segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Molière não era um monge?




......Sentado dentro de uma lanchonete tive um insight sobre a condição do mundo: um apocalipse zumbi! Só que a trilha sonora é pagode e ao invés de uma fotografia melancólica, como de costume em filmes góticos, um carnaval de cores. E talvez no lugar de zumbis, se arrastam fantasias da Disneylândia! Mas sem dúvidas, o miolo é de morto-vivo. No lugar de rifles e pistolas, você tem de sacar do coldre olhares de “caí fora!” e frases de ironia debochada. De qualquer forma, a gente sobrevive porque não tem certeza se do outro lado da vida a cerveja é tão gelada!  Eu ouço o mundo e ele me diz “poxa vida, eu estou cansado”- e escora a cabeça com a mão trêmula. Aqui está um homem que entende os lamentos do mundo, que sabe por que de vez em outra ele se sacode feito cachorro para se livrar das sarnas e das pulgas. Ele está com febre enquanto uma grande parte do povo bebe a poção dos ursinhos Gummi e sai saltitando sorridente atrás de algum trio elétrico imaginário. Você não está entendendo do que eu estou falando? Ok. Vou começar outra vez.
......39 graus em São Paulo. Se eu tivesse dormido de verdade, poderíamos dizer que acabei de despertar. Mas na verdade estava  arrastando meu enorme e gordo corpo dentro de casa como se fosse uma lesma preta que alguém atirou sal. Molhava o rosto no banheiro a cada meia hora. Vinha de sete dias de folga, sete dias de festa. Você sabe como é uma ressaca em uma tarde no deserto? Na pia da cozinha, os restos de comida estavam tentando reconstruir a torre de babel. Olhei para as louças e disse:_ vocês ainda estão aí?- Fiz cara de indignado, mas elas não se ofenderam. Parecia que estavam se divertindo da maneira delas. “Se virem que o papai tá doente”. Abri a geladeira para não pegar nada e acabei por sentar no chão e contemplar uma cebola que descansava sob um pires. Alguém empurrou um envelope por baixo da porta do apartamento. Da cozinha consegui me esticar e pegar o envelope no corredor. “Prezado sr. Adriano Maranello Jr. Compareça na faculdade de Belas Artes para  entrevista de emprego na tarde de Quinta-feira (23/11) às 16:30 horas. Trazer documentos”. Achei engraçado... nunca vi “noite” às 16 horas. Tinha uma assinatura que não consegui ler. Deduzi que quem foi assinar a carta deve ter escorregado numa casca de banana e voado por sobre o papel. Era isso ou sofria de convulsões.
......Brandi o punho cheio de ódio para o chuveiro. Posicionava a chave em “desligado”, mas a água estava boa para um cafezinho. Pensei em tachos de ferro fervendo água para pelar suínos recém abatidos. Comparada com a água do chuveiro os suínos estavam bebendo drinks na beira da piscina – na ilha de Caras. Me sequei pensando no inferno com um monte de diabinhas acenando para mim.  
_como faço para chegar em Vila Mariana?- perguntei para o guarda do metrô. Um senhor magricela com uniforme preto e botinas. Disse e sorriu com um bigodinho safado encharcado de suor:_é só pegar o metrô sentido Vila Mariana, he he he!
_...é que marquei com umas garotas para fazer uma festinha numa piscina de sorvete. Vamos rolar no sorvete nesse calor! Vamos nos agarrar de maneira tarada e se esfregar no sorvete! Vai ser uma loucura! Imagine o senhor, garotas jovens e sexys, passando sorvete pelo corpo, todas assanhadas e nenhuma afim de engraçadinhos! Pense o senhor aí, trabalhando nesse calorão até as seis... é uma pena! As horas não passando... o calor distorcendo o olhar... às horas não passando, a botina apertando o pé encima de um velho calo...garotas sexys rolando no sorvete e as horas com minutos eternos... tenha uma boa e looooooonga tarde!
