.....Ocorre que dia desses estava caminhando pela biblioteca de uma escola. Olhava os títulos dos livros, abria, perguntava: tem alguém aí? E poucos me respondiam. Havia uma senhora lá. Cabelos finos. Senhora mesmo. Não arrisco idade de mulheres. Mas através dos cabelos finos tingidos de vermelho, eu conseguia ver partes do couro da cabeça. Ela era simpática. Mas xingava. Estava brava com alguma coisa. O computador, eu acho. Não estava conseguindo registrar uns livros. Tinha uma voz legal para um folk. Talvez um Johnny Cash, quem sabe... Tomava um chá de malva. “Você que trabalha bastante com a voz, deveria tomar menos café e mais chá de malva”. Eu não me importo. Mas aceitei um gole do tal do chá. Não conhecia. Meu paladar é limitado. Reconhece o gosto da vodka, do whisky, da cerveja, do café com whisky ou conhaque, do cigarro, de bicos de seios e da pasta de dente. Fora disso, é uma louca aventura. Então lá estava. Chacoalhando os livros para obter algum rugido de angústia, numa louca aventura com chá de malva e pensando no quanto seria fantástico sair dali. O nome da senhora não sei. Ela sabia o meu, porém me chamava de garoto. “Essa biblioteca é pequena... um desaforo! Não há espaço aqui”. É óbvio que eu acenei positivamente com a cabeça. Não sou muito de falar. “Estou lendo esse livro aqui”. Me mostrou Maquiavel. “Depois que terminar, vou doá-lo para essa biblioteca”. Aham. Certo. Dei um jeito de sair dali.
..... O que não gosto nas escolas são às grades. Dou aulas... mas tento fazer com que não se pareçam com aulas – no sentido “tradicional”. Me limito a provocar adolescentes. Sou bom nisso. Eles ficam bravos. Alguns batem os pés e xingam. Não me defendo. Entendo o espírito revolto destes. Professor vem de professar... expressar crenças. Não tenho crenças. Sou um paredão vazio. Educador vem de educere... fazer brotar. Minhas palavras não são sementes... não sou agricultor que cultiva a terra. Muito menos adestrador de bezerros. Mas que faço eu ali? Batemos um papo. Se ficar perigoso temos um clima. Pois é. Disso vem um dinheiro. Pago minhas contas. Já é alguma coisa.
.....Acontece que essa manhã eu vi um velho andando. Estava do lado de fora das grades... só por ali... pensando. Esse velho estava vestido com uns fiapos. Eu com a velha farda. O preto costumeiro. Não do rock. Lá dos três dos Tennessee. O velho com um saco de estopa. Cheio de latas, presumi. Mal conseguia caminhar. Mas ele era rápido. Na sua maneira. Me cumprimentou. Respondi. E lá se foi ele. Sorria. O sol nós dava o necessário para um bom sorriso. Aquela rua repleta de intervenções humanas, porém desumana. Prédios ladeavam os dois lados. Era úmido ali. Calçadas rachadas, asfalto e listras para os pedestres atravessarem. Um canteiro. Três pequenas árvores insistindo contra todo o concreto em torno delas. Uma luta desleal que com força às arvorezinhas abriam seu espaço. Um paradoxo. Não muito interessante, aliás, o paradoxo é ao que me refiro. Nos conhecemos ali. E não tive esperanças de nos conhecermos mais, nem menos. Não estamos presos a totalidade do olho e das impressões, obviamente. Isso me deixou feliz. Aquele velho e eu. Para além de qualquer narrativa possível. Um encontro fora da história. As maravilhas que o acaso assim escolheu. Nosso momento juntos. “Opa?”; “Opa!”.
.....Na casa que não é minha - mas me recolho nela- existem cheiros e marcações deixados por mulheres que por ela passaram. Esquento alguma coisa no micro-ondas. A invenção fantástica para homens preguiçosos! Não é que não gosto de cozinhar. Adoro, inclusive. Mas nessas duras batalhas que travo com minha preguiça, nem sempre bato no peito estufado enquanto canto o hino da vitória. Bukowski me confidenciou com bastante acerto que um escritor precisa ter as quatro paredes em torno de si para almejar uma chance. Na rua o resquício de chance que nos resta é rapidamente transformado em nada. Conheço o gosto do nada e até atribuo a esse sabor o muito de minha maturidade. No entanto, vinte e poucos anos não se tornam assim a constituição certa para encarar isso em demasia. Ouvi por aí que a infância acaba quando descobrimos por si só que um dia morreremos sozinhos. É não tem jeito. Tendo um dia fixado por um momento os olhos no nada e experimentado a solidão e as ausências com seus cheiros agradáveis/desagradáveis, somado a certeza da morte no fim do túnel (baita luz, ein?) esmigalham 99,9999... por cento das palavras que flutuam por aí no mundo. As coisas não são por aí parceiro (parceiro é cortesia que não sei se você merece...)! Existe muito mais necessidade de sapateado no abismo que a gente gostaria ou está preparado fisicamente e psicologicamente... e isso você não aprende na faculdade de psicologia... Nenhuma faculdade, ademais!
..... Ainda ocorre que paro porque parei.
r.A.
ps: Texto para os amigos – Gustavo Britto, Leo (Residentes), A.D.G. Aqueles que atribuem mais sentido do que eu conseguiria dar para essa narrativa.