(Fonte da imagem:http://gartic.uol.com.br/resiak/desenho-jogo/dancando-na-chuva)
......Hoje
saí de casa com um pensamento “engasgado” no cérebro. Fiz uma anotação no
metro, enquanto me equilibrava de uma estação até outra – precisava das duas
mãos para anotar numa agenda -, para compor um aforisma mais tarde. É obvio que
este aforisma não está pronto e por isso não vou revelar seu rascunho aqui. Mas
vou falar da ideia. Veja só. Nos acostumamos em meio a uma multidão a pensar
“ali estão os outros”, como se nós fossemos o ponto de referência, com olhos
que fisiologicamente estão fadados a olhar para o exterior. Mas se outro nos
olha, no meio de uma multidão, não passamos de parte “dos outros” até que algo
de nossa singularidade seja notada, percebida ou até que algo de nossa
singularidade irrite o observador. Se por um lado a ideia brotou enquanto
cruzava a porta e apertava o botão do elevador, por outro lado o melhor lugar
para dar forma a essa ideia foi um metro lotado! Lembrei de Buda e de Bukowski,
na mesma hora. Modelos de fricção com o ambiente em que se encontravam, por
excelência! É possível que se eu fizesse uma relação entre Buda e Bukowski na
academia, em um trabalho acadêmico, quero dizer, é possível que a banca
debocharia de mim na mesma hora – diria, na melhor das hipóteses, que sou um
pseudo-filósofo, um idiota legítimo. Mas no metro, eu posso ser filósofo do meu
jeito. Ser filósofo, para mim, não foi uma questão de “querer ser”, fui pego
pela expressão, fui pego pelo sabor do pensamento... “começou como se fosse um
erro”, mas não vou falar sobre isso agora. O caso é que me senti filósofo
naquele exato momento.
......Meia
hora depois, estava andando até o terminal de ônibus. Entrei no ônibus – também
abarrotado de gente – e em meio ao calor dos corpos agrupados, em meio a
mistura de diferentes cheiros, de diferentes humores, olhares, reclamações,
conversas, em meio a tudo aquilo, me flagrei pensando ainda sobre a filosofia –
quê é a filosofia?. Nunca soube responder essa pergunta, mas sei o que não é
filosofia! Sei que filosofia não é o que esta escrito no jornal, por exemplo,
também não é a chuva: seria interessante se fosse a chuva! Bastaria um banho de
chuva até o trabalho para você adquirir esse tipo de conhecimento, esse tipo de
sensação. Muito se falou que filosofia é um pensamento no ócio, na calada da
noite, revolvendo suas próprias reflexões, etc. Não penso que seja isso agora –
e tenho apenas vinte e poucos anos. Talvez Platão riria de mim, porque não
contemplo nenhum tipo de certeza e se fosse possível uma ponte de milênios –
pelo menos uns dois -, encontraria Deleuze rindo na minha cara. “Criar
conceitos, rapaz”, ele sussurraria naquela voz cavernosa. É claro que o
conceito é alguma coisa da produção de um filósofo, mas têm mais os estados de
espírito, a potência e a impotência corporal, o estilo, a escolha literária, o
flagrar-se “a meio caminho da estalagem da razão” (Como escreveu Fernando
Pessoa no Livro do desassossego... – Fernando Pessoa não era um filósofo,
resmunga alguém na banca...), imanências, transcendências, olhares ônticos,
ontológicos, etc. Cá entre nós, eu ainda estava me sentindo filósofo. Depois
que o ônibus me deixou no meu ponto e eu tinha que subir três quadras, passar
em frente a uma igrejinha, atravessar uma minúscula praça, na chuva, ainda
estava rodeado de pensamentos. Quase podia tocá-los! Transferia um conceito
para outro muito diferente, contextualizava mentalmente um pensador e outro, me
contextualizava, afirmava, argumentava, duvidava de mim, ria sozinho e assim
fui indo.
......Meia
hora depois, já estava numa sala de aula. Terceiro ano do ensino médio. O
combinado era que falaria de Karl Marx, precisamente sobre organização social
do trabalho, luta de classes, lucro e mais-valia, meios de produção. Era o
roteiro da aula, uma aula expositiva após a leitura de alguns textos, etc.
Precisava abordar rapidamente conceitos que julgava não serem bem salientados
no material didático que fora destinado aos estudantes, aquela coisa toda. Perguntas
vieram, algumas foram respondidas, outras deixaram reflexões no ar –
particularmente prefiro deixar reflexões no ar a responder perguntas...-,
argumentos foram aceitos, argumentos outros foram refutados, o que quero dizer
com tudo isso é que me sentia ainda filósofo, me sentia ainda em plena Àgora,
intensamente e vigorosamente pensante. Sem um tipo estranho de inspiração, você
não consegue se manter filósofo dando aula em uma escola! Uma porta se abre, um
celular toca, alguém chega atrasado, alguém grita no corredor, outros riem, boa
parte da atenção é desviada, alguém boceja para te informar que está entediado,
etc. Quem da aula em escola pública sabe sobre o que se passa durante 50
minutos. 10 minutos são destinados a alunos que entram atrasados, mais 10
minutos são destinados à chamada – carimbar o gado (risos) -, digamos que mais
10 minutos são gastos com todo tipo de interrupção – de um comentário
desnecessário à um acesso de risos que emerge de uma piada contada por alguém
em um grupinho. Restam-lhe uns 5 minutos para entrar no clima, 5 para responder
possíveis questionamentos ou observações, 10 minutos dedicados exclusivamente a
filosofia – se tudo correr bem. Mas dez minutos de filosofia são incríveis! Dez
minutos são como uma troca de socos de dois pugilistas, podem definir o resultado
da luta toda, resultado de horas, de meses, de anos, de séculos! Quando
acontece, é como se a humanidade respirasse um novo ar, tomasse um novo fôlego!
