terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Um dia eles vão te reconhecer (e você vai se arrepender!)

[ao som de Seven Shades – Babyshambles]


“Era uma vez...”
Na frente da universidade.
_Porra cara, você está com uma aparência horrível! Tá acabado ein?
_Não tão acabado quanto estarei em breve... – sorri.
         Quem falou comigo foi Renato. Um sujeito alto, barbudo, com cabelos encaracolados e longos braços finos contrastando com uma barrigona de cerveja.
         Na feiura estávamos num páreo difícil. Preferia pensar que não estava ganhando. Mas a verdade é que realmente estava acabado. Olheiras, a barba por fazer, havia perdido bastante peso – só músculos, nada de gordura – e meu tênis acabara de descolar perto do dedão. Quem me via de longe já pensava: tai um cara esperando a morte.
_Parou de escrever, não é? Nunca mais tive notícias de seus textos circulando por aí. – disse batendo com o punho no meu braço.
_Pois é, eu tô acabado! – resmunguei.
_Tá fudido mesmo. – devolveu ele.
_Fudido não, cara. Só acabado. – acendi um cigarro.
_É a mesma coisa! – ele riu.
_Não é não. Estou acabado demais para estar fudido...- fiz questão de soltar a fumaça na direção dele, mas o vento desviou.
_Estou indo para o bar aqui do outro lado da rua. Não tá afim? – disse coçando o saco.
_Não, vou deixar passar essa. Beba umas por mim. – resmunguei me afastando.
_Cê tá acabado Adriano! – atravessou a rua rindo.
         Desci a rua da universidade evitando olhar para meu reflexo nas vitrines das lojas. Para um cara como aquele dizer que eu estou acabado, minha situação não deve ser das melhores.

***
No mercadinho da esquina de casa.
A mesma atendente de sempre. Sua voz infantilizada, seu sorriso fingido, seu olhar vazio, o buço por fazer – ninguém gentil o suficiente para lhe avisar.
_Uma vodca, um energético e um saquinho de amendoim. Vai escrever então?
         Demorei um pouco para reagir à pergunta. Estava olhando uma tatuagem no ombro de uma moça. Desconfiei que o objetivo era simbolizar uma borboleta, mas estava parecendo mais é um chiclete pisoteado na calçada. Nunca vou entender porque as pessoas fazem certas coisas consigo mesmas.
_Como é? – disse depois de um minuto.
_Você. Pelo visto vai escrever. O pessoal daqui comenta que você é escritor. Acho que eu vi um texto seu uma vez, no jornal... – sorria, como ela sorria!
_Nunca. Eu não sou tão miserável assim para escrever em jornal. – devolvi, tentando não ofender.
_Ele é escritor? – resmungou uma loira atrás de mim na fila. – ah! Que livro você publicou? Eu adoro escritores!
_Já ouviu falar de um livro sobre um garotinho que descobriu que era bruxo e ajudou todo mundo a vencer um cara malvado... – falei.
_Claro que sim! Minha filha adora esse livro. Meu deus, você escreveu aquilo? Nossa! Você é famoso mesmo ein. Quem diria...
         Paguei minhas coisas e caí fora. Eu devo estar acabado mesmo, pensei. Até minhas piadas estão ficando patéticas.

