......A
encheção de saco vai a mil! E eu estou tão entediado que um caramujo na parede
pareceu um avião jato supersônico. Mais uma vez estou no lugar errado e na hora
errada. E não tem bebida. Uma vizinha do condomínio onde moro bateu na minha
porta. “Vamos lá, você tem que sair desse sepulcro! Se distrair. Tenho aqui uns
ingressos para a peça musical Hair”. Olhei para os olhos cansados dela, seus
cabelos começando a ficar brancos no topo da cabeça, sua magreza exagerada.
Tudo ali, parado, sorrindo para mim na porta.
_Hell?
– Perguntei.
_Isso!
– Ela falou com bafo de cebola, flutuando em uma voz aguda e esganiçada.
_Ok.
Vesti uma calça e segui ela. Pagou o
táxi. Mara era o seu nome. Sobrenome... sei lá. Morava uns dois andares abaixo
do meu. Trabalhava em algum setor de alguma fundação de cultura. Achava que era
intelectual. Colecionava coisas que achava que eram coisas que intelectuais
colecionam. Discos do Caetano Velozo, pôsteres de filmes franceses. Réplicas de
quadros do Picasso. Essas bugigangas aí. “Max, você me deve algumas visitas”-
ela dizia. Se ela não tocasse aqueles discos eu até que pensaria em visitá-la.
Mas enquanto corria o risco de ouvir Caetano Velozo, nada feito!
Agora estou aqui. Com minha bunda enorme
em uma cadeira estofada. Vendo um monte de gente pelada e cabeluda, fazendo
crítica ao sistema. Qual sistema?, me perguntei. O sistema dos shampoos e
condicionadores? Ou a constituição que proíbe as pessoas de saírem correndo
peladas pelas ruas? “Essa peça é um clássico”
– sussurrou Mara, perto do meu ouvido. Fiz uma anotação mental: _Evite os
clássicos Max. Eles consomem uma hora e meia de sua curta vida.
Terminou. Graças a Deus. Os peladões
cumprimentaram o público, agradeceram os aplausos – exceto os meus, porque
minhas mãos não aplaudiram – e as pessoas saíram empolgadas. Eu junto com as
pessoas, mas sempre apartado. Todo mundo é polo positivo. Comigo é no negativo.
Mesmo quando nos aproximamos, ainda fica aquela poderosa força que nos repele.
Amo essa força que repele! Rezo para ela todas as noites antes de dormir. Eu
recito de cabeça “ainda que eu ande pela vale da sombra da morte, nada temerei,
pois tu – força que repele – é minha senhora e esta comigo. Amém”.
_que
tal uma cervejinha no bar ali da esquina?- Resmungou Mara.
_não.
Preciso acordar cedo pela manhã, tenho uma porção de coisas para fazer... fica
para outra hora – Menti.
_ah,
deixa disso! Isso não é um encontro! São só dois velhos amigos se conhecendo
melhor! – Ela falou.
Olhei para os olhos dela. As mãos com os
dedos magros enroscados uns nos outros. E os olhos com os cílios tremendo. Meu
instinto masculino alertou que ela estava querendo “dar’. O mesmo instinto
masculino sabia que eu não estava querendo “receber”. Você já ouviu seu
instinto masculino? Sei que não.
_Sinto
muito Mara, fica para outra vez! Muito obrigado pelo ingresso para a peça... –
Disse com um sorriso frouxo.
Fizemos o percurso de volta sem nos
falar. Ela estava visivelmente irritada. Paguei o táxi dessa vez. Andamos
juntos até o elevador. Na porta Mara se virou para mim.
_Que
tal uma visitinha rápida? Tenho cerveja na minha geladeira...- falou sorrindo.
_pode
ser. Mas por favor, sem música! Quero ficar com as melodias do musical na minha
cabeça. – repliquei.
Ela
acenou positivamente com a cabeça.
Sentei em uma poltrona na sala. Tinha um
tapete felpudo que só de olhar já me dava coceira. Bugigangas pra lá e para cá.
Parecia um depósito de centro cultural. A gente faz cada coisa por umas
cervejas...
_Que
tal a peça musical? – começou ela, atravessando o silêncio.
Pensei que era Hell o nome. Mas era
Hair. Não foi difícil para mim imaginar o inferno. Cheio de gente pelada
protestando. Antes disso, minha imagem do inferno era tipo um bar com cerveja
barata. Agora eu tinha mais no que pensar...
