......Sentado
dentro de uma lanchonete tive um insight sobre a condição do mundo: um
apocalipse zumbi! Só que a trilha sonora é pagode e ao invés de uma fotografia
melancólica, como de costume em filmes góticos, um carnaval de cores. E talvez
no lugar de zumbis, se arrastam fantasias da Disneylândia! Mas sem dúvidas, o
miolo é de morto-vivo. No lugar de rifles e pistolas, você tem de sacar do
coldre olhares de “caí fora!” e frases de ironia debochada. De qualquer forma,
a gente sobrevive porque não tem certeza se do outro lado da vida a cerveja é
tão gelada! Eu ouço o mundo e ele me diz
“poxa vida, eu estou cansado”- e escora a cabeça com a mão trêmula. Aqui está
um homem que entende os lamentos do mundo, que sabe por que de vez em outra ele
se sacode feito cachorro para se livrar das sarnas e das pulgas. Ele está com
febre enquanto uma grande parte do povo bebe a poção dos ursinhos Gummi e sai
saltitando sorridente atrás de algum trio elétrico imaginário. Você não está
entendendo do que eu estou falando? Ok. Vou começar outra vez.
......39
graus em São Paulo. Se eu tivesse dormido de verdade, poderíamos dizer que
acabei de despertar. Mas na verdade estava arrastando meu enorme e gordo corpo dentro de
casa como se fosse uma lesma preta que alguém atirou sal. Molhava o rosto no
banheiro a cada meia hora. Vinha de sete dias de folga, sete dias de festa. Você
sabe como é uma ressaca em uma tarde no deserto? Na pia da cozinha, os restos
de comida estavam tentando reconstruir a torre de babel. Olhei para as louças e
disse:_ vocês ainda estão aí?- Fiz cara de indignado, mas elas não se
ofenderam. Parecia que estavam se divertindo da maneira delas. “Se virem que o
papai tá doente”. Abri a geladeira para não pegar nada e acabei por sentar no
chão e contemplar uma cebola que descansava sob um pires. Alguém empurrou um
envelope por baixo da porta do apartamento. Da cozinha consegui me esticar e
pegar o envelope no corredor. “Prezado sr. Adriano Maranello Jr. Compareça na
faculdade de Belas Artes para entrevista
de emprego na tarde de Quinta-feira (23/11) às 16:30 horas. Trazer documentos”.
Achei engraçado... nunca vi “noite” às 16 horas. Tinha uma assinatura que não
consegui ler. Deduzi que quem foi assinar a carta deve ter escorregado numa
casca de banana e voado por sobre o papel. Era isso ou sofria de convulsões.
......Brandi
o punho cheio de ódio para o chuveiro. Posicionava a chave em “desligado”, mas
a água estava boa para um cafezinho. Pensei em tachos de ferro fervendo água
para pelar suínos recém abatidos. Comparada com a água do chuveiro os suínos
estavam bebendo drinks na beira da piscina – na ilha de Caras. Me sequei
pensando no inferno com um monte de diabinhas acenando para mim.
_como
faço para chegar em Vila Mariana?- perguntei para o guarda do metrô. Um senhor
magricela com uniforme preto e botinas. Disse e sorriu com um bigodinho safado
encharcado de suor:_é só pegar o metrô sentido Vila Mariana, he he he!
_...é
que marquei com umas garotas para fazer uma festinha numa piscina de sorvete.
Vamos rolar no sorvete nesse calor! Vamos nos agarrar de maneira tarada e se
esfregar no sorvete! Vai ser uma loucura! Imagine o senhor, garotas jovens e
sexys, passando sorvete pelo corpo, todas assanhadas e nenhuma afim de
engraçadinhos! Pense o senhor aí, trabalhando nesse calorão até as seis... é
uma pena! As horas não passando... o calor distorcendo o olhar... às horas não
passando, a botina apertando o pé encima de um velho calo...garotas sexys
rolando no sorvete e as horas com minutos eternos... tenha uma boa e looooooonga
tarde!
