quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Numa noite dessas, por aí, baleei o Aristóteles...


.....É óbvio que os anos passaram. E não foi só pelo motivo de alguém ter me dito que os anos passaram e eu acreditei. Levei bastante tempo para me livrar de todas as porcarias que os professores me fizeram decorar... Hoje, digo, estufando o peito, que consegui esquecer de 50% do que me ensinaram. Os outros 50%, não esqueci, mas faço de conta que esqueci – com a esperança de que definitivamente esqueça-, e assim vou me virando. Me disseram lá na escola que o conhecimento tem sua importância. Acenava com a cabeça que sim para não me incomodar mais do que já tinha me incomodado, mas alguma coisa dentro da minha cabeça trincada sussurrava que até o extrato de tomate têm lá sua importância. Ora, foda-se! Saber da idade antiga e do período medieval não me livraram de lixar carros em uma oficina. Tampouco, saber da revolução francesa, da primeira e da segunda guerra mundial, não me salvaram dos calos nas mãos. Sei dos modernos e dos pós modernos, mas não escapei de puxar caixas em uma floricultura por uns trocados para o trago no fim do dia. Olhando para o copo no balcão de um bar e pensando sobre todas essas coisas, fui chamado de volta ao planeta Terra por um pescador que batia seu copinho de cachaça e gritava:_ PORRA! Só ferram com a gente! Disse isso e tomou uma golada. _Outra! Esta eu vou dedicar a bosta da história! Saltei para o lado e pedi um copinho para mim também. _Piá, você não é novo demais para estar no bar?:_ Não há idade para estar ferrado senhor! :_Caralho, você tem razão!:_ Todos temos razão nesse bar! Saúde e copos para cima.
..... “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte...”, diz o salmo 23. O resto não importa exceto o “nada temerei”. Meus dias se resumiam em escola-praia-oficina-floricultura-bar-oração da minha avó. Não me sentia digno de entrar no bar se os músculos dos ombros e dos pés não estivessem doendo. Um bar ao lado de uma igreja evangélica em uma vila de pescadores de Balneário Comburiu. Neste canto do mundo, cercado pelo encontro de um rio de esgoto e a praia Beira Mar, demônios possuíam pessoas, pastores arrastavam suas bicicletinhas na areia visitando casas e convidando fiéis à dar as caras nas casas de orações. Homens pescavam, Mulheres limpavam peixes ou vendiam sua mão de obra descascando camarões (um real o quilo– doze reais no mercado). Minha camisa preta do Iron Maiden era meu uniforme diário. Fazia isso para deixar as bicicletas dos pastores longe de mim; nem era fã do Iron Maiden – aliás, continuo não sendo. Gostaria de ver os músicos do Iron Maiden puxando caixas na floricultura e lixando carros com um sol de 35º. Isso naquela época, hoje nem assim gostaria de vê-los. Infelizmente todos esses pensamentos são inúteis para ocupar minha cabeça trincada enquanto atravessava o cemitério para chegar em casa. Morava nos fundos de uma pensão úmida e escura com minha avó. Uma senhora corcunda, gorducha, de cabelos longos e brancos e que cuspia enquanto falava. Conferia na bíblia diariamente os motivos de Deus tê-la lhe cercado pelo inferno antes mesmo da morte. Na falta de motivos interiores, à razão exterior residia pecaminosamente no uniforme do neto. Seu rosto enrugado e seus olhos de cão feroz não mediam esforços para golpear meu coração. Mas eu era irônico demais para alguém tocar meu coração...
_Se saiu do trabalho às sete, como justifica chegar em casa às três?
_Me perdi pelos caminhos da vida vó. Fui tentado pelo capeta e salvo pelos anjos no fundo de um copo de cachaça!
_É por isso que somos pobres, que passamos por esta provação divina! Você é tão desgraçado quanto seu pai! Aquele verme! Um mundano... Abandonou o filho para os demônios e pago o preço por deixá-lo entrar nessa casa!
_ Se for isso, agradeça aos céus. Sou a passagem que lhe fará entrar no paraíso! Cada dia que me suporta é uma rosa nos jardins de seu terreno no pós morte!
_Desmanche esse seu sorriso de deboche, miserável. Dobre os joelhos e ore para escapar do “laço do passarinheiro”!
_Ah... Não vou ocupar Deus comigo e minhas lamentações. Deixo meu lugar na fila para a senhora que já viveu mais e pecou bem mais que eu...
_Que Deus tenha misericórdia de você...
_Amém! E boa noite.

