“Old man look my
life/ twenty four and there’s so much more/
Live alone in a
paradise/ that makes me think of two.”
_Neil Young. Old
Man.
Enquanto conversava no lado de fora de
um bar com um amigo apareceu esse sujeito e pediu um cigarro. Bastante humilde,
roupas sujas, sorridente. Em troca do cigarro mostrou uma cicatriz de cirurgia
– rim, bebida. Disparou essa frase: não tenho medo da morte, tenho medo é da
sorte. A frase lhe foi deixada por um finado, abandonado para morrer em um
hospital público. Apontava frequentemente para sua camiseta preta. Ali estava
estampado: Sabotagem, o rap é compromisso.
_Se
pá, fica esquisito! – ria o sujeito.
Passamos algumas horas pensando sobre a
frase deixada pelo finado. Últimas palavras de um velho. Isso nos encontrou em
uma esquina, na frente de uma igreja caça níqueis. Você nunca pode imaginar de
que inferno pode surgir uma frase e quem pode ser o porta-voz. Eu, em silêncio, refletindo se é mesmo da sorte
que tenho medo. Deveria.
Cervejas, cigarros, mais conversa.
Observamos os resultados do jogo do bicho fixados na parede do bar, no corredor
para o banheiro. Um cara alto com a cabeça no formato de um tijolo – expressão
de quem chupou treze limões no café da manhã – dentro do uniforme da lei. Cinza
era a cor. Combinava com seu humor. O cara come uma coxinha e lambuza o bigode
com gordura. Sai sem dizer palavra.
_Vai
vendo papai, se pá, fica esquisito!
Eu penso na minha sorte. A frase do defunto que me encontrou
em uma esquina. Tenho tantos problemas para resolver que nem sei por onde
começar. Enquanto não começo outros problemas vão entrando na fila. Acredita
que consegui acrescentar outra situação na minha longa lista? Nos meus
arquivos, na letra P, logo abaixo de Paulinha e penicilina, entrou piscina e
padrasto. Explico? Não aqui.
Ainda outra noite meu amigo me provocou: Você morreria
agora? - Já estou morrendo agora, pensei
comigo. Não foi fácil ser acertado por uma paulada dessas. Tudo que se aproxima
ou se afasta de mim tem acelerado o processo. Nessas horas você pede a
“saideira”. É a saída que não é fácil de encontrar. Senhor Menezes talvez
concorde.
***
Se alguma coisa do mundo se reduziu ao
tempo e “tempo é dinheiro”, concluo que a fila do banco é o grande matadouro do
resto de alma dos humanos (os manos, demasiado os manos!). O grandão mexendo no
celular no canto – sou eu. E observo aquele imenso mural de olhares abatidos.
Portinari?
Entre Bruna e beijos desmerecidos está
Banco do Brasil, nos meus arquivos da letra B. B de (grandes) bosta. Duvida que
minha vida é mais miserável do que as coisas que escrevo? Se sonhar com tigre
aposte no macaco. O oposto disso não vale como dica.
O apocalipse começará dentro de um
banco. Irá soar as trombetas do juízo final no exato momento da mudança de
senha no atendimento. Invés de ouvir urros de desespero você ouvirá:
“próximo?”. Um cálculo desanimador: já contabilizou a existência perdida em
horas de espera? Possivelmente o grande mistério seja termos nascido devendo e
morrido enquanto os juros perduram. “O importante é se sentir bem consigo
mesmo” – ouvi de uma moça que fazia unhas no salão de beleza perto da minha
casa. Dessa aí eu me afastei sem remorsos. Desculpa Sindy, jamais daríamos
certo.
_Qual
é o seu problema? – sorri o gerente, traços orientais, unhas bem feitas, terno
não tão bem feito assim.
_Puxa.
Tenho tantos... – resmungo com um sorriso no canto dos lábios.
_Quero
dizer, no que posso ajudá-lo? – ele refaz a pergunta, dessa vez com muita
polidez. Classe, sabe?
_Sou
escritor. Estou sofrendo com os predicados. De qualquer forma me destaco nas
metáforas e metonímias. Não tenho dificuldade com as mulheres e nem com a
quantidade de álcool que consumo. Mas sinto que a inspiração me abandona.
_Não
posso lhe ajudar com isso, rapaz. Como vê, não devo ter uma vida tão excitante
quanto a sua. No que posso ajudá-lo em relação ao banco? – agora ele perguntou
direito!
_Meu
problema é simples. Quando me perguntam “débito ou crédito”, sempre respondo
“dé-bi-to”. Mas aparentemente as pessoas entendem “cré-di-to”. Ou é dicção,
confesso que já fui fanho, ou querem me foder mesmo. Tem uma piscina aí no meio
da história, mas disso acho que você não entende. – Começo a rir.
O fulano metido no terninho pesquisa
meu cartão e me diz o que já sabia. “Realmente passaram contas suas no crédito
embora seu cartão não esteja liberado para tal opção”.