......O
metrô que comumente é cheio, estava vazio. Poucos gatos pingados se abanando e
correndo como baratas tontas. Todos atormentados pelo calor. O metal dos
trilhos rangia como uma multidão de almas clamando desesperadas pelo fim. Tive
de consultar o mapa do metrô para saber em que rua sair quando chegasse à
estação. Peguei no bolso do calção uma folha de caderno que sempre trago junto
para possíveis anotações inúteis. Meu cérebro é velho, ele precisa disso. Às
vezes esqueço até do meu nome. Anotei cuidadosamente o mapa das ruas em que
teria que descer para chegar até a tal faculdade. Garotas no sorvete, digo,
Belas Artes – não deixa de ser. Embaixo da terra é úmido e um vento frio sopra
dos túneis. A porta do vagão se abre e eu corro para debaixo do ar
condicionado. Minha mente que é doente, sempre imagina como é cair no vão do
vagão e ser destripado. O metrô vai rapidamente de uma estação a outra e um
senhor de terno e com uma pastinha de couro tem a mesma ideia que eu e corre
para esfriar a careca embaixo do ar. Deve estar fritando naquele terno, pensei.
Vejo o reflexo do meu rosto no vidro. Escorre suor. Passo a mão no rosto e
enxugo no calção. Ficam as marcas dos meus dedos grossos e minha mão pesada no
jeans. Uma voz feminina fala dentro de umas caixinhas de som “próxima
esta-ção...Vila Tzchzzz...Desem-bar-que-pelo-tczhshshz-do...rem”. Morreu, só
pode. Deve ter fritado dentro de alguma salinha. Encontrarão um cadáver de
mulher agarrada a um microfone. Perdemos uma camarada!
......Preciso
da rua General sei lá do que. Consulto minhas anotações e está uma droga úmida
por causa do suor dentro do bolso. Ando de um lado para outro no sol escaldante.
O lugar é certamente vila Mariana: Deduzi sozinho pelo simples motivo de cruzar
um letreiro gigante escrito “bem vindo a...” – o resto você sabe. Uma longa
avenida de quatro pistas. Saio próximo a um terminal de ônibus. O terminal que
consigo ver parcialmente -porque a outra parte está oculta atrás de um prédio
alto-, está abarrotado de carrinhos de picolé e sorvete. Alguém mais doente do
que eu grita “olha o milho verde”. É, um milho verde cai muito bem neste
inferno! A calçada cinza, brilha até fazer meus olhos doerem. Do chão brota um
mormaço que sinto nas canelas. Paro. Um negro de dois metros de altura, careca
e de tênis de jogar basquete esta comendo salgadinho de bacon do meu lado. DE
BACON! Estamos esperando o sinal de trânsito abrir para atravessar a enorme
avenida. “crec,crec,crec,crec,crec”. Se você jogasse um ovo cru no asfalto ele
nem fritaria, possivelmente explodiria! O cara olha para mim com a boca cheia
de salgadinho e sorri. Viro minha cabeça em sua direção como se fosse à menina
do filme O exorcista.
_isso
aí deve estar uma maravilha! – digo. – Ele oferece. Recuso chacoalhando as mãos
em sinal de absurdo. Ele continua sorrindo. “crec,crec,crec,crec,crec,crec”.
Penso em lhe perguntar se conhece a rua que procuro, mas o sinal abre e ele
atravessa correndo na faixa. Feliz. Saltitante. Com a boca cheia de salgadinho
de bacon. Esse cara aí se odeia!
......Ganho
o outro lado da avenida. Pelo menos os prédios altos fazem sombra na calçada. Aperto
os olhos para ver a hora em um relógio fixo no alto de um prédio e percebo que
esqueci meus óculos. No meu lado esquerdo, estacionado, um táxi. A) peço
informação e se o taxista se recusar b) preciso pagar uma corrida mesmo estando
umas cinco quadras da faculdade. Estico meu pescoço grosso pela janela do táxi.
_por
gentileza... uma informação. O senhor sabe onde fica a faculdade de Belas
Artes?
......
Um japonês com cabelos grisalhos, boca meio murcha e meio sorridente começa a
me explicar com uma voz aguda. “sabe essa rua aqui à esquerda?” – Sei – “então
garoto pega a esquerda e segue rua reto. Cruza um sinal”. – Sei- “rua maluca,
tudo curva. Cheia de entradas e saídas. Seguir reto”. – Sei- “seguir reto até
final da rua. Pegar esquerda no alto. Seguir reto esquerda e dobrar direita
mais uma vez. Ver faculdade no esquina da direita” – Sei...- Sei bosta nenhuma!