......O metrô que comumente é cheio, estava vazio. Poucos gatos pingados se abanando e correndo como baratas tontas. Todos atormentados pelo calor. O metal dos trilhos rangia como uma multidão de almas clamando desesperadas pelo fim. Tive de consultar o mapa do metrô para saber em que rua sair quando chegasse à estação. Peguei no bolso do calção uma folha de caderno que sempre trago junto para possíveis anotações inúteis. Meu cérebro é velho, ele precisa disso. Às vezes esqueço até do meu nome. Anotei cuidadosamente o mapa das ruas em que teria que descer para chegar até a tal faculdade. Garotas no sorvete, digo, Belas Artes – não deixa de ser. Embaixo da terra é úmido e um vento frio sopra dos túneis. A porta do vagão se abre e eu corro para debaixo do ar condicionado. Minha mente que é doente, sempre imagina como é cair no vão do vagão e ser destripado. O metrô vai rapidamente de uma estação a outra e um senhor de terno e com uma pastinha de couro tem a mesma ideia que eu e corre para esfriar a careca embaixo do ar. Deve estar fritando naquele terno, pensei. Vejo o reflexo do meu rosto no vidro. Escorre suor. Passo a mão no rosto e enxugo no calção. Ficam as marcas dos meus dedos grossos e minha mão pesada no jeans. Uma voz feminina fala dentro de umas caixinhas de som “próxima esta-ção...Vila Tzchzzz...Desem-bar-que-pelo-tczhshshz-do...rem”. Morreu, só pode. Deve ter fritado dentro de alguma salinha. Encontrarão um cadáver de mulher agarrada a um microfone. Perdemos uma camarada!
......Preciso da rua General sei lá do que. Consulto minhas anotações e está uma droga úmida por causa do suor dentro do bolso. Ando de um lado para outro no sol escaldante. O lugar é certamente vila Mariana: Deduzi sozinho pelo simples motivo de cruzar um letreiro gigante escrito “bem vindo a...” – o resto você sabe. Uma longa avenida de quatro pistas. Saio próximo a um terminal de ônibus. O terminal que consigo ver parcialmente -porque a outra parte está oculta atrás de um prédio alto-, está abarrotado de carrinhos de picolé e sorvete. Alguém mais doente do que eu grita “olha o milho verde”. É, um milho verde cai muito bem neste inferno! A calçada cinza, brilha até fazer meus olhos doerem. Do chão brota um mormaço que sinto nas canelas. Paro. Um negro de dois metros de altura, careca e de tênis de jogar basquete esta comendo salgadinho de bacon do meu lado. DE BACON! Estamos esperando o sinal de trânsito abrir para atravessar a enorme avenida. “crec,crec,crec,crec,crec”. Se você jogasse um ovo cru no asfalto ele nem fritaria, possivelmente explodiria! O cara olha para mim com a boca cheia de salgadinho e sorri. Viro minha cabeça em sua direção como se fosse à menina do filme O exorcista.
_isso aí deve estar uma maravilha! – digo. – Ele oferece. Recuso chacoalhando as mãos em sinal de absurdo. Ele continua sorrindo. “crec,crec,crec,crec,crec,crec”. Penso em lhe perguntar se conhece a rua que procuro, mas o sinal abre e ele atravessa correndo na faixa. Feliz. Saltitante. Com a boca cheia de salgadinho de bacon. Esse cara aí se odeia!
......Ganho o outro lado da avenida. Pelo menos os prédios altos fazem sombra na calçada. Aperto os olhos para ver a hora em um relógio fixo no alto de um prédio e percebo que esqueci meus óculos. No meu lado esquerdo, estacionado, um táxi. A) peço informação e se o taxista se recusar b) preciso pagar uma corrida mesmo estando umas cinco quadras da faculdade. Estico meu pescoço grosso pela janela do táxi.
_por gentileza... uma informação. O senhor sabe onde fica a faculdade de Belas Artes?
