O mundo de um adulto, solteiro, morando
sozinho em São Paulo, poderia ser o sonho de independência para um adolescente
caipira; mas oculta suas armadilhas. O que chamam de responsabilidade no fundo
é pagar as contas em dia: nada mais. E o que já foi um sonho, agora, é algo
pantanoso.
Você acredita que eu tento colorir esse
pântano?
Os livros são mais interessantes do que
99,9% das pessoas (desde que se saiba escolher entre aqueles que foram escritos
pelos motivos certos). Mas os livros não acariciam seu rosto em tardes tristes
e não riem de suas piadas malvadas. Depois de reduzir a vida a pequenos
caprichos, ganhar as ruas é bastante sedutor.
Nunca fui do tipo que encara os olhos
das pessoas enquanto conversa, porém, fui obrigado a aceitar que esse era o
único jeito de sobreviver em uma megalópole. Existe um canto na córnea que
brilha assustadoramente quando alguém quer te enganar e um músculo na boca que
treme quando alguém quer ser sincero com você. Aprendi, depois de cair em
vários truques, uma desconfiança que é um estado constante de alerta: só que
isso cansa.
Hoje estou cansado das pessoas.
Todo cansaço, quando demasiado, te
isola – isso me lembra a poética do cemitério de elefantes. E durante meus dias,
meses e anos de puro isolamento, me ensinaram a peneirar minha “humanidade”.
Solitário, caído dentro de mim, encontrei a imagem pela qual fui avaliado a
maior parte de minha existência: imagem criada por amigos, inimigos, namoradas
e familiares. E o que foi que eu fiz? Acertei-lhe uma boa marretada e assisti,
com um sorriso no canto dos lábios, um ideal virar pedaços. Por um momento você
se sente livre, sabia? Por um momento...
Agora pouco conversava com um velho
amigo sobre essas coisas. Disse-lhe que continuo tão caótico quanto era aos
quinze anos e ele me devolveu: Você está muito diferente e foram só os seus
problemas que se tornaram mais complexos.
_Acho
que você está certo, cara.
(e não estou sendo irônico – como de costume).
O sentimento que trago comigo é de não
ter um lugar e nem alguém para quem voltar. Tornei-me um cigano armado sem
bando e um palhaço que caiu do caminhão do circo numa cidade estranha e hostil.
Não pense que lamento por isso. Quando consigo rir, minha risada penetra até
nos meus ossos trincados.
No decorrer dos últimos anos eu fui um
cafajeste, um charlatão e só me sentia vivo dentro de confusões absurdas que
sentia prazer em provocar. Atirava com uma precisão quase invejável. Por que
fiz isso? Porque me pareceu que esse mundo não era para garotos tímidos
buscando a verdade sobre si mesmos, mas para desgraçados sem uma gota de
caráter. Pensei: “vencerei nas regras que me negavam acesso ao jogo”. Cá entre
nós, foi uma derrota incrível! Confesso que fiz a alegria de meu demônio. Mas
veja só.
Uma manhã eu acordei com a pessoa errada
na cama. Era eu. Percebi como era fácil ser cretino e difícil ser um homem.
Optei, finalmente, pelo difícil. Todas as merdas que deixei para trás, por não
achar que deveria resolver, me perseguiram por becos escuros e bares
asquerosos. Minhas merdinhas cantavam uma sinfonia mais ou menos assim: “Desista!
Não pode mais mudar o que você foi”.
_Eu
fui. Admito. Mas agora posso ser outra coisa.
Um adolescente caipira que sonha com
independência é como uma raposa que culpa a galinha e não seu apetite
depravado. Você não ouviu falar de uma raposa vegetariana, imagino, mas eu
sinto muito pela ingenuidade que perdi. Sinto muito, mas dou o próximo passo e
avanço no degrau obscuro.
Aqui
estamos em um deserto mascarado onde todos querem ser vítimas. Ainda somos
crianças enfeitando armadilhas. Todas as orações cuspidas em direção ao céu são
arrastadas pelo vento e viram chuva ácida. Como foi que um cara como eu mudou
tanto ao ponto de não escrever uma linha sem assinar um contrato com a sinceridade?
(Sei como foi, mas não vou contar aqui). Talvez seja o medo que se ofendeu
comigo e agora pediu um tempo para resolvermos a relação.
Pelo que fui perdi o direito de
mendigar carícias no rosto em tardes tristes e minhas piadas só ofendem. Pelo
que sou, embora não possa dizer exatamente o que sou nesse momento, lambo as
feridas na esperança que cicatrizem mais rápido. Para esse Rodrigo falar de
esperança é porque cavalgou o desespero nos campos do Nada. É claro que escrevo
molhando a ponta da pena em um ferimento exposto.
Assim que parar de escrever, tenho que
limpar o banheiro, passar pano na cozinha e na sala – o quarto ficará para
amanhã. Abrirei um livro depois do banho e espero ter escolhido o certo.
“Na
solidão do seu abismo, se for um cara esperto, aprenderá o segredo da nova
chance. O lobo finalmente tomará o lugar do velho cão.
E tudo
que era desculpa
Agora
será chamas.”
r.A.
Observação muito importante:
Não estou deprimido por causa das coisas que estão no texto, de forma alguma. É o banheiro. Ninguém merece limpar o banheiro na sexta-feira.