***
Na sala, olhando para a parede.
Quando eu tinha 17, sem saber como resolver uma briga com uma namoradinha, propus-lhe casamento. Ela encheu os olhos de lágrimas. “Você não devia brincar com os sentimentos das pessoas dessa forma”. Fiquei me segurando para não cair na gargalhada. Pelo menos a raiva dela passou. Foi em Schopenhauer que li sobre o mundo ser dividido entre diabos atormentadores e demônios atormentados. Alguma coisa assim. Parece que não há muito mais para fazer a não ser atormentar ou ser atormentado por alguém. Quanto a mim, parece que enquanto as pessoas estavam aprendendo coisas úteis para a vida, estava sempre decorando alguns truques sujos.
_Ainda bem...
***
Grazzi, no facebook.
_Foi você que saiu deliberadamente da minha vida!
_ “Deliberadamente”? Tai uma coisa interessante. Não sabia que você usava palavras deste tipo.
_Esse é seu problema. Você se acha inteligentíssimo demais, vive debochando das pessoas. Você é um escritorzinho metido que vive para o próprio ego.
_E bom de cama.
_Nem tanto assim. Conheci caras melhores!
_Não disse que sou o melhor, apenas que sou bom. (risos).
_Tá vendo? Não consegue falar sério com ninguém. Sempre aparecem esses deboches desgastantes.
_Acontece que sou um cara sensível que disfarça sua sensibilidade com ironias. E faço isso porque toda vez que me aproximo das pessoas, elas são insensíveis demais para notar meus detalhes...
_... poxa vida, você esta falando sério mesmo? Desculpa...
_Não. Na verdade essa é mais uma daquelas piadinhas.
_Filho da puta. Vou te bloquear! Até nunca mais.
_Até lá!

***
Depois do bloqueio.
Conselhos de superação. Animaizinhos engraçadinhos. Briga política. Matéria jornalística sensacionalista. Detalhes da vida pessoal de alguém que dá sono só de pensar sobre. Frases de autoajuda.  Correntes de fé. Indiretas. Convite para jogo online. Trechos de músicas cafonas. Citações de poetas mimimi. Fotos de animais de estimação. Convite para participar de grupos. Gente que tira foto do que está comendo. Gente que confirma presença em alguma coisa pensando que todo mundo vai resmungar: óóóóh! Como ele é cult! “Quem acredita em Deus compartilha, quem está nas garras do capeta só olha” – eu só olho, claro! Foto no espelho da academia para mostrar o rabo torneado. Mais um conselho de superação. Meu organismo se manifesta em sinal de protesto: diarreia seguida de vômito. Ou fui eu que bebi demais?

***
Bar perto da universidade.
Eu sou brigão pra caralho. Me aproveito dos esquentadinhos para aliviar a sede de porrada que minhas mãos manifestam o tempo inteiro. “Se você estivesse escrevendo, essa raiva toda teria sido direcionada para alguma coisa útil” – reflito enquanto cruzo a porta do bar, cambaleando e com ar de indiferença.
_Não há mais o que discutir com você! Vamos lá para fora! – Gritou para mim um cara.
         Loiro, alto, devia gastar o tempo vago dele puxando ferro na academia para depois compartilhar as fotos. Pobre homem... não sabe do que um vagabundo, como eu, é capaz.
_Vamos lá grandalhão, levanta essa guarda! – resmunga. Anda em círculos em torno de mim.
_ALGUÉM CHAMA A POLÍCIA! – a namoradinha do cara. Bonita, mas meio idiota.
         Ele me acerta primeiro. Muito amador, tem medo de acertar o rosto, bate no peito. Começo a rir. Lá vem outro murro. Deixo que me acerte na barriga. Me curvo, que nem nos filmes do Van Damme. É uma comédia, não consigo parar de rir.
_Renato, aposta aí cara! Joga cem em mim, rápido.
_Para com isso aí cara. Você tá acabado! Eu não tenho esse dinheiro para apostar, porra! – Devolve ele. Está com medo.
_Aposta mesmo assim, seu imbecil!
         Encaro Renato. Estou prestes a abandonar a briga com o loirão da academia e descer o braço no Renato. Ambos percebem. Renato finalmente aposta.
          Acendo um cigarro. O povo em volta começa a rir. “Olha só esse cara, não tem noção do perigo. Tá achando que tá num filme”. Do sorriso passo para a gargalhada. O loirão vem pra cima com vontade. A namoradinha dele grita novamente. Os garçons curtem, o dono do bar urra: Parem com isso seus merdas!
         O loirão erra por um centímetro. É forte, mas não sabe onde bater. É na orelha que tira o equilíbrio, no nariz que deixa cego e no queixo que derruba. Ele passa do meu lado em câmera lenta. Acerto em cima da orelha com a esquerda e na nuca com a direita. Começo a ficar preocupado porque ele não cai e eu estou bêbado.
_Você se acha Adriano! – diz ele, se recuperando. – você é um lixo! (o povo aplaude).
_Pare de falar. – respondo. – se eu quisesse conversar ia no programa da Fátima Bernardes.
         A piada foi boa. Ganhei o público.
         Dessa vez ele avançou no rosto. Me acertou na bochecha. Ouvi o som do meu maxilar estralando. O cigarro caiu da boca. Não gostei nem um pouco do gosto de sangue.
         Ameacei na orelha de novo e ele fechou a guarda. Mas não fechou muito bem. Mirei no meio do nariz, mas ele recuou e por isso acertei na boca. Calculei mal à distância. Não era para acabar ali, minha intensão era divertir o povo mais um pouco. O loirão caiu e saiu rolando.
         Algum amigo dele tentou interferir. Errou o soco também e levou uma bofetada em cima do olho esquerdo. Se encolheu no chão e me deu pena. Juntei meu cigarro do chão e fiquei olhando para o pessoal. Era como se eu fosse um mágico numa festa de crianças. Estavam esperando eu arrancar um coelho da cartola.
         Renato me puxou pela camisa e saiu me arrastando. “Pega a grana Renato” – gritei. “Que grana seu filho da puta, você vai ser preso!” – Devolveu ele.
         Não consegui chegar na esquina e a polícia me pegou.
_Você se acha durão? – Perguntou o policial.
_São seus olhos, bo-ne-ca! – Retruquei.
POW. Meu ouvido zunindo uma melodia do Bach. Quando me acertou o outro ouvido eu pensei estar ouvindo Richard Wagner ou Nirvana.
...E eu que era um cara tão legal. (essa frase aí eu roubei)