Eu luto por esses dez minutos uma manhã inteira! Se você soubesse quantas vezes
perdi essa luta, diria que é absurdo – ou até masoquista – esse objetivo.
......Você
acha que todas esses pequenos acontecimentos grandiosos são levados em conta
quando alguém irá te avaliar? Pois é, minha opinião sobre isso tudo é que NÃO. Numa
sociedade, falando hodiernamente, creio que o filósofo e todo esse seu empenho
sejam sinônimos de tolice. Ao menos que aquele que escolheu para si ser
filósofo não sinta uma espécie de “recompensa” nos pequenos detalhes do seu
cotidiano, nos pequenos tesouros – que se revelam imensas montanhas de
sabedoria -, ao menos que o filósofo não sinta uma grandiosidade intrínseca em
seu próprio exercício, ao menos que não defenda esse “resto” que tudo conspira
para jogar no lixo, creio que sua autoestima e sanidade sofrem de hemorragia
silenciosa. É alguém quer me avaliar, e alguém quer me medir – o quanto sou
digno de ser filósofo -, e alguém quer levantar suspeitas sobre mim, e alguém
ocupa um lugar no estado e se diz preocupado com a educação, e alguém acha que
não somos o bastante... E fazem pelo menos uns três anos que tenho gabaritado
em provas do Estado – provas terceirizadas e na maioria das vezes mal
formuladas: gasto mais tempo tentando corrigir as avaliações que me são
aplicadas para entender o que é que realmente gostariam de me avaliar, do que
respondendo questionários e justificando dissertações. “Duvido muito que Platão
conseguiria um orientador em uma universidade para fazer uma pesquisa sobre
Platão”. – tai, acabei de tecer um bom aforisma (risos). – “Bem senhor Platão –
é seu apelido, não é? Pelo visto você andou publicando um bom bocado, mas não
teve muitas participações em eventos filosóficos, não publicou muita coisa em
revistas especializadas, e seu Lattes anda meio magro... complicado... assim
fica difícil.”
......Talvez,
você esteja pensando agora:_ poxa, mas que dramalheira, que choradeira, você
fica aí só reclamando, que porcaria rapaz! E se esse for o seu caso, sinto
muito lhe informar, mas não estou reclamando – estou até alguns quilômetros
longe disso. Quase desapareço no horizonte! Aceito o “jogo”, jogo ele nos
conformes de minhas possibilidades – até um pouco além. Se fosse experto não
estaria escrevendo isso aqui. Muito menos publicando! Mas não sou um sujeito
muito esperto, embora ame a filosofia – mas é claro que só isso não basta.
Nunca bastou. Sei como é acordar num quarto pequeno, pagar um aluguel absurdo,
espremer a agenda toda semana para reservar pelo menos duas horas diárias de
leitura e reflexão. Sei como é comer mal para conseguir comprar um livro no fim
do mês, sei como é andar com um sapato furado na sola ou com uma camiseta
desbotada só para manter a chama (semelhante a uma ponta de fósforo) acesa
diante de tanta escuridão. Isso não me
desespera nem me aniquila; isso tudo me constrói. De outra maneira, duvido
muito que minha filosofia teria algum valor. Valor esse que preservo como um
pai atrapalhado cuida de seu filho. Me afirmo de tal maneira que, semelhante a
Nietzsche, seria capaz de publicar uma obra elogiando minha doença! Se Rimbaud
não tivesse sentado a beleza em seu colo para repudiá-la, antes de mim, eu
provavelmente já teria feito. Tanto atraso teria me poupado a História...
......Mais
tarde estava lavando a louça. Lavando a louça de uma semana! Um pouco de
preguiça, um pouco de descaso, uma apologia da falta de tempo, mas ainda assim
lavando-a. Em algum momento ri de mim. De “mim”, não de “eu”. Foi um riso
nefasto, um riso de ridículo. Consigo ser ridículo e ainda assim me sentir
filósofo? – resmunguei. A resposta era tão óbvia que a própria pergunta foi
tola. Me senti muito capaz de lavar a louça. Aliás, me senti no lugar mais
correto do meu mundo. Mesmo com aquela sensação de estar fazendo “bosta
nenhuma”, num sentido filosófico, ainda me sentia filósofo! (Ouvi falar que foi
um espanto para alguns sujeitos que foram visitar o sábio Heráclito, encontrá-lo
simplesmente aquecendo as mãos diante de uma fogueira. Nada de “genial”, apenas
aquecendo as mãos). Não sou Heráclito, não sou nem um pedaço de uma sombra dos
grandes, sou alguém muito satisfeito em lavar a louça e se sentir filósofo –
mesmo que sozinho. E se isso tudo não bastasse, ainda escrevo. Não sei o porquê
– ser a multidão do outro deveria esfriar essa febre. Se você souber, por
favor, não me conte.
r.A.
Para
Rodrigo Menezes e Fernando Klabin. Amigos que tanto devo e não vejo como pagar.
– ah se Klabin não tivesse traduzido Nos cumes do desespero... não quero nem
pensar nisso!