...... Um japonês com cabelos grisalhos, boca meio murcha e meio sorridente começa a me explicar com uma voz aguda. “sabe essa rua aqui à esquerda?” – Sei – “então garoto pega a esquerda e segue rua reto. Cruza um sinal”. – Sei- “rua maluca, tudo curva. Cheia de entradas e saídas. Seguir reto”. – Sei- “seguir reto até final da rua. Pegar esquerda no alto. Seguir reto esquerda e dobrar direita mais uma vez. Ver faculdade no esquina da direita” – Sei...- Sei bosta nenhuma! Entro a esquerda na rua que atravessa a avenida e apuro o passo. Japonês maluco... agora sei porque vocês espatifavam seus aviões contra os navios na segunda guerra! Provavelmente recrutaram taxistas! “Pega direita e segue ligeiro até ver navio, hay?”.
......Sigo pela rua. Os edifícios altos dão lugar para mansões de luxo. Mansões de luxo com amplo jardim em frente e sempre um cachorrão cagando na calçada interna e mostrando os dentes para você. O calor faz o cheiro do cocô do cachorro se misturar ao mormaço do asfalto. A rua deserta. O sol implacável! Nenhuma sombra. Caminho meio quilómetro entre mansões e ruas vazias e becos vazios. Nada de esquerda no alto. Só ladeiras. Saio em uma rua de esquina e começo a ver um grande aglomerado de pessoas. Parece ser um pub. Um casarão com uma enorme vidraça na frente e dos lados. Muitas mesas de madeira com sombrinhas sobre elas. Todas as mesas estão lotadas de gente rindo e conversando alto. São acadêmicos, certamente! Como sei? Pelas roupas. “Limpos-sujos”. Deixe lhe explicar como isso funciona.
......Limpos-sujos são sujeitos com cabelo desgrenhado, emprastado, maloqueiro, mas cheirando creme – dá para sentir o cheiro de longe! Tênis rasgado ou tingido, meio gasto, mas importado e caro. Não entendo muito de tênis. Apenas tenho uma estranha impressão de que servem para proteger o seu pé. Mas quando as pessoas olham para você e olham para o tênis e voltam a olhar para você novamente com um sorriso idiota no canto da boca mais idiota ainda, você entende que esses sujeitos estão usando tênis caros. Calças com aparência de suja, mas fedendo amaciante! Óculos escuro para escorar o cabelo. Mochilas com aparência de acampamento, mas murcha porque só tem um i-pod e uns chaveiros de pindurico. Livro no sovaco – Caio F., Clarice Lispector ou manifesto do partido comunista, Rimbaud por ele mesmo, biografia do Chê Guevara, e os mais ousados: Nietzsche – qualquer um com a foto bem grande do Nietzsche bigodudo e com cara de enlouquecido. Nos braços, tatuagem, geralmente tribal. Nas orelhas, alargadores da cor dos teletubies. Cara de quem não dormiu, mas a ausência de olheiras não mente! Cigarro na forquilha do dedo, mas não fumam, é só um adorno. Pulseiras – muitas e coloridas, aceitável para menininhas de onze anos. Camiseta de alguma banda de rock com o diabo por símbolo ou flanela (quando não a velha estampa do Chê Guevara, comprada em algum shopping). Óculos da vovó, mas sem lente de grau. E principalmente: rindo em câmera lenta com a boca escancarada e olhando para todos os lados para ver se alguém notou sua felicidade...quando riem, é como se uma torrente escura jorrasse de suas bocas e se lançasse sobre você como uma pestilência... no final do riso um “podes crê”. As “mina” de calção e de botas, ou saia de hippie e brinco de artesanato. E todo mundo caminha como se fosse a Lady Gaga – sem exceções! Ninguém manca, ninguém arrasta os pés, ninguém assoa o nariz ou coça o ouvido. Todos possuem corpos demasiadamente confortáveis! São tipo almofadas embaixo do ventilador! Se eu disser que as mulheres se vestem de putas, mas ficam bravas se te pegam olhando para lugares desnudos, você provavelmente vai dizer: como assim colega? Queria que as mulheres usassem burca? Então faz de conta que eu não disse isso e segue a vida.
...... Tai, achei a faculdade!