_O
que o senhor sugere nessa situação? – rosno feito um cão raivoso.
_Fique
longe de piscinas. Beba menos e escreva mais.
Esse
é o gerente que demorou para cruzar meu caminho.
_Ok.
– devolvo. Recolho minhas coisas e vou saindo.
Lá fora chove.
***
Varro meu quarto e passo pano. Percebo
que mesmo as coisas que acumulei em tantos anos são dispensáveis – você já
procurou algum sentido na poeira que lhe persegue? Com duas calças e três
camisas eu poderia dar as costas para qualquer lugar. Por algum motivo que me
escapa - não completamente – resolvi
ficar e lutar por um tempo. Uma solidão tranquila me devorando.
Encho três sacos de lixo com coisas que não
recordo dos motivos de guardar. Passo pelo zelador do prédio, moreno, magro,
não mais que trinta e cinco anos. Ele parece curioso com minha carga.
_Mudanças
são boas, garoto. – Diz de uma maneira arrastada e preguiçosa.
Garoto?, penso. Pareço mais velho do
que você, cara. Reflito alguns segundos sobre sua frase. O zelador aguarda
enquanto nos encaramos.
_Dado
que tudo muda constantemente mesmo que não percebemos os detalhes, se mudanças
fossem realmente boas, tudo seria muito bom. Não acha? – jogo meu lixo no
grande cesto de metal que fica no pátio.
_Que
pensamento esquisito para uma segunda-feira, rapaz! – resmunga depois de um
momento de silêncio com a mão no queixo e olhando para baixo.
Ando até a caixa do correio e recolho
outra conta – ainda estou esperando uma carta de amor, rá rá rá. Cresci ouvindo
que trabalhar e pagar esses pedaços de papel te deixa mais responsável, bonito,
inquestionável. Você não se emociona com esses momentos? Rei no seu castelo de
códigos de barra.
_Seja
a mudança que você quer ver no mundo! – Diz o zelador. – Li isso na internet
hoje.
_Se
tivermos sorte, meu amigo. – digo sorrindo.
_É.
O importante é a sorte. – Ele devolve o sorriso.
Afasta-se assoviando e olhando para o
céu, sacudindo um molho de chaves no bolso da calça. As nuvens estão ficando
escuras. Penso no predicativo do sujeito. Ouço o tombo do zelador e desvio meu
caminho para conferir se ele está bem. Se eu gostasse dele teria cuidado
melhor? Deixemos os mais inteligentes avaliar minhas ações.
r.A.
Faixa
Bônus:
Parado cidadão! – ouço nas minhas
costas quando me aproximava do metrô. Giro e observo dois policiais. Mãos nas
armas dentro dos coldres. Acho que estão certos, sou mesmo um cara muito
perigoso. Parado cidadão! – o mais magro repete a frase do mais alto. Sei que
se formou um sorriso nos meus lábios. “Estão precisando de um novo roteirista
nas abordagens” – sussurro.
_De
onde está vindo? – continua o mais magro.
_Da
casa de uma amiga.
Olho na direção do metrô. Faltam apenas
alguns minutos para fechar. Não sei se tenho dinheiro suficiente para pegar um
táxi e atravessar a cidade.
_Não
estava no carnaval? – o mais alto, cospe com o canto da boca.
Agora
o roteiro está melhorando, reflito. Mantenho a conversa com toda calma
possível.
_Não
gosto de carnaval. Estava apenas visitando uma amiga. – aponto para a estação,
eles acompanham meu gesto com suas cabeças uniformizadas. – vai fechar se eu
não me apressar.
_Está
com medo de alguma coisa – sorri maliciosamente o mais alto - ein cidadão?
_Sempre.
Tenho medo de ser um cidadão. O senhor me entende?
_Acho
que não. – resmunga pensativo. – cuidado com essas amigas, cara. Tudo começa
assim.
Os dois riem e se afastam. Apresso o
passo até o metrô e chego em tempo de ver o funcionário sacudir negativamente a
cabeça para mim: portão fechado.
Sento nas escadas da estação e acendo
um cigarro. Me pergunto se essa noite significou alguma coisa para alguém, se
não estou ficando ridículo - inevitável. Será que não é assim que tudo termina?
Sinto o prelúdio de algumas lágrimas. Levanto rápido e aceno para um táxi.
_Pegou
muita mulher no carnaval? – Diz o senhor careca atrás do volante, interferindo
no meu silêncio.
_Não.
Não gosto de carnaval. – Rosno.
_Deveria.
As mulheres estão com fogo aí fora. – Ri. Aponta para algumas garotas na
calçada.
_O
senhor aceita cartão? – vasculho nos bolsos.
_Crédito
ou débito? – Pergunta ainda de olho nas garotas.
_Débito,
débito, débito, dé-bi-to, dé-bi-to, DÉBITO!
_JÁ
ENTENDI!
_Débito.