tudo é cultural! (risos).

r.A.

“Dom Quixote representa a juventude de uma civilização: ele se inventava acontecimentos; nós não sabemos como escapar aos que nos perseguem” (Emil M. Cioran – Silogismos da amargura).

“Que tristeza ver grandes nações mendigarem um suplemento de futuro!” (Emil M. Cioran – Silogismos da amargura).


domingo, 6 de abril de 2014

A angústia adolescente pagou muito bem, agora estou entendiado e velho (Kurt Cobain- Server the servants)


......Agora que muito se fala dos vinte anos da morte de Kurt Donald Cobain (1967 – 1994), vocalista, letrista e guitarrista do Nirvana, eu não poderia deixa de pensar em como passei a admirá-lo profundamente. A primeira vez que ouvi falar dele foi pouco antes de sua morte. Eu era criança demais para entender o que aconteceu. A única coisa que me lembro é que o disco Nevermind circulava em minha casa graças a minha irmã. E deste disco, mesmo eu não tendo 10 anos de idade completos e mesmo não entendendo direito o que dizia a letra, eu botava para tocar Territorial Pissing repetidas vezes.
......Só fui voltar a pensar nesse sujeito com 13/14 anos. Tinha ido visitar um amigo (Gustavo Fiorentin) e como ele morava longe de minha casa, havia ficado tarde demais para eu retornar. Fiquei hospedado no quarto de um de seus irmãos mais velhos. Sem sono, comecei a folhear algumas revistas de rock e me deparei com uma revista especial sobre Nirvana. Comecei a ler as entrevistas e achei o sujeito complexo e inteligente demais para ser “verdade”. Até ali, rock para mim era um excesso de pose e um barulho mais suportável – do que o que havia para se ouvir. Mas, diferente da maioria dos adolescentes, não tinha se tornado uma febre na minha vida.
......Pela manhã comecei a torrar o saco desse meu amigo para encontrarmos pelo menos uma música da banda daquele sujeito. Vasculhamos vários CD’s, e não encontramos nada. Mas ele sabia do que se tratava, já eu, não consegui associar o disco Nervermind de minha irmã ao nome da banda. Discutimos por um tempo as entrevistas, as críticas que o tal Kurt fazia ao “negócio” que era o rock. Pedi se ele podia me emprestar àquela revista. Receoso com os seus irmãos mais velhos, ele disse que não poderia me emprestar antes de consultá-los. O ‘estranho’é que essa revista estava na minha mochila quando voltei para casa... (risos).
......Foi uma das poucas coisas que me interessaram na época. Não tinha apreço por ler e tão pouco pensar sobre o mundo – quem diria!!!. Consegui reunir mais material sobre a banda e em pouco tempo sabia muitos detalhes sobre Kurt Cobain, lia várias de suas letras como se fossem poemas (aprendizado fundamental quando comecei a compor!), mas não havia ouvido o som. Esse mesmo amigo conseguiu para mim um daqueles discos/seleções de clássicos do rock e foi aí que pude ouvir “Come as you are” e “Smell like a teen spirit”. Como até ali não era um fã de rock, não sabia onde procurar discos de rock. Lesado o suficiente para não entrar numa loja de discos! –DÃh! Um dia, entrando numa lojinha que vendia discos piratas, consegui o Unplugged in New York do Nirvana. Foi o meu disco favorito, mesmo mais tarde, tendo conseguido todos os discos e mais materiais ao vivo.
......Apenas para constar, tive uma iniciação ao Nirvana e ao legado de Kurt Cobain, mais pelas entrevistas, pelas letras e pelas biografias, do que pelos discos. E por isso, fui capaz de pensá-lo, não partindo de uma crítica musical, mas por sua poética caótica, desconsolada e desesperada. Fui levado a um estudo minucioso sobre a tradição musical que foi e é o rock. Graças a esse feliz acaso, sempre tive uma avaliação partindo do conteúdo – de qualquer artista – e não apenas pelo entusiasmo. Coisa semelhante aconteceu comigo com bandas como Joy Division, Sex Pistols e Two Gallants.
