quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Filosofia no metro, na chuva, lavando a louça e fazendo bosta nenhuma!


(Fonte da imagem:http://gartic.uol.com.br/resiak/desenho-jogo/dancando-na-chuva)

......Hoje saí de casa com um pensamento “engasgado” no cérebro. Fiz uma anotação no metro, enquanto me equilibrava de uma estação até outra – precisava das duas mãos para anotar numa agenda -, para compor um aforisma mais tarde. É obvio que este aforisma não está pronto e por isso não vou revelar seu rascunho aqui. Mas vou falar da ideia. Veja só. Nos acostumamos em meio a uma multidão a pensar “ali estão os outros”, como se nós fossemos o ponto de referência, com olhos que fisiologicamente estão fadados a olhar para o exterior. Mas se outro nos olha, no meio de uma multidão, não passamos de parte “dos outros” até que algo de nossa singularidade seja notada, percebida ou até que algo de nossa singularidade irrite o observador. Se por um lado a ideia brotou enquanto cruzava a porta e apertava o botão do elevador, por outro lado o melhor lugar para dar forma a essa ideia foi um metro lotado! Lembrei de Buda e de Bukowski, na mesma hora. Modelos de fricção com o ambiente em que se encontravam, por excelência! É possível que se eu fizesse uma relação entre Buda e Bukowski na academia, em um trabalho acadêmico, quero dizer, é possível que a banca debocharia de mim na mesma hora – diria, na melhor das hipóteses, que sou um pseudo-filósofo, um idiota legítimo. Mas no metro, eu posso ser filósofo do meu jeito. Ser filósofo, para mim, não foi uma questão de “querer ser”, fui pego pela expressão, fui pego pelo sabor do pensamento... “começou como se fosse um erro”, mas não vou falar sobre isso agora. O caso é que me senti filósofo naquele exato momento.
......Meia hora depois, estava andando até o terminal de ônibus. Entrei no ônibus – também abarrotado de gente – e em meio ao calor dos corpos agrupados, em meio a mistura de diferentes cheiros, de diferentes humores, olhares, reclamações, conversas, em meio a tudo aquilo, me flagrei pensando ainda sobre a filosofia – quê é a filosofia?. Nunca soube responder essa pergunta, mas sei o que não é filosofia! Sei que filosofia não é o que esta escrito no jornal, por exemplo, também não é a chuva: seria interessante se fosse a chuva! Bastaria um banho de chuva até o trabalho para você adquirir esse tipo de conhecimento, esse tipo de sensação. Muito se falou que filosofia é um pensamento no ócio, na calada da noite, revolvendo suas próprias reflexões, etc. Não penso que seja isso agora – e tenho apenas vinte e poucos anos. Talvez Platão riria de mim, porque não contemplo nenhum tipo de certeza e se fosse possível uma ponte de milênios – pelo menos uns dois -, encontraria Deleuze rindo na minha cara. “Criar conceitos, rapaz”, ele sussurraria naquela voz cavernosa. É claro que o conceito é alguma coisa da produção de um filósofo, mas têm mais os estados de espírito, a potência e a impotência corporal, o estilo, a escolha literária, o flagrar-se “a meio caminho da estalagem da razão” (Como escreveu Fernando Pessoa no Livro do desassossego... – Fernando Pessoa não era um filósofo, resmunga alguém na banca...), imanências, transcendências, olhares ônticos, ontológicos, etc. Cá entre nós, eu ainda estava me sentindo filósofo. Depois que o ônibus me deixou no meu ponto e eu tinha que subir três quadras, passar em frente a uma igrejinha, atravessar uma minúscula praça, na chuva, ainda estava rodeado de pensamentos. Quase podia tocá-los! Transferia um conceito para outro muito diferente, contextualizava mentalmente um pensador e outro, me contextualizava, afirmava, argumentava, duvidava de mim, ria sozinho e assim fui indo.
......Meia hora depois, já estava numa sala de aula. Terceiro ano do ensino médio. O combinado era que falaria de Karl Marx, precisamente sobre organização social do trabalho, luta de classes, lucro e mais-valia, meios de produção. Era o roteiro da aula, uma aula expositiva após a leitura de alguns textos, etc. Precisava abordar rapidamente conceitos que julgava não serem bem salientados no material didático que fora destinado aos estudantes, aquela coisa toda. Perguntas vieram, algumas foram respondidas, outras deixaram reflexões no ar – particularmente prefiro deixar reflexões no ar a responder perguntas...-, argumentos foram aceitos, argumentos outros foram refutados, o que quero dizer com tudo isso é que me sentia ainda filósofo, me sentia ainda em plena Àgora, intensamente e vigorosamente pensante. Sem um tipo estranho de inspiração, você não consegue se manter filósofo dando aula em uma escola! Uma porta se abre, um celular toca, alguém chega atrasado, alguém grita no corredor, outros riem, boa parte da atenção é desviada, alguém boceja para te informar que está entediado, etc. Quem da aula em escola pública sabe sobre o que se passa durante 50 minutos. 10 minutos são destinados a alunos que entram atrasados, mais 10 minutos são destinados à chamada – carimbar o gado (risos) -, digamos que mais 10 minutos são gastos com todo tipo de interrupção – de um comentário desnecessário à um acesso de risos que emerge de uma piada contada por alguém em um grupinho. Restam-lhe uns 5 minutos para entrar no clima, 5 para responder possíveis questionamentos ou observações, 10 minutos dedicados exclusivamente a filosofia – se tudo correr bem. Mas dez minutos de filosofia são incríveis! Dez minutos são como uma troca de socos de dois pugilistas, podem definir o resultado da luta toda, resultado de horas, de meses, de anos, de séculos! Quando acontece, é como se a humanidade respirasse um novo ar, tomasse um novo fôlego! Eu luto por esses dez minutos uma manhã inteira! Se você soubesse quantas vezes perdi essa luta, diria que é absurdo – ou até masoquista – esse objetivo.
