.....Na obra A metamorfose (Die Verwandlung), Franz Kafka (1883-1924), nos lança na situação de Gregor Samsa. Personagem este que desperta em uma manhã metamorfoseado de humano para inseto. Acompanhamos (por vezes sentindo na pele) um personagem adaptando-se ao corpo estranho munido de “várias perninhas que se movimentam sem parar em todas as direções e que ele, além de tudo, não conseguia dominar” (KAFKA,20010,p.20). Desta condição irreversível na obra, vemos no decorrer, a constatação feita por Samsa de que se tornara inútil a comunicabilidade com a família. Chegando até a sentença da irmã_ “se vocês talvez não são capazes de ver isso, eu o vejo muito bem. Não quero pronunciar o nome de meu irmão diante deste monstro e por isso digo apenas o seguinte: temos de procurar um jeito de nos livrar dele”(id.,ibid.,p.91). Assim vemos Samsa trancafiado em uma “prisão sem paredes”, sua aparência repulsiva, buscando o controle de seu novo eu-inseto. “Sua própria opinião de que deveria desaparecer era, talvez, ainda mais decidida do que a da irmã” (KAFKA, 2010, p.95-96), nos conta o narrador. Assim, passada algumas semanas, Samsa trancado no seu quarto, ainda observa o alvorecer do dia, olhando pela janela, antes que de suas entranhas brote o último suspiro.
.....Com esta previa da obra de Kafka (que não deseja ser e não é um resumo) podemos nos imaginar em uma condição que um primeiro contato julgamos absurda. Porém, penso que não necessitamos fazer grandes esforços para -alguns de nós - sentir empatia por Samsa. Já que despertamos em uma sociedade onde, muitas vezes, antes de nos dar oportunidades de esclarecermos sobre “nossas perninhas que não controlamos” nos grita como devemos ser para nesta sociedade permanecermos – quem dirá sem a voz! Desta sociedade, vamos para uma cultura (atravessada pela indústria) que por vezes fomenta e enaltece o individualismo, e isso, cada vez mais nos empurra para o modo de vida “indiferente” com duplo sentido: Persegue a diferença para eliminá-la; simula descaso para com a presença do outro que nos encara – Mas se há descaso, qual é o motivo de desviarmos tantas vezes o olhar?
..... Em um embalo cada vez mais rápido da canção, invocamos o desgastante refrão que diz pouco importar quem está a nossa volta. Desta forma polimos as grades de um determinado olhar que nos separa. Espelho de nosso simulado descaso, o outro se comporta como que diante de um inseto. Mas como espelho, absorve repugnância em relação a sua própria condição. Metáfora que pode nos levar ao desespero: O veloz carrossel espelhado, provido de música, com assentos em forma de descaso e indiferença, onde “tudo que está em nossa volta nos impede de voltar”.
..... Este é o momento onde constatar sem fazer a critica, pouco nos vale. Crítica no sentido kantiano, não uma denúncia de um estado de fato, mas o discernimento dos limites de um estado de fato. Mas se o limite de nosso estado de fato é observar o dia nascer pela janela, aguardando nosso último suspiro, podemos – se quisermos- subverter o dito “dos males, o menor” investindo em uma transvaloração: dos males, nenhum? Creio que esta questão nos cobra uma mudança de perspectiva.
.....Há os resquícios de uma tradição que acredita se constituir o “eu”, unicamente, na oposição em relação a um “outro”. Um eu que se ilude na afirmação: Eu sou eu – o mesmo; o outro tem de me reconhecer! Prédica que oculta em sua sombra algo que a filosofia ilumina com sua lanterna, ou seja, “nessa dicotomia entre o Mesmo e o Outro, o Outro não é dado, mas produzido” (PELBART,2003,p.120). No entanto, não nos basta anunciar que o Outro é parte que compõe com o Eu, ou seja, um “Outramento”. Até porque, mesmo sabendo que este Outramento liquida um vício de pensar “meu direito de ser diferente do Outro ou o Outro ser diferente de mim, preservando em todo caso entre nós uma oposição” (id., ibid., p. 126), ainda resta o desvio do olhar do outro e enquanto houver este desvio, ainda haverá, por vezes, repugnância. Mas onde há repudio, há, nem que por um milésimo de segundos, reconhecimento (ou tentativa de escapar deste). E aqui, neste milésimo de segundo, somente neste afeto, para romper o círculo contínuo que nos separa (Eu/Outro), se constrói uma possível mudança de perspectiva. A mudança consiste em assumir, primeiramente, o já sabido: que não conseguimos ser indiferentes à presença do outro – pois não conseguimos ser indiferentes a nossa própria presença. Se a presença do outro nos provoca um abalo é justamente porque é a “nós-outros” que vemos ao negar à presença. Em última instância, esta nova perspectiva nos apresentou o filósofo alemão Nietzsche, que para o comentador brasileiro Roberto Machado não passou despercebido: “A postura de Nietzsche é clara a esse respeito: enquanto se sentir nojo, náusea, fastio, se é niilista” (MACHADO,1997,p.128). Por niilismo entendamos a vontade de nada, mais especificamente este “nadismo” a que Nietzsche se referiu é o niilismo negativo. Uma não esperança no ideal de progresso moderno, ou seja, não haverá um aprimoramento da humanidade: tudo é igual, nada vale a pena, o saber nos sufoca! Somente superado este Niilismo, podemos pensar em um outramento. Mas precisamente aqui, não é o caso de uma ética/moral que nos manda agir por dever, ou seja, tu deves agir para o outramento. É o caso de um convite enunciado. O que está a nossa volta nos permitir voltar não para um passado utópico ou um ideal futuro novamente utópico (utópico no sentido de um não-lugar), mas imanente (presente), uma aventura. A aventura de se ver nos olhos do outro e permitir que o outro se veja em seus olhos. Esta é a transvaloração que passa do mal menor para o mal - nenhum: Uma sempre nova - partindo do encontro de singularidades - criação.
r.A.- Filósofo.
Referências Bibliográficas:
KAFKA, Franz. A metamorfose – O veredicto. (trad) Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM,2010. 144p.
PELBART, Peter Pál. Vida Capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.
MACHADO, Roberto. Zaratustra, tragédia nietzschieana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.1997.