Entro a esquerda na rua que atravessa a avenida e apuro o passo. Japonês
maluco... agora sei porque vocês espatifavam seus aviões contra os navios na
segunda guerra! Provavelmente recrutaram taxistas! “Pega direita e segue
ligeiro até ver navio, hay?”.
......Sigo
pela rua. Os edifícios altos dão lugar para mansões de luxo. Mansões de luxo
com amplo jardim em frente e sempre um cachorrão cagando na calçada interna e
mostrando os dentes para você. O calor faz o cheiro do cocô do cachorro se
misturar ao mormaço do asfalto. A rua deserta. O sol implacável! Nenhuma
sombra. Caminho meio quilómetro entre mansões e ruas vazias e becos vazios.
Nada de esquerda no alto. Só ladeiras. Saio em uma rua de esquina e começo a
ver um grande aglomerado de pessoas. Parece ser um pub. Um casarão com uma
enorme vidraça na frente e dos lados. Muitas mesas de madeira com sombrinhas sobre
elas. Todas as mesas estão lotadas de gente rindo e conversando alto. São
acadêmicos, certamente! Como sei? Pelas roupas. “Limpos-sujos”. Deixe lhe
explicar como isso funciona.
......Limpos-sujos
são sujeitos com cabelo desgrenhado, emprastado, maloqueiro, mas cheirando
creme – dá para sentir o cheiro de longe! Tênis rasgado ou tingido, meio gasto,
mas importado e caro. Não entendo muito de tênis. Apenas tenho uma estranha
impressão de que servem para proteger o seu pé. Mas quando as pessoas olham
para você e olham para o tênis e voltam a olhar para você novamente com um
sorriso idiota no canto da boca mais idiota ainda, você entende que esses
sujeitos estão usando tênis caros. Calças com aparência de suja, mas fedendo
amaciante! Óculos escuro para escorar o cabelo. Mochilas com aparência de
acampamento, mas murcha porque só tem um i-pod e uns chaveiros de pindurico.
Livro no sovaco – Caio F., Clarice Lispector ou manifesto do partido comunista,
Rimbaud por ele mesmo, biografia do Chê Guevara, e os mais ousados: Nietzsche –
qualquer um com a foto bem grande do Nietzsche bigodudo e com cara de
enlouquecido. Nos braços, tatuagem, geralmente tribal. Nas orelhas, alargadores
da cor dos teletubies. Cara de quem não dormiu, mas a ausência de olheiras não
mente! Cigarro na forquilha do dedo, mas não fumam, é só um adorno. Pulseiras –
muitas e coloridas, aceitável para menininhas de onze anos. Camiseta de alguma
banda de rock com o diabo por símbolo ou flanela (quando não a velha estampa do
Chê Guevara, comprada em algum shopping). Óculos da vovó, mas sem lente de grau.
E principalmente: rindo em câmera lenta com a boca escancarada e olhando para
todos os lados para ver se alguém notou sua felicidade...quando riem, é como se
uma torrente escura jorrasse de suas bocas e se lançasse sobre você como uma
pestilência... no final do riso um “podes crê”. As “mina” de calção e de botas,
ou saia de hippie e brinco de artesanato. E todo mundo caminha como se fosse a
Lady Gaga – sem exceções! Ninguém manca, ninguém arrasta os pés, ninguém assoa
o nariz ou coça o ouvido. Todos possuem corpos demasiadamente confortáveis! São
tipo almofadas embaixo do ventilador! Se eu disser que as mulheres se vestem de
putas, mas ficam bravas se te pegam olhando para lugares desnudos, você
provavelmente vai dizer: como assim colega? Queria que as mulheres usassem
burca? Então faz de conta que eu não disse isso e segue a vida.
......
Tai, achei a faculdade!
......Quanto
mais penetrava na rua da faculdade, mais pubs, lanchonetes e bares. Lotados.