_bem
interessante... – foi a minha resposta. – Essa cerveja aqui já acabou!
Mara se levantou sorrindo e foi pegar
outra na geladeira. Nem tinha aberto a sua ainda. Tinha calçado chinelos agora. Arrastava os
pés pelo piso. Aquele ruído me dava um arrepio no último dente inferior do lado
direito. Aquele que é obturado. “Tem vodca ou uísque aí?”- Perguntei. “Tem meia
garrafa de vodca!” – Sua voz abafada respondeu. “Quer um copo?”.
_por
favor! – Falei mais alto do que o habitual.
Quando ela voltou com mais uma cerveja e
um copo de vodca, sabia que se deixasse ela continuar falando eu iria desmaiar
ali mesmo. Derrubar as bebidas seria um desperdício. Enquanto ela arrastava
aqueles chinelos pelo piso, eu me visualizava com os olhos fechando. Começando
a roncar. A garrafinha de cerveja tombando para o lado e despejando a cerveja
toda naquele tapete felpudo. O copo escapando da minha mão esquerda – porque a
direita estaria ocupada com o cigarro que acabei de acender – caindo com um
baque no chão e talvez se estilhaçando. Seria uma pena!
Mas assim que cheirei a vodca no copo e
tomei um trago, no mesmo momento em que Mara voltou a se sentar diante de mim,
minha cabeça começou a funcionar como se fosse um incêndio. Comecei, ali mesmo
a compor uma história.
_Nunca
contei isso para ninguém Mara... é até um pouco constrangedor porque é uma
página muito íntima do diário de minha vida. Mas quando eu era pequeno, lá
pelos meus... doze anos... eu tinha um cachorro chamado... como era o nome
mesmo... ah sim, Caetano.
_Caetano?
– ela perguntou enquanto franziu a testa.
_Isso
mesmo, Caetano! – Prossegui.
_Em
homenagem ao Caetano Velozo? – Mara perguntou com as mãos entusiasmadas.
_Não.
Meu pai já comprou ele com esse nome... quer dizer, talvez... mas acho que não.
“hum...”-
ela fez e colocou a mão no queixo.
Coloquei mais um pouco de vodca na boca.
Rolei para o dente obturado – porque sabia que ele gostava disso –, dei uma
tragada no cigarro e continuei a história. “Caetano era peladão, sabe? Quero
dizer, tinha os pelos bem curtos, rente à pele. E o engraçado é que o pelo do
Caetano não crescia! Era peladão e gostava de música. Você colocava uma música
e o Caetano começava a rolar pela casa. Parece que vejo o Caetano – apontei
para um canto e Mara acompanhou o meu dedo com a cabeça -, ali, num canto. Se
retorcendo enquanto ouvia música”. Parei para dar mais uma tragada no cigarro,
um gole na cerveja e ter mais alguma ideia.
_Que
tipo de música o Caetano ouvia? – perguntou Mara, toda empolgada.
Terminei de engolir a cerveja. Soltei a
fumaça do cigarro e continuei. “Ouvia de tudo, exceto Jimi Hendrix. Hendrix de
jeito nenhum! Quando ouvia aquela barulheira de solos ele passava mal.
Pobrezinho... dava dó. Ele começava a bater com a cabecinha na parede. Uivava.
Às vezes até vomitava. Teve vezes que inclusive defecou. Eu fiz alguns testes,
sabe? Meio disco de Hendrix e Caetano, coitadinho, defecava. Defecava e batia
com a cabeça no cocô”. Fiz mais uma pausa para beber vodca e acender outro
cigarro.
_Minha
nossa! Que absurdo! – resmungou Mara enquanto colocava as mãos em torno da
cabeça.- havia algum outro som que o irritava?- perguntou.
Aquela pergunta me pegou de surpresa.
Tive que tomar mais um gole de vodca e em seguida de cerveja para ter mais
ideias. “Jefferson Airplane” – respondi. “Qualquer coisa psicodélica excetuando
Pink Floyd era a morte para Caetano. Nos primeiros acordes Caetano já abria os
olhos como se pedisse piedade. Choramingava. E se você não desligasse o som ele
já corria em direção à parede e começava a bater com a cabecinha. Era como se
ele preferisse morrer a ouvir aquilo. Quando eu digo que ele gostava de música
Mara, estou me referindo ao blues. Com o blues ele se acalmava. Pensava sobre a
vida de cão, sobre a depressão e a tristeza, sobre a perda da esperança e o
amor... Ficava parado, sério, recostado num canto”.