......Quanto mais penetrava na rua da faculdade, mais pubs, lanchonetes e bares. Lotados. Mesas na calçada, acadêmicos passando a tarde toda em volta de um litro de coca, feitos moscas no estrume – e os mais ousados, do lado de uma cerveja litrão! – só que o brilho nos olhos deles não me engana, eles queriam estar tomando todinho! Uma cerveja sobre a mesa para dezenove caras sujos-limpos! O importante é a conversa com a galera, só que não. Eles não conversam. Eles relatam seus pequenos dramas de como não conseguiram escrever uma redação ou como seus pais não lhes entendem! 
“Podes crêr?” – Podi creeeeeemalandro! “Um cara maltratou um cachorrinho...mas que covardia! Que barbárie! Podi crê? Podissssssssssscreeeeeeeeeeeeeeemalandro”. Isso tudo e um violão. Sempre o maldito violão! Nada contra violões, adoro violão! Mas assim não.
......Paro embaixo do sombreiro de um restaurante para fumar um cigarro e refletir mais um pouco sobre tudo que vi em menos de três quadras da faculdade. Existe um tratado sociológico sobre esse povo todo das faculdades? – Pior é que não! Reflito entre baforadas do meu cigarro e pingos de suor, sobre alguns detalhes interessantes. Fora os assuntos intelectuais e os jovens jogados no chão – alguém disse para os adolescentes que se atirar ao chão faz bem para o style -, também existe a oposição aos “limpos-sujos” e estes são os “fortinho-voz de mulher- garotão putão” ! Acredite, é uma verdadeira luta de classes! Para eles, aparentemente, os “limpos-sujos” são a classe: Mamãe quero ser mendigo! Os fortinhos, na oposição, tratam de malhar para ficar com braço de Popeye e perna de Olívia Palito – inclusive a voz deles lembra a Olivia Palito. A ideia deles é, como eles dizem: “pegar molieres e comer bocetas” – sim, eles falam desse jeito porque a bomba atrofiou a parte do cérebro responsável pela gramática. Isto os deixa em grau de igualdade mental para com os “limpos-sujos”, já que nestes a maconha destruiu a parte do cérebro responsável pela coerência gramatical – sóóóóóóóóóóóóó! Nos dois casos os alicerces são um outro tipo – praticamente um objetivo: “Mulheres Tatu”. Mulher Tatu, para quem não é iniciado no assunto (Aqui só entra quem souber geometria), nada mais é do que um tipo de mulher que se tiver um homem deitado no chão de bruços, ela cava um buraco para deitar embaixo! Este tipo – não diagnosticado pela sociologia séria- migra dos fortinhos para os limpos-sujos e eles, os limpos-sujos e os fortinhos, pensam que elas fazem isso porque ou são fortinhos ou limpos sujos, mas na verdade tudo que elas querem é cavar! Fim do cigarro.
......Sigo andando. Passo pelo primeiro pub. Contorno umas mesas para não ter que andar pelo asfalto. Todos me olham. Devo estar cagado, é isso! Atravesso a rua e já estou em frente a uma lanchonete. Ali que está o violão! E um litro de coca-cola. “Virando as costas para a américa latina”. Ouço o vigésimo  “Pode crêr?”. Alguma coisa em mim se contorce. Algo em mim se arrepia! Sigo andando. Mais um bar. Todos em silêncio. Uma musiquinha indiana, bem baixinha, no fundo. Deve ser a galera que bate palma para o sol. Escuto meia conversa: “já ouviu aquele disco dos mamutis, tudo foi feito pelo meu pau de óculos? – já sim, podi creeeeeeeeeeemalando”. Oh não, penso. Não mereço isso! Sou um cara legal – pergunte ao finado Kurt se tem dúvidas quanto a isso -, essa gente faz o seus ouvidos sangrarem!
......Na frente da faculdade – Jesus me chicoteie! A coisa estava bem pior do que eu imaginava. Tinha de tudo um pouco e um violão. Duvido que você consiga imaginar alguma coisa que não tinha ali no meio! Tinha de curupira à robocop! Um cara batia num tambor, outro bebia sangue de cabra, outro ainda estava num debate consigo mesmo- e estava perdendo, inclusive. Tinha um que meditava e outros três que mascavam a zorba do cara que meditava. Me chamou a atenção uma garota que conversava com um coelhinho de pelúcia: “meu amor, o Roberval é só um ladrãozinho de chocolate, eu não te traí com um canivete, deus está na sol e no lombo da mula”. Pulemos esse parágrafo, sim?
