terça-feira, 26 de março de 2013

Sem Tirar os Sapatos...




......A encheção de saco vai a mil! E eu estou tão entediado que um caramujo na parede pareceu um avião jato supersônico. Mais uma vez estou no lugar errado e na hora errada. E não tem bebida. Uma vizinha do condomínio onde moro bateu na minha porta. “Vamos lá, você tem que sair desse sepulcro! Se distrair. Tenho aqui uns ingressos para a peça musical Hair”. Olhei para os olhos cansados dela, seus cabelos começando a ficar brancos no topo da cabeça, sua magreza exagerada. Tudo ali, parado, sorrindo para mim na porta.
_Hell? – Perguntei.
_Isso! – Ela falou com bafo de cebola, flutuando em uma voz aguda e esganiçada.
_Ok.
        Vesti uma calça e segui ela. Pagou o táxi. Mara era o seu nome. Sobrenome... sei lá. Morava uns dois andares abaixo do meu. Trabalhava em algum setor de alguma fundação de cultura. Achava que era intelectual. Colecionava coisas que achava que eram coisas que intelectuais colecionam. Discos do Caetano Velozo, pôsteres de filmes franceses. Réplicas de quadros do Picasso. Essas bugigangas aí. “Max, você me deve algumas visitas”- ela dizia. Se ela não tocasse aqueles discos eu até que pensaria em visitá-la. Mas enquanto corria o risco de ouvir Caetano Velozo, nada feito!
        Agora estou aqui. Com minha bunda enorme em uma cadeira estofada. Vendo um monte de gente pelada e cabeluda, fazendo crítica ao sistema. Qual sistema?, me perguntei. O sistema dos shampoos e condicionadores? Ou a constituição que proíbe as pessoas de saírem correndo peladas pelas ruas?  “Essa peça é um clássico” – sussurrou Mara, perto do meu ouvido. Fiz uma anotação mental: _Evite os clássicos Max. Eles consomem uma hora e meia de sua curta vida.
        Terminou. Graças a Deus. Os peladões cumprimentaram o público, agradeceram os aplausos – exceto os meus, porque minhas mãos não aplaudiram – e as pessoas saíram empolgadas. Eu junto com as pessoas, mas sempre apartado. Todo mundo é polo positivo. Comigo é no negativo. Mesmo quando nos aproximamos, ainda fica aquela poderosa força que nos repele. Amo essa força que repele! Rezo para ela todas as noites antes de dormir. Eu recito de cabeça “ainda que eu ande pela vale da sombra da morte, nada temerei, pois tu – força que repele – é minha senhora e esta comigo. Amém”.
_que tal uma cervejinha no bar ali da esquina?- Resmungou Mara.
_não. Preciso acordar cedo pela manhã, tenho uma porção de coisas para fazer... fica para outra hora – Menti.
_ah, deixa disso! Isso não é um encontro! São só dois velhos amigos se conhecendo melhor! – Ela falou.
        Olhei para os olhos dela. As mãos com os dedos magros enroscados uns nos outros. E os olhos com os cílios tremendo. Meu instinto masculino alertou que ela estava querendo “dar’. O mesmo instinto masculino sabia que eu não estava querendo “receber”. Você já ouviu seu instinto masculino? Sei que não.
_Sinto muito Mara, fica para outra vez! Muito obrigado pelo ingresso para a peça... – Disse com um sorriso frouxo.
        Fizemos o percurso de volta sem nos falar. Ela estava visivelmente irritada. Paguei o táxi dessa vez. Andamos juntos até o elevador. Na porta Mara se virou para mim.
_Que tal uma visitinha rápida? Tenho cerveja na minha geladeira...- falou sorrindo.
_pode ser. Mas por favor, sem música! Quero ficar com as melodias do musical na minha cabeça. – repliquei.
Ela acenou positivamente com a cabeça.
        Sentei em uma poltrona na sala. Tinha um tapete felpudo que só de olhar já me dava coceira. Bugigangas pra lá e para cá. Parecia um depósito de centro cultural. A gente faz cada coisa por umas cervejas...
_Que tal a peça musical? – começou ela, atravessando o silêncio.
        Pensei que era Hell o nome. Mas era Hair. Não foi difícil para mim imaginar o inferno. Cheio de gente pelada protestando. Antes disso, minha imagem do inferno era tipo um bar com cerveja barata. Agora eu tinha mais no que pensar...