Mesas na calçada, acadêmicos passando a tarde toda em volta de um litro de coca,
feitos moscas no estrume – e os mais ousados, do lado de uma cerveja litrão! –
só que o brilho nos olhos deles não me engana, eles queriam estar tomando
todinho! Uma cerveja sobre a mesa para dezenove caras sujos-limpos! O
importante é a conversa com a galera, só que não. Eles não conversam. Eles
relatam seus pequenos dramas de como não conseguiram escrever uma redação ou
como seus pais não lhes entendem!
“Podes crêr?” – Podi creeeeeemalandro! “Um
cara maltratou um cachorrinho...mas que covardia! Que barbárie! Podi crê?
Podissssssssssscreeeeeeeeeeeeeeemalandro”. Isso tudo e um violão. Sempre o
maldito violão! Nada contra violões, adoro violão! Mas assim não.
......Paro
embaixo do sombreiro de um restaurante para fumar um cigarro e refletir mais um
pouco sobre tudo que vi em menos de três quadras da faculdade. Existe um
tratado sociológico sobre esse povo todo das faculdades? – Pior é que não!
Reflito entre baforadas do meu cigarro e pingos de suor, sobre alguns detalhes
interessantes. Fora os assuntos intelectuais e os jovens jogados no chão –
alguém disse para os adolescentes que se atirar ao chão faz bem para o style -,
também existe a oposição aos “limpos-sujos” e estes são os “fortinho-voz de
mulher- garotão putão” ! Acredite, é uma verdadeira luta de classes! Para eles,
aparentemente, os “limpos-sujos” são a classe: Mamãe quero ser mendigo! Os
fortinhos, na oposição, tratam de malhar para ficar com braço de Popeye e perna
de Olívia Palito – inclusive a voz deles lembra a Olivia Palito. A ideia deles
é, como eles dizem: “pegar molieres e comer bocetas” – sim, eles falam desse
jeito porque a bomba atrofiou a parte do cérebro responsável pela gramática.
Isto os deixa em grau de igualdade mental para com os “limpos-sujos”, já que
nestes a maconha destruiu a parte do cérebro responsável pela coerência
gramatical – sóóóóóóóóóóóóó! Nos dois casos os alicerces são um outro tipo –
praticamente um objetivo: “Mulheres Tatu”. Mulher Tatu, para quem não é
iniciado no assunto (Aqui só entra quem souber geometria), nada mais é do que
um tipo de mulher que se tiver um homem deitado no chão de bruços, ela cava um
buraco para deitar embaixo! Este tipo – não diagnosticado pela sociologia
séria- migra dos fortinhos para os limpos-sujos e eles, os limpos-sujos e os
fortinhos, pensam que elas fazem isso porque ou são fortinhos ou limpos sujos,
mas na verdade tudo que elas querem é cavar! Fim do cigarro.
......Sigo
andando. Passo pelo primeiro pub. Contorno umas mesas para não ter que andar
pelo asfalto. Todos me olham. Devo estar cagado, é isso! Atravesso a rua e já
estou em frente a uma lanchonete. Ali que está o violão! E um litro de
coca-cola. “Virando as costas para a américa latina”. Ouço o vigésimo “Pode crêr?”. Alguma coisa em mim se contorce.
Algo em mim se arrepia! Sigo andando. Mais um bar. Todos em silêncio. Uma
musiquinha indiana, bem baixinha, no fundo. Deve ser a galera que bate palma
para o sol. Escuto meia conversa: “já ouviu aquele disco dos mamutis, tudo foi
feito pelo meu pau de óculos? – já sim, podi creeeeeeeeeeemalando”. Oh não,
penso. Não mereço isso! Sou um cara legal – pergunte ao finado Kurt se tem
dúvidas quanto a isso -, essa gente faz o seus ouvidos sangrarem!
......Na
frente da faculdade – Jesus me chicoteie! A coisa estava bem pior do que eu
imaginava. Tinha de tudo um pouco e um violão. Duvido que você consiga imaginar
alguma coisa que não tinha ali no meio! Tinha de curupira à robocop! Um cara
batia num tambor, outro bebia sangue de cabra, outro ainda estava num debate
consigo mesmo- e estava perdendo, inclusive. Tinha um que meditava e outros
três que mascavam a zorba do cara que meditava. Me chamou a atenção uma garota
que conversava com um coelhinho de pelúcia: “meu amor, o Roberval é só um
ladrãozinho de chocolate, eu não te traí com um canivete, deus está na sol e no
lombo da mula”. Pulemos esse parágrafo, sim?