......Abri caminho entre os acadêmicos. Por incrível que pareça, estava apenas 30 minutos atrasado. Um cara perto da porta da faculdade, sentado sobre um tapete marrom com as siglas “FBA” olha para mim. Com a mão na porta eu paro e o encaro. Sujeito raquítico, cabeludo – mas o cabelinho teve visitinha com hora marcada no cabeleireiro -, camisa preta com estampa de uma aranha branca no centro. Noto que o cara está sentando em cima de um skate – lixando o rabo? Permanecemos ali, nos encarando. Começo a me sentir meio ridículo e forço a porta para entrar.
_você é capitalista brow!- Diz o cara e maneia a cabeça para ajeitar o cabelinho e o cérebro pegar no tranco. Coça o nariz grande. – você é capitalista e contribui todos os dias para engordar o monstro que é o sistema, brow! Você é alienado cara, você precisa abrir a sua mente, brow.
_é.- Respondo. Empurro o skate com o pé e nem me viro para ver o “brow” se arrastando uns metros pelo tapete. Não posso acreditar que esse tipo de coisa me dirige a palavra. São esses caras que deixam o mundo doente, mas juram que vão melhorá-lo. Não consigo imaginar esse tipo de gente pagando as contas numa fila do banco. Não consigo visualizar um cara desses lavando a própria roupa ou cuidando de um filho. É impossível acreditar que essa gente que repete essas palavras consigam limpar a bunda sozinhos depois de cagar – provavelmente cagam e gritam “manhé, vem me limpar porque o sistema é foda!” e aí saem tudo meio cagado para fazer o movimento. Mas eles repetem um mantra como se fossem sapos preguiçosos numa lagoa esperando a comida entrar dentro de suas bocas. Não tem nada a ver com o cabelo, com o skate ou com a camisa. Estou pouco ligando para essas coisas, mas as merdas que essa gente diz... revela o quão oco é o crânio!
......Me dirijo até um balcão de informações. Logo na entrada, do lado esquerdo, funciona dentro da faculdade um café. Olho uma turma bem vestida e presumo serem professores ou algo pior. A faculdade é maior pelo lado de dentro do que aparentava pela fachada. Toda marrom por fora e branco reluzente por dentro. Sim, parecia um kinder-ovo com bosta no lugar da surpresa. Mas até que cheirava bem – a faculdade no caso, não a bosta.
...... Uma garota bem vestida, olhos claros, cabelo vermelho e brincos de pérolas (certamente falsas) me pergunta no que ela pode me ajudar. Penso em várias coisas no que ela poderia me ajudar. Poderia ir no mercado para mim e no açougue. Poderia escrever meus contos enquanto eu dito, poderia rachar o aluguel comigo, talvez. Poderia sussurrar calmamente no meu ouvido, em domingos entediantes, que tudo vai melhorar. Com aquela voz de atendente de telemarketing e aquele perfume de rosas, eu acreditaria por um momento. “Muito bem querida, você está certa, você tem razão em tudo, eu exagero demais. O mundo não é tão ruim e as pessoas não são tão burras quanto presumo. Tudo isso é uma provação divina ou melhor, é uma contribuição para que eu me torne uma pessoa mais dócil e preocupada com o drama existencial alheio” – eu diria. Depois andaríamos de pés descalços sobre uma grama verde ladeada por árvores em um bosque ao pôr do sol. Só faltou um lago e uns patinhos nadando dentro dele para mim imaginar! Mas fui interrompido...
_sr. no que posso lhe ajudar? – Desta vez sua voz perdeu o tom adocicado. Parecia mais uma velha pedagoga!
_Vim para uma entrevista de emprego. Deixaram essa carta embaixo da minha porta – alcancei-lhe a carta.- acho que assinei um formulário para um cargo de professor de literatura e leitura comparada...