.....Deitava e adormecia com minha vó dando ordens para Deus. “Deus faça isso e aquilo e aquele outro e perdoe meu neto desviado...etc”... É claro que estou amenizando todas as coisas. As discussões eram bem piores e no fundo de minha cabeça trincada habitava o medo de que fosse responsável por toda desgraça no mundo. Pela manhã estava parado na frente da escola tentando me convencer a ser um bom menino. Mas minha alma não se redimia dos pecados depois de entender química, física e matemática. Acabava mexendo com às meninas, brigando com os meninos, pulando o muro da escola e indo parar na praia. Lutando com Poseidon pelo mar. Salvando embarcações, tomando rum com piratas amaldiçoados como eu, trocando ideias com os tubarões e algas. Talvez esses tenham sido os momentos mais felizes daquela época. Fora o fato que um dia roubaram meu chinelo na praia de laranjeiras e tive que andar descalço na areia da tarde... Depois daquele dia passei a ter mais medo de turistas do que do diabo.
.....Na oficina começava lá pelas duas. Sol que cravava às garras fumegantes no meu crânio e me arrastava no asfalto em brasa. Gritar era inútil. Cento e cinqüenta reais no fim do mês. O dono, um seco filho da puta, de macacão encardido –sempre coçando o saco- e cara de cafajeste, casado com uma de minhas primas toscas, gritava do fundo de um barracão imundo:_ Sem moleza garoto! Quatro carros até eu terminar de beber esse litro de vodca e mijá-lo.:_ Puto!:_ Que foi que você disse? : _Disse moleza! Bernardo, que carinhosamente apelidei (embora ele nunca soube que fui eu) de “cabelo de penico”, sofria de azia. Enquanto lixava os carros e notava que o cara se contorcia, eu dizia:_ Você precisa ingerir base. Tipo leite. É excesso de ácido que você tem no estômago. Precisa ingerir base, pois, base transforma o ácido em H2O e sal._ Como sabe dessas coisas? :_ Essas coisas poluem minha mente cabel...digo... Bernardo. _Farei o que disse... Mas volte ao trabalho. _Puto!:_ Que foi que você disse?:_ Eu disse PU-TO! (Bem, ele não era o patrão!).
..... Aniger. Um cara da minha idade na época, baixo e magro, com a pele um pouco mais clara que a minha, era o mais rápido na floricultura. Exibia-se mandando os colegas cronometrar o tempo que levava para colocar vinte vasos com terra em uma caixa e depois carregar a caixa até uma estufa. No final da proeza ele ria e dizia:_ Simples!- E estalava os dedos. Das cinco até às sete, sentia a estranha vontade de pegar a cabeça dele e afundar em um monte de terra fofa. Minha meta eram quarenta caixas. Depois disso eu sentava e os observava. Quarenta centavos por caixa. Dezesseis reais já estava bom para mim no fim do dia. Vinte e oito doses de cachaça de alambique e uma carteira de cigarros paraguaios. Cinco doses antes do primeiro cigarro, depois, vinte cigarros, um para cada dose. Fechava à noite com três cigarros emprestados e três doses. A única matemática que fazia sentido! Minha alma estaria salva mediante orações de minha avó. Amém.
.....Ás aulas de história, para mim, consistiam no momento onde eu encontrava motivos para rir sem precisar comprar livrinhos de piada! Escorava o queixo com a mão e me deliciava com toda aquela baboseira. Pobres professores de história, eles ainda acreditam! “É importante compreendermos a história para sabermos de nosso passado, de onde viemos e não cometermos os mesmos erros no futuro... e blá blá blá... Resgatando a história de um povo, de uma geração e mais blá blá blá”. Ficava cá do meu canto pensando que raios fizeram a esses pequeninos ratinhos insignificantes preferir lembrar à esquecer? Mas é claro, se eu dissesse isso acabaria com o show, aí me calava e ria enquanto examinava os calos nas minhas mãos – e aí calo, qual sua história? Bem, só apareci para lhe lembrar que toda essa baboseira não me fará sumir... Que acha, calo, de se refrescar encostado em um copinho frio depois mais? É metafísica? NÃO! Então está feito, parceiro. É que tudo tem um motivo e um percurso e para os que esqueceram de examinar o significado da frase “cala a boca” psssssssssssss, o discurso é longo! Tem muita coisa importante nesse mundo, inclusive o extrato de tomate. Mas tudo bem, a gente fracassa como pode! Andava até à oficina e da oficina à floricultura pensando nas maravilhas do estrato de tomate. No bar eu dizia para Lindolfo, o pescador:_ Não acha que o molho do peixe fica fabuloso com o estrato de tomate? Imagina só, eu nem sempre ganho o suficiente para comprar tomates na feira e não adianta mantermos uma orta atrás de casa já que quase não nos sobra tempo para respirar... aí vem o estrato de tomate...:_ Piá, um brinde ao extrato de tomate! Saúde e copos para cima.



r.A.

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