......Abri
caminho entre os acadêmicos. Por incrível que pareça, estava apenas 30 minutos
atrasado. Um cara perto da porta da faculdade, sentado sobre um tapete marrom
com as siglas “FBA” olha para mim. Com a mão na porta eu paro e o encaro.
Sujeito raquítico, cabeludo – mas o cabelinho teve visitinha com hora marcada
no cabeleireiro -, camisa preta com estampa de uma aranha branca no centro.
Noto que o cara está sentando em cima de um skate – lixando o rabo?
Permanecemos ali, nos encarando. Começo a me sentir meio ridículo e forço a
porta para entrar.
_você
é capitalista brow!- Diz o cara e maneia a cabeça para ajeitar o cabelinho e o
cérebro pegar no tranco. Coça o nariz grande. – você é capitalista e contribui
todos os dias para engordar o monstro que é o sistema, brow! Você é alienado
cara, você precisa abrir a sua mente, brow.
_é.-
Respondo. Empurro o skate com o pé e nem me viro para ver o “brow” se
arrastando uns metros pelo tapete. Não posso acreditar que esse tipo de coisa
me dirige a palavra. São esses caras que deixam o mundo doente, mas juram que
vão melhorá-lo. Não consigo imaginar esse tipo de gente pagando as contas numa
fila do banco. Não consigo visualizar um cara desses lavando a própria roupa ou
cuidando de um filho. É impossível acreditar que essa gente que repete essas
palavras consigam limpar a bunda sozinhos depois de cagar – provavelmente cagam
e gritam “manhé, vem me limpar porque o sistema é foda!” e aí saem tudo meio
cagado para fazer o movimento. Mas eles repetem um mantra como se fossem sapos
preguiçosos numa lagoa esperando a comida entrar dentro de suas bocas. Não tem
nada a ver com o cabelo, com o skate ou com a camisa. Estou pouco ligando para
essas coisas, mas as merdas que essa gente diz... revela o quão oco é o crânio!
......Me
dirijo até um balcão de informações. Logo na entrada, do lado esquerdo,
funciona dentro da faculdade um café. Olho uma turma bem vestida e presumo
serem professores ou algo pior. A faculdade é maior pelo lado de dentro do que
aparentava pela fachada. Toda marrom por fora e branco reluzente por dentro.
Sim, parecia um kinder-ovo com bosta no lugar da surpresa. Mas até que cheirava
bem – a faculdade no caso, não a bosta.
......
Uma garota bem vestida, olhos claros, cabelo vermelho e brincos de pérolas
(certamente falsas) me pergunta no que ela pode me ajudar. Penso em várias
coisas no que ela poderia me ajudar. Poderia ir no mercado para mim e no
açougue. Poderia escrever meus contos enquanto eu dito, poderia rachar o
aluguel comigo, talvez. Poderia sussurrar calmamente no meu ouvido, em domingos
entediantes, que tudo vai melhorar. Com aquela voz de atendente de
telemarketing e aquele perfume de rosas, eu acreditaria por um momento. “Muito
bem querida, você está certa, você tem razão em tudo, eu exagero demais. O
mundo não é tão ruim e as pessoas não são tão burras quanto presumo. Tudo isso
é uma provação divina ou melhor, é uma contribuição para que eu me torne uma
pessoa mais dócil e preocupada com o drama existencial alheio” – eu diria.
Depois andaríamos de pés descalços sobre uma grama verde ladeada por árvores em
um bosque ao pôr do sol. Só faltou um lago e uns patinhos nadando dentro dele
para mim imaginar! Mas fui interrompido...
_sr.
no que posso lhe ajudar? – Desta vez sua voz perdeu o tom adocicado. Parecia
mais uma velha pedagoga!
_Vim
para uma entrevista de emprego. Deixaram essa carta embaixo da minha porta –
alcancei-lhe a carta.- acho que assinei um formulário para um cargo de
professor de literatura e leitura comparada...