_...hum...deixe-me consultar o sistema, por favor, aguarde – respondeu sorrindo e fez um biquinho muito sensual. Provavelmente treinou esse sorriso na frente do espelho (do motel...). Deve ter arrebentado a alma de muitos homens com esse sorriso, algumas mulheres também... hoje em dia, vai saber!
......Fico repassando na minha cabeça uma canção do Stone Temple Pilots. Crackerman, para ser mais preciso. Minha mente foi treinada para “modos de espera”. É como uma espécie de intervalo. Toca uma música e fico repassando alguma coisa que me foi dita. Neste caso, fiquei pensando sobre a palavra “sistema”. Agora que a atendente vai consultar o sistema, será que vai aparecer uma foto minha com uma camiseta do Exploited e os dizeres “fuck the sistem”? Fico pensando o que eu faria no lugar dela. Abriria uma página que estava minimizada no computador. Iria dizer: “aguarde mais um pouquinho” e continuaria jogando super Mário. Já estava no refrão de crackerman quando ela disse:
_não! O senhor foi chamado para uma entrevista para a vaga de segurança do campus.
......Olhei para os lados. Mais a frente havia uma catraca digital que os alunos passavam seus cartões para entrar. Junto desta catraca estavam dois seguranças parados dentro dos seus ternos. Um deles futucava o nariz, outro coçava o saco. Dois gorilões malucos com cara de nada! “O sistema é foda, parceiro”. Pensei neles me chamando de colega. “Novato, você vai passar revista nos gordinhos – ha ha ha!”.
_acho que estamos mergulhando em um equivoco! Eu não posso ser segurança, ainda mais de uma faculdade de playboys que torram o dinheiro dos pais e pensam que o centro do mundo são seus umbigos sujos! – resmunguei baixo por cima do balcão.
_também há a vaga para limpeza do campus.- Devolveu ela, com aquele sorrisinho meigo. “Você já ficou com algum segurança do campus?”. Ela fez sinal que não com a cabeça e sorriu gentilmente.
_acho que está tudo acabado entre nós, querida!- disse com um sorriso amargo e refiz o caminho por onde entrei.
......Empurrei a porta e saí para a frente da faculdade. Como lá dentro o ambiente era climatizado, recebi uma corrente de mormaço que fez meu corpo tremer. O pessoal de antes ainda estava ali na frente fazendo tudo que é tipo de babaquice, mas agora haviam mais pessoas fazendo mais babaquice por ali e um violão. Se destacava, desta vez, uma gordinha com roupa de hippie. Ela atirava uma bolinha branca para um cachorro enorme que saia correndo e babando para tudo que é lado, apanhava a bolinha e devolvia para a sua dona. Uma multidão aplaudia com cara de lobotomizados. O sujeito do skate se aproximou de mim com uma flor e estendeu. “Faça paz, não faça guerra”, disse ele. Peguei a flor e ele sorriu. Enfiei a flor na boca e mastiguei - engoli. O sujeito chorou e um cara veio correndo com uma máquina fotográfica caríssima e registrou o momento. “Vai ficar bom para uma exposição”, disse ele. Ergui o punho e ameacei dar-lhe uma chapuletada na focinheira. Correu gritando “liberdade de imprensa, chega de opressão”. Esse mundo está mais frouxo do que cueca de borracheiro, resmunguei para mim. Não vai dar para salvá-lo... ele vai ter que apodrecer mesmo.