......Gastei mais tempo da minha vida discutindo e refletindo sobre isso do que estudando no ensino médio – Gustavo Britto, Ivandro Pagani, e, garrafões e mais garrafões de vinho barato, confusões e mais confusões a níveis inimagináveis para qualquer adolescente! Mal acredito que sobrevivemos (risos).
......Mais tarde, (16/17 anos), quando comecei a estudar música – guitarra, bateria, baixo, vocal, composição, etc. – pude observar que Kurt Cobain era tão competente como poeta quanto como músico. Seu potencial criativo era muito maior do que o que foi capaz de expressar. Vou repetir isso: Seu potencial criativo era muito maior do que foi capaz de expressar. Se tivesse sido um artista plástico – lado que também ‘enveredou’ e cogitou -, um escritor ou um poeta, dificilmente não teria obtido um lugar de destaque. Era impossível – embora o sucesso tenha o ajudado significativamente – seu gênio ter passado despercebido.
......De minha perspectiva, não é, de forma alguma, um exagero colocá-lo, em seu determinado contexto e em sua poética, ao lado de sujeitos (em seus contextos, suas poéticas e suas linguagens de expressão...) como Jim Morrison, Leonard Cohen, Nick Drake, Arthur Rimbaud, Charles Baudelaire, Bukowski ou filósofos do nível de Schopenhauer e Cioran. Apontá-lo meramente como “apenas mais um ícone do rock” é reduzir demais seu significado artístico. Há outros desse ‘feitio’ no rock? – óbvio que há! Mas acredito serem poucos (poucos do ponto de vista da quantidade de ‘ícones do rock’). Não foram poucos que conheci que me disseram:_ Não gosto da música do Nirvana, mas entendo a importância de Kurt Cobain para a música. Gente que está para além do “gosto/ não gosto” é raro hoje em dia!
......Hoje, quando vejo milhares de artigos de revistas e sites referindo-se a Cobain como meramente um cara problemático ou “porta voz da geração 90, ou geração Grunge rock”, não deixo de imaginá-lo resmungando “fuck you” em algum lugar. Provavelmente – como o próprio citou várias vezes -, ele diria que não tem nada a ver com uma porção de milhares de pessoas que andam por aí com sua cara estampada em uma camiseta. Cito-o: “Se você for machista, racista ou homofóbico, pode deixar de comprar nossos discos e vir aos nossos shows!”.
......Deixe-me falar do título que usei para este rápido ensaio. Não muito tempo atrás – coisa de três anos – estava sentado em uma mesa de bar com alguns músicos de bandas de rock, apenas falando sobre a importância social que temos como artistas. O nome de Kurt surgiu na conversa, ao que, alguém resmungou:_ ah, a geração 90 se resume a lamentar que os pais e a sociedade não os compreendiam! Isso foi dito num tom de menosprezo. Com um certo cansaço para debater certos assuntos, com a desculpa de fumar um cigarro, me retirei da mesa. Obviamente não voltei mais – nunca mais! (risos). Primeiro, não suporto roqueiros incapazes de autocrítica, aliás, não suporto nenhum tipo de pretenso artista que não esteja provido de uma autocrítica ácida sobre si mesmo. Kurt – recorde-se do título deste ensaio – era cruel em sua autocrítica como artista e inclusive era capaz de uma leitura poderosa sobre seu próprio contexto. E mais! Foi capaz de entender, sem rodeios, direto ao ponto, o que a massa – induzida pelos (maioria dos) jornalistas- pensava sobre seu “sucesso”. Foi capaz, no seu último disco (In utero), de disparar uma ironia que incluía não apenas a si mesmo, mas todo o contexto-psico-social. Te pergunto: Visionário? Hoje a angústia adolescente não vem pagando muito bem? E depois, cansado, foi capaz de amadurecer e ser sincero falando que isso tudo o entediava. Se os roqueiros tivessem se dado ao trabalho de pensar um pouco ao invés de se masturbar no palco, acho que o rock teria (a maior parte do rock, me refiro) tido um rumo mais interessante além de falar de bebedeira e diversão. (Sem falar na rebeldia de se entocar num sítio fora da cidade para usar drogas e boquejar sobre o capitalismo... mui rebelde! [risos]). E em segundo lugar, vejo que Kurt foi capaz de ‘educar’ boa parte dos roqueiros (inclusive não-roqueiros!) quanto às angústias “subjetivas – singulares” que podem destroçar uma pessoa! Por que toco nesse assunto? Ora, o rock (a maior parte, é sempre a isso que estou me referindo e no contexto atual, esse texto tem uma data, ok?), quando não sofre de um excesso de intelectualismo barato, sofre de uma banalização festiva. Isto é, poucos não caem de um lado ou do outro do cavalo! – aposto na sua inteligência para entender a metáfora!