......Você acha que todas esses pequenos acontecimentos grandiosos são levados em conta quando alguém irá te avaliar? Pois é, minha opinião sobre isso tudo é que NÃO. Numa sociedade, falando hodiernamente, creio que o filósofo e todo esse seu empenho sejam sinônimos de tolice. Ao menos que aquele que escolheu para si ser filósofo não sinta uma espécie de “recompensa” nos pequenos detalhes do seu cotidiano, nos pequenos tesouros – que se revelam imensas montanhas de sabedoria -, ao menos que o filósofo não sinta uma grandiosidade intrínseca em seu próprio exercício, ao menos que não defenda esse “resto” que tudo conspira para jogar no lixo, creio que sua autoestima e sanidade sofrem de hemorragia silenciosa. É alguém quer me avaliar, e alguém quer me medir – o quanto sou digno de ser filósofo -, e alguém quer levantar suspeitas sobre mim, e alguém ocupa um lugar no estado e se diz preocupado com a educação, e alguém acha que não somos o bastante... E fazem pelo menos uns três anos que tenho gabaritado em provas do Estado – provas terceirizadas e na maioria das vezes mal formuladas: gasto mais tempo tentando corrigir as avaliações que me são aplicadas para entender o que é que realmente gostariam de me avaliar, do que respondendo questionários e justificando dissertações. “Duvido muito que Platão conseguiria um orientador em uma universidade para fazer uma pesquisa sobre Platão”. – tai, acabei de tecer um bom aforisma (risos). – “Bem senhor Platão – é seu apelido, não é? Pelo visto você andou publicando um bom bocado, mas não teve muitas participações em eventos filosóficos, não publicou muita coisa em revistas especializadas, e seu Lattes anda meio magro... complicado... assim fica difícil.”
......Talvez, você esteja pensando agora:_ poxa, mas que dramalheira, que choradeira, você fica aí só reclamando, que porcaria rapaz! E se esse for o seu caso, sinto muito lhe informar, mas não estou reclamando – estou até alguns quilômetros longe disso. Quase desapareço no horizonte! Aceito o “jogo”, jogo ele nos conformes de minhas possibilidades – até um pouco além. Se fosse experto não estaria escrevendo isso aqui. Muito menos publicando! Mas não sou um sujeito muito esperto, embora ame a filosofia – mas é claro que só isso não basta. Nunca bastou. Sei como é acordar num quarto pequeno, pagar um aluguel absurdo, espremer a agenda toda semana para reservar pelo menos duas horas diárias de leitura e reflexão. Sei como é comer mal para conseguir comprar um livro no fim do mês, sei como é andar com um sapato furado na sola ou com uma camiseta desbotada só para manter a chama (semelhante a uma ponta de fósforo) acesa diante de tanta escuridão.  Isso não me desespera nem me aniquila; isso tudo me constrói. De outra maneira, duvido muito que minha filosofia teria algum valor. Valor esse que preservo como um pai atrapalhado cuida de seu filho. Me afirmo de tal maneira que, semelhante a Nietzsche, seria capaz de publicar uma obra elogiando minha doença! Se Rimbaud não tivesse sentado a beleza em seu colo para repudiá-la, antes de mim, eu provavelmente já teria feito. Tanto atraso teria me poupado a História...
......Mais tarde estava lavando a louça. Lavando a louça de uma semana! Um pouco de preguiça, um pouco de descaso, uma apologia da falta de tempo, mas ainda assim lavando-a. Em algum momento ri de mim. De “mim”, não de “eu”. Foi um riso nefasto, um riso de ridículo. Consigo ser ridículo e ainda assim me sentir filósofo? – resmunguei. A resposta era tão óbvia que a própria pergunta foi tola. Me senti muito capaz de lavar a louça. Aliás, me senti no lugar mais correto do meu mundo. Mesmo com aquela sensação de estar fazendo “bosta nenhuma”, num sentido filosófico, ainda me sentia filósofo! (Ouvi falar que foi um espanto para alguns sujeitos que foram visitar o sábio Heráclito, encontrá-lo simplesmente aquecendo as mãos diante de uma fogueira. Nada de “genial”, apenas aquecendo as mãos). Não sou Heráclito, não sou nem um pedaço de uma sombra dos grandes, sou alguém muito satisfeito em lavar a louça e se sentir filósofo – mesmo que sozinho. E se isso tudo não bastasse, ainda escrevo. Não sei o porquê – ser a multidão do outro deveria esfriar essa febre. Se você souber, por favor, não me conte.


r.A.


Para Rodrigo Menezes e Fernando Klabin. Amigos que tanto devo e não vejo como pagar. – ah se Klabin não tivesse traduzido Nos cumes do desespero... não quero nem pensar nisso!