_bem interessante... – foi a minha resposta. – Essa cerveja aqui já acabou!
        Mara se levantou sorrindo e foi pegar outra na geladeira. Nem tinha aberto a sua ainda.  Tinha calçado chinelos agora. Arrastava os pés pelo piso. Aquele ruído me dava um arrepio no último dente inferior do lado direito. Aquele que é obturado. “Tem vodca ou uísque aí?”- Perguntei. “Tem meia garrafa de vodca!” – Sua voz abafada respondeu. “Quer um copo?”.
_por favor! – Falei mais alto do que o habitual.
        Quando ela voltou com mais uma cerveja e um copo de vodca, sabia que se deixasse ela continuar falando eu iria desmaiar ali mesmo. Derrubar as bebidas seria um desperdício. Enquanto ela arrastava aqueles chinelos pelo piso, eu me visualizava com os olhos fechando. Começando a roncar. A garrafinha de cerveja tombando para o lado e despejando a cerveja toda naquele tapete felpudo. O copo escapando da minha mão esquerda – porque a direita estaria ocupada com o cigarro que acabei de acender – caindo com um baque no chão e talvez se estilhaçando. Seria uma pena!
        Mas assim que cheirei a vodca no copo e tomei um trago, no mesmo momento em que Mara voltou a se sentar diante de mim, minha cabeça começou a funcionar como se fosse um incêndio. Comecei, ali mesmo a compor uma história.
_Nunca contei isso para ninguém Mara... é até um pouco constrangedor porque é uma página muito íntima do diário de minha vida. Mas quando eu era pequeno, lá pelos meus... doze anos... eu tinha um cachorro chamado... como era o nome mesmo... ah sim, Caetano.
_Caetano? – ela perguntou enquanto franziu a testa.
_Isso mesmo, Caetano! – Prossegui.
_Em homenagem ao Caetano Velozo? – Mara perguntou com as mãos entusiasmadas.
_Não. Meu pai já comprou ele com esse nome... quer dizer, talvez... mas acho que não.
“hum...”- ela fez e colocou a mão no queixo.
        Coloquei mais um pouco de vodca na boca. Rolei para o dente obturado – porque sabia que ele gostava disso –, dei uma tragada no cigarro e continuei a história. “Caetano era peladão, sabe? Quero dizer, tinha os pelos bem curtos, rente à pele. E o engraçado é que o pelo do Caetano não crescia! Era peladão e gostava de música. Você colocava uma música e o Caetano começava a rolar pela casa. Parece que vejo o Caetano – apontei para um canto e Mara acompanhou o meu dedo com a cabeça -, ali, num canto. Se retorcendo enquanto ouvia música”. Parei para dar mais uma tragada no cigarro, um gole na cerveja e ter mais alguma ideia.
_Que tipo de música o Caetano ouvia? – perguntou Mara, toda empolgada.
        Terminei de engolir a cerveja. Soltei a fumaça do cigarro e continuei. “Ouvia de tudo, exceto Jimi Hendrix. Hendrix de jeito nenhum! Quando ouvia aquela barulheira de solos ele passava mal. Pobrezinho... dava dó. Ele começava a bater com a cabecinha na parede. Uivava. Às vezes até vomitava. Teve vezes que inclusive defecou. Eu fiz alguns testes, sabe? Meio disco de Hendrix e Caetano, coitadinho, defecava. Defecava e batia com a cabeça no cocô”. Fiz mais uma pausa para beber vodca e acender outro cigarro.
_Minha nossa! Que absurdo! – resmungou Mara enquanto colocava as mãos em torno da cabeça.- havia algum outro som que o irritava?- perguntou.
        Aquela pergunta me pegou de surpresa. Tive que tomar mais um gole de vodca e em seguida de cerveja para ter mais ideias. “Jefferson Airplane” – respondi. “Qualquer coisa psicodélica excetuando Pink Floyd era a morte para Caetano. Nos primeiros acordes Caetano já abria os olhos como se pedisse piedade. Choramingava. E se você não desligasse o som ele já corria em direção à parede e começava a bater com a cabecinha. Era como se ele preferisse morrer a ouvir aquilo. Quando eu digo que ele gostava de música Mara, estou me referindo ao blues. Com o blues ele se acalmava. Pensava sobre a vida de cão, sobre a depressão e a tristeza, sobre a perda da esperança e o amor... Ficava parado, sério, recostado num canto”.