***
         Réu primário. Não que eu não tivesse aprontado antes. Mas nunca tinha sido pego, pelo menos. O pai do Renato é advogado e ele também – apesar da maconha e da cocaína que vive carregando nos bolsos.
         Quando eu acertei aquele soco nas fuças daquele cara, não foi ele quem eu acertei. Acertei a minha vida, no meio da cara. É isso que acontece com sujeitos que enlouquecem por um momento. Nunca são os outros, é o diabo atormentador que resolveu pegar para cristo o demônio atormentado. Sem vítimas, pegou a si mesmo. É assim que você progride de um degrau ao outro. De acabado para fudido.
         Para uma pessoa comum – e comum quer dizer domesticada-, isso é incompreensível.
_Ainda bem...

***
Na estação esperando o metrô.
A multidão que olha para você e da perspectiva de cada um, você é que é a multidão. Suas dores e suas alegrias não significam nada além de um ponto falho perdido no meio de uma malha agitada. Seus sonhos e suas metas, apenas uma pequena fagulha em um fogaréu. Uma mistura de suportável com insuportável, uma compreensão íntima da gratuidade de sua existência. Não ser apenas “mais um” é a denúncia da importância a qual você se apega desesperadamente, a importância que agrega a si mesmo. Que no fundo poderia ser “qualquer um”.
         O metrô aciona seus freios e o som do metal chorando salta para dentro de sua consciência. É a melodia incrível de sua condição de célula em um organismo que despreza seu desejo de individualidade.
         No íntimo, todos nós estamos “acabados”. Não há mais o que nos salve na estação esperando o metrô. No íntimo, todos nós, sabemos disso. Mas nossa vida segue fingindo que não. Fingir é a nossa condição.
         Você pode aprender essas coisas lendo Cioran ou refletindo sobre a obra Guernica de Pablo Picasso. Ou no metrô.

***
         Um dia eles vão te reconhecer (e você vai se arrepender!). E essa manhã eu acordei me sentindo muito melhor. Sabe quando o sol joga seu calor pela porta da sacada do apartamento e ao mesmo tempo uma brisa fresca transpassa seu corpo? Isso eu odeio também, mas ainda vai escurecer. Se não me engano ainda tem um resto de vodca na geladeira.
 “Viveram felizes para sempre”.


r.A.


p.s. Caso você seja alguém que já viveu uma relação intensa comigo, não me bloqueie no facebook só porque eu estraguei tudo. Isso me faz perder a fé no amor e prejudica minha escrita. Obrigado.