sexta-feira, 8 de abril de 2011

Mario esqueceu seu sobrenome...


..... Mario esqueceu seu sobrenome. Tentava puxar da lembrança alguma coisa que pudesse servir enquanto indutor. Algo que uma vez lembrado estaria enroscado na lembrança de seu segundo nome. Mas nada. Só vinha o rosto do Gugu na sua cabeça. Cada vez que fechava os olhos e se esforçava para reconstituir a memória de seu décimo quarto aniversário, o aniversário que sabia que sua mãe havia escrito seu nome completo em cima do bolo – para a alegria de seus incansáveis colegas de escola que prestavam mais atenção nisso do que a suas próprias vidas- com glacê rosa, aparecia o rosto sorridente do Gugu. Gugu sorria e piscava um olho. Movimentava os lábios e dizia: Uma boa tarde para você aí em casa sentadinho no sofá! Mario batia com a palma da mão na testa e abria os olhos. Dizia para si mesmo que seu sobrenome não era Liberato porque sabia que outro já tinha este sobrenome. Toda vez que a memória começava a lhe parecer clara, novamente o Gugu aparecia com a cara no meio do bolo. A cabeça do Gugu rolava no bolo e cuspia glacê rosa. As pessoas batiam palmas e assoviavam. Gugu cuspia o glacê rosa e gritava: BOA TARDE AUDITÓRIOOOOO! Mario se beliscava e abria os olhos.

.....Os vidros na janela da sala refletiam réstias de um sol já vermelho, prestes a sumir. O domingo se dissolvia. Mario sabia que logo precisaria dormir para saltar cedo da cama e ir trabalhar. Estava sempre atrasado. O relógio lhe queimava o pulso esquerdo a semana toda. Sabia que dia 5, amanhã, teria que tirar um tempo para pagar a água e a luz. Reconhecia com dor no bolso que lhe restariam apenas 200 para passar o restante do mês. Lembrava do bigode e da barriga do chefe. Lembrava de sua colega no trabalho, mas não lembrava do nome. Lembrava de suas pernas e que pernas! Infelizmente lembrava de uma aliança na mão da colega. É o gomo de uma corrente; pensava. Fechou os olhos para lembrar das pernas bronzeadas e já ouvia um risinho conhecido... Sabia o que viria e prontamente abriu os olhos. Olhou em volta e na mesa de centro da sala, ao lado de seis latas amassadas de cerveja estava outra mulher sorrindo para ele. Seria isso, sua mãe! Lembrar da mãe lhe induziria ao sobrenome. Pensou na mãe, mas só conseguia formar imagens de assistentes de palco de biquíni. Entre tantas estava lá à mãe. Rebolando e sorrindo. Desferindo olhares sexys para Mario – que a via como que pelas lentes de uma câmera. Mario saltou do sofá e fez o sinal da cruz. “Cruzes, saí prá lá!”. Tremeu.

.....Já que estava em pé o melhor seria pegar a carteira e ler na identidade seu sobrenome. Mas que absurdo não lembrar do sobrenome, não lembrar de si! “Já que estou de pé, vou fazer um café!”. Entrou na cozinha e mudou de ideia. Melhor seria mesmo outra cerveja! Abriu a geladeira e como normalmente se faz quando se abre a geladeira, pensou nas coisas olhando para elas. Cada coisa dentro da geladeira lhe despertava lembranças que mudavam seu humor e sua expressão no rosto. O suco lhe lembrava criancinhas dançando e cantando alegremente na rua. A margarina lhe lembrava um casal bem resolvido- ele de terno e gravata, ela com uma roupa brilhante e um sorriso angelical – se despedindo com muito amor e carinho enquanto aparecia de algum lugar uma mensagem: a felicidade está nas pequenas coisas da manhã. Comece bem o seu dia! Olhou para o leite e imediatamente seus pensamentos ficaram lotados por bebezinhos vestidos de bichinhos em um mundo encantado. Curiosa esta maionese; pensou. Ela me lembra esportes radicais. Bike nas montanhas, escaladas, andar de skate e depois encontrar um senhor vendendo cachorro-quente próximo a uma praia com fundo paradisíaco. Os legumes cantarolavam, o tomate era um francês arrogante, o pepino fazia malabarismos com um nun-chaku e o chuchu estava com depressão (também pudera, ser um chuchu é coisa de marica!). Finalmente a cerveja, um sonho de vida! Mulheres semi-nuas e de corpos esculturais! Um grupo de pagode ao fundo. Dezesseis marmanjos batucando alguma coisa: um tocava um cavaquinho, outro puxava o “laiá-laiá... Ô... laiá-laiá”, três se chacoalhavam (como se estivessem levemente cagados), dois assoviavam (ao mesmo tempo em que mastigavam palitos de dente... é a técnica!), quatro batiam palmas (fora do ritmo), um olhava para Mario e sorria como se fosse o melhor amigo que fazia doze anos que não o via – abria os braços para abraçá-lo enquanto sua boca gesticulava: MA-RI-O!MAS-QUE-BE-LE-ZA! -, e outros quatro estavam ocupados comento lingüiça com farofa - que outras quatro mulheres de biquíni lhes serviam na boca enquanto estavam sentadas em seus colos. Mario sentiu-se amado por alguns segundos enquanto pegava a cerveja e fechava a porta da geladeira.

..... Andou até a sala e sentou no sofá com sua cerveja. Deitou o retrato de sua mãe de modo que não o visse mais. O domingo se dissolvera. O telefone tocou.

_alô?

_ei Renato. Estamos dando um churrasco na casa do Abel. Que acha de chegar aqui para curtir um pouco?

_Não vai dar Marcos, eu preciso dormir logo... Trabalho cedo amanhã.

_Ok. Se mudar de ideia, aparece aí! .....Desligou o telefone. Tomou a cerveja de cinco goladas.

Foi até o banheiro e escovou os dentes. Assoprou no espelho e este não congelou. Que pena; pensou. Despiu-se e deitou na cama. Antes de adormecer ainda viu Gugu mijando no seu bolo de aniversário...

r.A.