_...hum...deixe-me
consultar o sistema, por favor, aguarde – respondeu sorrindo e fez um biquinho
muito sensual. Provavelmente treinou esse sorriso na frente do espelho (do
motel...). Deve ter arrebentado a alma de muitos homens com esse sorriso,
algumas mulheres também... hoje em dia, vai saber!
......Fico
repassando na minha cabeça uma canção do Stone Temple Pilots. Crackerman, para
ser mais preciso. Minha mente foi treinada para “modos de espera”. É como uma
espécie de intervalo. Toca uma música e fico repassando alguma coisa que me foi
dita. Neste caso, fiquei pensando sobre a palavra “sistema”. Agora que a
atendente vai consultar o sistema, será que vai aparecer uma foto minha com uma
camiseta do Exploited e os dizeres “fuck the sistem”? Fico pensando o que eu
faria no lugar dela. Abriria uma página que estava minimizada no computador. Iria
dizer: “aguarde mais um pouquinho” e continuaria jogando super Mário. Já estava
no refrão de crackerman quando ela disse:
_não!
O senhor foi chamado para uma entrevista para a vaga de segurança do campus.
......Olhei
para os lados. Mais a frente havia uma catraca digital que os alunos passavam
seus cartões para entrar. Junto desta catraca estavam dois seguranças parados
dentro dos seus ternos. Um deles futucava o nariz, outro coçava o saco. Dois
gorilões malucos com cara de nada! “O sistema é foda, parceiro”. Pensei neles
me chamando de colega. “Novato, você vai passar revista nos gordinhos – ha ha
ha!”.
_acho
que estamos mergulhando em um equivoco! Eu não posso ser segurança, ainda mais
de uma faculdade de playboys que torram o dinheiro dos pais e pensam que o
centro do mundo são seus umbigos sujos! – resmunguei baixo por cima do balcão.
_também
há a vaga para limpeza do campus.- Devolveu ela, com aquele sorrisinho meigo.
“Você já ficou com algum segurança do campus?”. Ela fez sinal que não com a
cabeça e sorriu gentilmente.
_acho
que está tudo acabado entre nós, querida!- disse com um sorriso amargo e refiz
o caminho por onde entrei.
......Empurrei
a porta e saí para a frente da faculdade. Como lá dentro o ambiente era
climatizado, recebi uma corrente de mormaço que fez meu corpo tremer. O pessoal
de antes ainda estava ali na frente fazendo tudo que é tipo de babaquice, mas
agora haviam mais pessoas fazendo mais babaquice por ali e um violão. Se
destacava, desta vez, uma gordinha com roupa de hippie. Ela atirava uma bolinha
branca para um cachorro enorme que saia correndo e babando para tudo que é
lado, apanhava a bolinha e devolvia para a sua dona. Uma multidão aplaudia com
cara de lobotomizados. O sujeito do skate se aproximou de mim com uma flor e
estendeu. “Faça paz, não faça guerra”, disse ele. Peguei a flor e ele sorriu.
Enfiei a flor na boca e mastiguei - engoli. O sujeito chorou e um cara veio
correndo com uma máquina fotográfica caríssima e registrou o momento. “Vai
ficar bom para uma exposição”, disse ele. Ergui o punho e ameacei dar-lhe uma
chapuletada na focinheira. Correu gritando “liberdade de imprensa, chega de
opressão”. Esse mundo está mais frouxo do que cueca de borracheiro, resmunguei
para mim. Não vai dar para salvá-lo... ele vai ter que apodrecer mesmo.
......Acendi
um cigarro e fui subindo pela rua. O sol parecia menos nervoso agora, mas o chão
e as paredes ardiam em brasa por terem recebido todo aquele calor. Comecei
olhar aquelas pessoas todas e fazer uma analogia com a aldeia dos Smurfs. Talvez
eu fosse o cara mau que invade a aldeia para capturar os Smurfs, só que nesse
caso, eu não queria capturar nenhum deles. Estava interessado na cerveja que
eles escondiam no freezer daqueles pubs – e não tomavam. Como deve ser a vida
dessa gente que a maior crise existencial é ter de tomar fanta porque a
coca-cola perdeu o gás? Discutindo guerras do outro lado do mundo sem se dar
conta do que acontece do lado dos seus apartamentos? Não deve ser tão bom assim
ter uma vida financiada pelo papai e pela mamãe, discutir as divergências entre
o comunismo e o anarquismo com as contas já pagas, falando de sistema
capitalista e vendendo o rabo para instituições particulares, frequentando
feiras de livro marginal só para fazer pose de porra louca para os coleguinhas
de vida ganha, acender um baseado para dizer: olha como eu sou rebeldinho!