......Acendi um cigarro e fui subindo pela rua. O sol parecia menos nervoso agora, mas o chão e as paredes ardiam em brasa por terem recebido todo aquele calor. Comecei olhar aquelas pessoas todas e fazer uma analogia com a aldeia dos Smurfs. Talvez eu fosse o cara mau que invade a aldeia para capturar os Smurfs, só que nesse caso, eu não queria capturar nenhum deles. Estava interessado na cerveja que eles escondiam no freezer daqueles pubs – e não tomavam. Como deve ser a vida dessa gente que a maior crise existencial é ter de tomar fanta porque a coca-cola perdeu o gás? Discutindo guerras do outro lado do mundo sem se dar conta do que acontece do lado dos seus apartamentos? Não deve ser tão bom assim ter uma vida financiada pelo papai e pela mamãe, discutir as divergências entre o comunismo e o anarquismo com as contas já pagas, falando de sistema capitalista e vendendo o rabo para instituições particulares, frequentando feiras de livro marginal só para fazer pose de porra louca para os coleguinhas de vida ganha, acender um baseado para dizer: olha como eu sou rebeldinho! Viver uma vida elogiando o próprio rabo fedorento é não ter consciência nenhuma sobre o mundo! Amanhã vai ser esse monte de merda aí que vai construir o projeto da minha casa e quando abrir meu jornal, vai ser esse monte de merda aí que fabricará as notícias. Quando artistas de verdade, com sangue nos olhos, quiserem expor, terão que competir com essa fabriqueta de bosta e muitas vezes perderão porque não tem grana para comprar uma exposição – mas não perderão a arte, e isso é o que importa. E ainda tem os que fazem elogio de entrar nesse jogo com “certa malícia”, esses tinham que levar um murro no meio da cara! Eu conheço essa história de entrar no jogo com certa malícia, esses que dizem isso passam as horas vagas coçando o cu num serrote e depois fundam coletivos! Melhor parar de me importar com esses pompomzinhos e sentar para me refrescar um pouco, concluí. Porque no fundo, esse lixo todo só faz sentido para outro monte de lixo! Prestigiar, como dizem, essa corja de frouxos é assoviar o abc pelo rabo e bater palma imitando uma foca, achando ser grande coisa.
......Como não tenho certeza se a cerveja do outro lado da vida é tão gelada quanto deste lado – e o que importa é o lado de cá -, sentei dentro de uma lanchonete e mandei vir uma gelada. Quando entrei, numa mesa no fundo, estava uma multidão que sentava em outras mesas. Encarei-os com um olhar de “quero que caiam fora daqui” – funcionou! Primeiro me senti absurdamente idiota por ter vindo até esse lado da cidade. Depois sorri com a boca cheia de cerveja enquanto pensava em várias piadas que presenciei deste lado. “Cinco mangos por uma long neck? Que hora as putas sobem na mesa para fazer o strip?” – disse para o atendente. Ele riu. Eles sempre riem. Corte os pulsos em um bar ou aponte uma pistola para o atendente, ele ri que se mija!
_cobramos caro porque esses playboys babacas não consomem e o aluguel do ponto é caro! – Respondeu o atendente da lanchonete mal abrindo a boca. Era um velho de boina azul e um bigode branco manchado de amarelo por causa do habito de soltar a fumaça do cigarro pelo nariz.
_A gente bebe para afogar reclamações inúteis, amigo. – respondi arrancando o rótulo da cerveja. “Aí está um dos meus” – disse ele. “Um profissional” – Acrescentou. Os alcoólatras formam uma irmandade como os maçons. A diferença está no toque secreto, que na verdade é um comentário irônico e debochado sobre tudo.
......“Notei que você não é daqui” – disse e prosseguiu: “sua camisa, tem gola e bolso na frente”. Resumindo: camisa de careta! Podi crê!
_esqueci de colocar minha carteira de trabalho e um pente no bolso da frente! – Devolvi. “Você é um cara legal” – Falou quando conseguiu conter o riso. As outras duas cervejas foram por conta da casa.
......Dois caras conversavam do lado de fora. Fortinhos com a voz da Olívia Palito. “Brow, meu negócio não é estudar, meu negócio é molieres e bocetas, podi crê?”. Bati com a garrafa no vidro que nos apartava- bati para chamar-lhes a atenção. “Molière não era um monge?” – Gritei para os caras do lado de fora . Fitaram meus olhos como se eu fosse algum tipo de retardado. Quanto a mim, olhei de volta como se eles é que fossem os maiores retardados que vi na vida. Ficamos quites. Levantaram e saíram. Paguei minhas cervejas e voltei cambaleando para casa. Mas antes, durante meu último gole, tive um insight sobre a condição do mundo. Definitivamente é muito bom saber que nascemos todos apartados... para sempre.
......Agora você entendeu do que eu estou falando? Espero que sim, pois não há mais tempo nem saco para começar outra vez.


r.A.