_e
MPB? – perguntou Mara, com os olhos curiosos.
_MPB
foi o fim de Caetano. Um dia coloquei mpb para ele ouvir e ele simplesmente
desatou em uma corrida e saltou da sacada. Foi o fim dele – disse e me agachei
para pegar a garrafa de cerveja.
_Mas
você não disse que morava em uma casa? – perguntou desconfiada enquanto
finalmente abria sua cerveja.
_Depois
nos mudamos para um apartamento. Meu pai, minha mãe, minha irmã, Caetano e eu.
Para o décimo quinto andar. Foi dessa sacada que Caetano se suicidou. Uma morte
trágica, envolvendo música. Até teve uma nota curta no jornal local.
“Cachorrinho se suicida após ouvir MPB”.
_que
horror! – Sussurrou Mara. Levou a mão até a testa.
Fiquei observando o olhar triste de
Mara. Refletia sobre a morte do pobre Caetano. O cachorrinho que nunca existiu.
Parecia que aquilo fizera surgir mais cabelos brancos e mais rugas na sua
cabeça. Foi pesado demais para ela... “A minha cerveja acabou” – informei. Mara
se levantou apoiando-se no braço do sofá. Ainda estava chocada. Gente
intelectual fica chocada com a morte dos cachorros, mas os mendigos que
congelam de frio na rua de suas casas não importa. Mara arrastou os chinelos
até a cozinha. “se tiver mais vodca, pode trazer” – falei. “Mas eu esqueci de
pegar o seu copo, querido” – retrucou. “Trás a garrafa, não tem problema desde
que a cerveja esteja gelada”.
Agora eu estava animado. Mas Mara estava
ficando aborrecida. Houve um longo silêncio enquanto eu continuava bebendo e
fumando. Mara olhava pela janela da sacada. Com longas goladas consegui beber
aquela cerveja. Estava gelada e o dente obturado reclamava. Aí eu molhava ele
com vodca. Finalmente sossegava. Estava atento aos gestos de Mara pelo canto do
olho. Sabia que logo ela iniciaria uma longa sessão de diálogo. Por isso, já
era hora de começar a bolar outra história.
_mas...-
ela começou.
_minha
cerveja acabou! – falei com um sorriso.
Lá se foi ela com os chinelos outra vez.
“É a última” – resmungou enquanto me alcançava. “Tudo bem, eu já estou indo”.
_e
se ouvíssemos uma música do Caetano Velozo em homenagem ao seu cachorrinho? –
perguntou ela com uma voz doce.
_Eu
choraria! – Respondi.
_Ooouh,
desculpa! Não quis...
_Tudo
bem. Sem problemas.
Continuamos em silêncio. Fui racionando
a cerveja para que terminasse junto com a vodca. Estava concentrado no
trabalho. Não pensava em mais nada. “Você realmente tem que ir?” – Mara
perguntou, assim que despertou de uma espécie de transe. Olhei sem que ela
percebesse para a garrafa de vodca. Apenas um risco no fundo. “É que lembrei
que tenho uma garrafa de uísque na dispensa. Gostaria de beber mais... mas
sozinha fico tão aborrecida...”- disse ela.
_Não
sou um bêbado Mara! Não estou aqui só por causa da bebida! – resmunguei
enrolando a língua nas palavras.
_Não
foi isso que eu quis dizer Max... você me entendeu mau... – Começou a
justificar.
Tomei a vodca. Me fiz de irritado por um
longo tempo. Mara ficou triste...
_vou
ficar. Mas nada de música!
_ok.
Nada de música! – disse ela sorrindo e ajeitando os cabelos.
Suspirei e recostei minha nuca na
poltrona. Senti os pés incômodos e percebi que o dia todo não havia tirado os
sapatos. Quando os tirasse seria uma carniça infernal! – talvez eu teria que
fazer como Caetano, saltar da sacada, pensei. Mara retornou da dispensa com a
garrafa de uísque e dois copos. Nos servimos e brindamos. Quando um músculo no
seu queixo começou a tremer senti o perigo por vir. “Já lhe falei sobre um gato
que eu tinha e que se chamava Gil?” – perguntei.
r.A.