......Por fim, desejaria profundamente, que esta recordação da morte de Kurt Cobain, embarcasse no seu significado contraditório! Já que o próprio Kurt foi testemunha fiel do drama da contradição ‘pós-moderna’, ou seja, da crise de identidade dramática do nosso contexto. “Roqueiro autodestrutivo depressivo” nunca foi sua sugestão! Foi seu lamento – se pudesse ter escolhido, ele não teria optado por isso. Vítima de uma sociedade ridícula? Também, mas vítima de uma genialidade que estava longe de ser ‘morna’, de uma sensibilidade abissal. Louvá-lo pela morte é no mínimo mórbido e estúpido.  Enquanto os intelectualóides de plantão estão denunciando paradoxos, penso que é justamente o paradoxo que deve ser exposto a sério – e (quase) como conquista sensível! Somos paradoxais! Mas nem por isso devemos sentir “vergonha” de nossa contradição. Nossos problemas não devem ser um obstáculo para nossa pretensa felicidade, mas um constitutivo que nos compõem. Kurt foi um embate MORAL entre o que se tem por “certo” – ser “alguém na vida”, não ter vícios, seguir a moda e a opinião geral vigente! – e o que se tem por “errado” – assumir suas fraquezas, sua ignorância, suas opiniões singulares. Se você acha que já estamos fazendo isso, basta você olhar para a música hoje, que dita a regra da ostentação a todo custo! A ditadura da boa vida e da boa saúde – Isso não é só o capitalismo, poupe-se dessas críticas ingênuas!
......Kurt Cobain foi homem o suficiente para nos expor dramaticamente que a humanidade não é Ordem e Coerência, mas Caos e Paixão! Não é uma questão de fazer a apologia do Caos e da Paixão, como muitos fazem se autoflagelando só para manter o “fashion shits, fashion style”. Antes de morrer ele ainda tinha uma máxima: PAZ (um pressuposto ÉTICO/MORAL), AMOR (Um pressuposto SUBJETIVO) e EMPATIA (Um desafio PSICOSOCIAL, alteridade). Até onde me consta, bastando-me observar nossa realidade social, estamos muito longe disso. Pois então, que o significado contraditório de sua vida se faça valer. Longe de torná-lo um mártir, mas entendê-lo como um gênio provocador.
......Sem Kurt Cobain, com toda certeza, eu não teria desenvolvido gosto pela música, pela arte, pela literatura, por causas políticas e sociais (inclusive anti-políticas e a anti-sociedade!). Não posso imaginar o que teria sido de mim sem conhecer sua profunda e atormentada obra, mas posso entender a influência que esse cara exerceu sobre mim.

r.A.





PS.Este ensaio é dedicado a duas criaturas do absurdo. Tem um cara que é autoridade na vagabundagem e no tiro de pistola– André Romanoski é como foi registrado, numa fria tarde de dezembro – e me ajudou a concretizar o sonho de ter uma banda de rock chamada Sodoma H. E outro cara que é autoridade na cerveja e na guitarra – que atende pelo nome de Antônio Marcos –, que nunca me deixou desistir da música. Essas duas criaturas do pântano, que seduzem mocinhas desavisadas, me mantiveram no mau caminho. Tentei aconselhar os meliantes a ir para a luz, mas eles se corromperam e me levaram junto para as sombras. Não poderia terminar esse ensaio sem citar as criaturas. Se eu fosse um sujeito religioso, rezaria a Kurt para que seus copos nunca secassem. Embora saiba que se rezasse para que seus copos secassem, nem toda fé do mundo seria suficiente. Causas perdidas... Se o rock e a safadeza não existissem, eles teriam inventado.