_e MPB? – perguntou Mara, com os olhos curiosos.
_MPB foi o fim de Caetano. Um dia coloquei mpb para ele ouvir e ele simplesmente desatou em uma corrida e saltou da sacada. Foi o fim dele – disse e me agachei para pegar a garrafa de cerveja.
_Mas você não disse que morava em uma casa? – perguntou desconfiada enquanto finalmente abria sua cerveja.
_Depois nos mudamos para um apartamento. Meu pai, minha mãe, minha irmã, Caetano e eu. Para o décimo quinto andar. Foi dessa sacada que Caetano se suicidou. Uma morte trágica, envolvendo música. Até teve uma nota curta no jornal local. “Cachorrinho se suicida após ouvir MPB”.
_que horror! – Sussurrou Mara. Levou a mão até a testa.
        Fiquei observando o olhar triste de Mara. Refletia sobre a morte do pobre Caetano. O cachorrinho que nunca existiu. Parecia que aquilo fizera surgir mais cabelos brancos e mais rugas na sua cabeça. Foi pesado demais para ela... “A minha cerveja acabou” – informei. Mara se levantou apoiando-se no braço do sofá. Ainda estava chocada. Gente intelectual fica chocada com a morte dos cachorros, mas os mendigos que congelam de frio na rua de suas casas não importa. Mara arrastou os chinelos até a cozinha. “se tiver mais vodca, pode trazer” – falei. “Mas eu esqueci de pegar o seu copo, querido” – retrucou. “Trás a garrafa, não tem problema desde que a cerveja esteja gelada”.
        Agora eu estava animado. Mas Mara estava ficando aborrecida. Houve um longo silêncio enquanto eu continuava bebendo e fumando. Mara olhava pela janela da sacada. Com longas goladas consegui beber aquela cerveja. Estava gelada e o dente obturado reclamava. Aí eu molhava ele com vodca. Finalmente sossegava. Estava atento aos gestos de Mara pelo canto do olho. Sabia que logo ela iniciaria uma longa sessão de diálogo. Por isso, já era hora de começar a bolar outra história.
_mas...- ela começou.
_minha cerveja acabou! – falei com um sorriso.
        Lá se foi ela com os chinelos outra vez. “É a última” – resmungou enquanto me alcançava. “Tudo bem, eu já estou indo”.
_e se ouvíssemos uma música do Caetano Velozo em homenagem ao seu cachorrinho? – perguntou ela com uma voz doce.
_Eu choraria! – Respondi.
_Ooouh, desculpa! Não quis...
_Tudo bem. Sem problemas.
        Continuamos em silêncio. Fui racionando a cerveja para que terminasse junto com a vodca. Estava concentrado no trabalho. Não pensava em mais nada. “Você realmente tem que ir?” – Mara perguntou, assim que despertou de uma espécie de transe. Olhei sem que ela percebesse para a garrafa de vodca. Apenas um risco no fundo. “É que lembrei que tenho uma garrafa de uísque na dispensa. Gostaria de beber mais... mas sozinha fico tão aborrecida...”- disse ela.
_Não sou um bêbado Mara! Não estou aqui só por causa da bebida! – resmunguei enrolando a língua nas palavras.
_Não foi isso que eu quis dizer Max... você me entendeu mau... – Começou a justificar.
        Tomei a vodca. Me fiz de irritado por um longo tempo. Mara ficou triste...
_vou ficar. Mas nada de música!
_ok. Nada de música! – disse ela sorrindo e ajeitando os cabelos.
        Suspirei e recostei minha nuca na poltrona. Senti os pés incômodos e percebi que o dia todo não havia tirado os sapatos. Quando os tirasse seria uma carniça infernal! – talvez eu teria que fazer como Caetano, saltar da sacada, pensei. Mara retornou da dispensa com a garrafa de uísque e dois copos. Nos servimos e brindamos. Quando um músculo no seu queixo começou a tremer senti o perigo por vir. “Já lhe falei sobre um gato que eu tinha e que se chamava Gil?” – perguntei.




r.A.

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