Viver uma vida elogiando o próprio rabo fedorento é não ter consciência nenhuma
sobre o mundo! Amanhã vai ser esse monte de merda aí que vai construir o
projeto da minha casa e quando abrir meu jornal, vai ser esse monte de merda aí
que fabricará as notícias. Quando artistas de verdade, com sangue nos olhos,
quiserem expor, terão que competir com essa fabriqueta de bosta e muitas vezes
perderão porque não tem grana para comprar uma exposição – mas não perderão a
arte, e isso é o que importa. E ainda tem os que fazem elogio de entrar nesse
jogo com “certa malícia”, esses tinham que levar um murro no meio da cara! Eu
conheço essa história de entrar no jogo com certa malícia, esses que dizem isso
passam as horas vagas coçando o cu num serrote e depois fundam coletivos! Melhor
parar de me importar com esses pompomzinhos e sentar para me refrescar um
pouco, concluí. Porque no fundo, esse lixo todo só faz sentido para outro monte
de lixo! Prestigiar, como dizem, essa corja de frouxos é assoviar o abc pelo
rabo e bater palma imitando uma foca, achando ser grande coisa.
......Como
não tenho certeza se a cerveja do outro lado da vida é tão gelada quanto deste
lado – e o que importa é o lado de cá -, sentei dentro de uma lanchonete e
mandei vir uma gelada. Quando entrei, numa mesa no fundo, estava uma multidão
que sentava em outras mesas. Encarei-os com um olhar de “quero que caiam fora
daqui” – funcionou! Primeiro me senti absurdamente idiota por ter vindo até
esse lado da cidade. Depois sorri com a boca cheia de cerveja enquanto pensava
em várias piadas que presenciei deste lado. “Cinco mangos por uma long neck?
Que hora as putas sobem na mesa para fazer o strip?” – disse para o atendente.
Ele riu. Eles sempre riem. Corte os pulsos em um bar ou aponte uma pistola para
o atendente, ele ri que se mija!
_cobramos
caro porque esses playboys babacas não consomem e o aluguel do ponto é caro! –
Respondeu o atendente da lanchonete mal abrindo a boca. Era um velho de boina
azul e um bigode branco manchado de amarelo por causa do habito de soltar a fumaça
do cigarro pelo nariz.
_A
gente bebe para afogar reclamações inúteis, amigo. – respondi arrancando o
rótulo da cerveja. “Aí está um dos meus” – disse ele. “Um profissional” –
Acrescentou. Os alcoólatras formam uma irmandade como os maçons. A diferença
está no toque secreto, que na verdade é um comentário irônico e debochado sobre
tudo.
......“Notei
que você não é daqui” – disse e prosseguiu: “sua camisa, tem gola e bolso na
frente”. Resumindo: camisa de careta! Podi crê!
_esqueci
de colocar minha carteira de trabalho e um pente no bolso da frente! – Devolvi.
“Você é um cara legal” – Falou quando conseguiu conter o riso. As outras duas
cervejas foram por conta da casa.
......Dois
caras conversavam do lado de fora. Fortinhos com a voz da Olívia Palito. “Brow,
meu negócio não é estudar, meu negócio é molieres e bocetas, podi crê?”. Bati
com a garrafa no vidro que nos apartava- bati para chamar-lhes a atenção. “Molière
não era um monge?” – Gritei para os caras do lado de fora . Fitaram meus olhos
como se eu fosse algum tipo de retardado. Quanto a mim, olhei de volta como se
eles é que fossem os maiores retardados que vi na vida. Ficamos quites. Levantaram
e saíram. Paguei minhas cervejas e voltei cambaleando para casa. Mas antes,
durante meu último gole, tive um insight sobre a condição do mundo.
Definitivamente é muito bom saber que nascemos todos apartados... para sempre.
......Agora
você entendeu do que eu estou falando? Espero que sim, pois não há mais tempo
nem saco para começar outra vez.
r.A.