sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Um pequeno texto enquanto espero o sono




......É óbvio que você e todo mundo que você conhece sabe como é um dia ruim. São 23 horas e estou no finalzinho do meu. Parecia que o dia iria ser bom pela manhã, digo, o clima, os pássaros cantando – coisa rara no centro de São Paulo -, não cruzei nenhum chato pelo caminho e consegui chegar em silêncio no trabalho. Mas depois do meio-dia, parece que o tédio, a sonolência, a falta de sentido, finalmente me alcançaram. A única coisa que me fez rir de verdade foi uma briga entre um motorista de ônibus e um cobrador. Vou contar como foi.
......Dentro de um ônibus lotado, indo em direção ao terminal de Barra Funda, um sujeito de cabelo black power pediu uma informação para o motorista. “Onde fica o banco mais próximo? Preciso sacar dinheiro” – disse numa voz preocupada. O motorista, um velho com cara de nojo, bastante barrigudo e mal humorado, resmungou:_ Desce nesse ponto aí rapá! Aí na esquerda tem um banco! – gesticulou com o braço num sinal de “não me amole, porra”. O sujeito de black power pagou o cobrador. O cobrador estava cambaleante de sono e usava um óculos escuro espelhado. Parecia uma mosca na beira da morte. A simples visão do cobrador magro, enfiado dentro de um uniforme três vezes maior que ele, já era cômica por si só. Quanto a mim, estava escorado em um canto próximo a uma janela. A essa altura o tédio e a falta de sentido já ocupavam o mesmo espaço que meu corpo. Antes de descer, o sujeito de black power sentiu de agradecer pela informação do motorista e gritou:_ valeu aí MASTER.
Master...
......A palavra Master ficou no ar. O sujeito de black power saltou do ônibus um pouco estabanado e correu na direção indicada pelo motorista. Ergui os olhos acima dos meus óculos e vi que realmente havia uma agência uns poucos passos do ponto de ônibus. A farra veio depois!
......No outro ponto, ao avisar o motorista que podia fechar as portas porque os passageiros já haviam saído, o cobrador resolveu fazer graça.
_Pode fechar as portas aí, Master! – disse isso com uma voz esganiçada, claramente debochada. O motorista carrancudo fingiu que não prestou atenção no gracejo, mas alguns passageiros – inclusive eu, pela primeira e única vez no dia – riram.
......O riso empolgou o cobrador. Incentivou as suas gracinhas. Ele que a pouco parecia uma mosca na véspera da morte, agora parecia um mosquito excitado esfregando as minúsculas mãozinhas. Era um mosquitinho cheio de energia porque encontrou a paciência de alguém para atazanar.
......No outro ponto, próximo a um viaduto, o cobrador sorriu assim que os passageiros terminaram de saltar da escadinha na porta.
_Fecha Master!
......O motorista bufou e resmungou alguma coisa que lembrava “máster é o teu rabo...”. Mas seguiu. Desta vez eu não ri, mas muitos outros riram com mais vontade.
......Para mim a piada já tinha perdido a graça. Por isso fui me agarrando nos bancos até encontrar um lugar vago no fundo do ônibus. Infelizmente o lugar que encontrei batia um sol de 30 graus. Se não bastasse o tédio e a falta de sentido, agora estava começando a ficar com dor de cabeça.
......Resumindo o baile, mais quatro paradas fez o ônibus, e em todas as paradas eu ouvia um “vai máster”. Às vezes o Master era dito da seguinte forma – afim de dar ênfase na piada: Más- Têr! Um ponto antes da chegada até o terminal, o motorista mal humorado freou bruscamente o ônibus, desafivelou o cinto e se pôs em pé.
Pude ouvir, mas não pude ver direito a situação toda.
_MASTER É A BUCETA DA SUA MÃE SEU PORRA! MASTER É O SEU CU ARROMBADO! MASTER É A CHAPULETADA QUE VOU TE DAR NESSA SUA CARA DE BICHA!
_...pô cara! É brincadeira! Fica frio ai chefe! Não gosta de descontrair um pouco, pô?
_VOU DESCONTRAIR MINHA MÃO NA SUAS FUÇAS SEU CABRA DE MERDA! SE FALAR MAIS UMA VEZ MASTER VOU ARRASTÁ-LO PARA FORA DESSE ÔNIBUS E VOU PASSAR COM O PNEU EM CIMA DA SUA CABEÇA – TÁ OUVINDO?- SEU PORRA!
......Foi aí que a piada acabou. Podia ouvir o som da respiração dos demais passageiros. Quando chegamos ao último ponto senti uma tentação tremenda em resmungar lá do fundo “valeu Master”. Mas algum engraçadinho falou isso na minha frente, fazendo todos os passageiros cair na gargalhada mais uma vez. Porém não havia muito que o motorista pudesse fazer. Não deu para identificar o engraçadinho e todos desceram do ônibus ao mesmo tempo.
......O clima havia mudado. Todo mundo parecia mais irritado do que o de costume. E eu, enquanto subia as escadas do terminal, junto com um rebanho de mais uns cinquenta humanos, pensava comigo mesmo que a humanidade não foi feita para dar certo. Basta você observar um agrupamento de pessoas para sentir os ânimos exaltados. Um mormaço paira no ar. Parece que a qualquer momento, por qualquer motivo que seja, todos vão cravar os dentes e as unhas uns no pescoço e nos olhos dos outros. É terrível!
......Estava acabado. Meu corpo protestava contra o que eu estava o submetendo. Seguia suando e ardendo como se fosse uma enorme ferida. Sentia-me como uma febre, como um rasgo embaixo do dedão do pé, como um ferimento de bala, como um chute no saco. Mas ainda tinha que enfrentar uma fila na lotérica e pagar um maço de contas atrasadas. Bukowski falava em um estágio próximo a loucura, induzido pelo cotidiano. Não tinha como não lembrar disso.
......Permaneci na fila. Oito pessoas na minha frente. Seis atrás de mim. Todo mundo praguejando. Se você quiser aprender palavrões, o melhor lugar é uma fila de lotérica ou de banco. Ali você conhece o potencial humano – fila de lotérica, ônibus lotado, metro. Outros lugares são bares, igrejas e puteiros. Você não conhece o potencial humano em mansões, iates, restaurantes chiques e assembleias sindicais. Nessas horas você entende que manifestações são festas de fim de semana – prefiro uma bala de borracha no olho a qualquer fila! Quero ver você falar de soluções para o paradoxo da sociedade capitalista na fila de um banco nos últimos e primeiros dias do mês. O povo te arranca a cabeça fora e joga futebol com ela... Eis a incoerência de teorizar utopias humanistas no fundo de gabinetes com o ar condicionado a toda! – Todo mundo bate palma feito foca para o Rousseau passeando no bosque ou o Thoreau se masturbando no meio do mato, ou o Dalai “Lhama” evitando mexer no tico enquanto medita, ou o Buda contando suas respirações, etc., ... aí não dá para ser; aí não dá para ser. Mas todo mundo vai salvar o mundo um dia, amém.
......Depois que fiquei 500 reais mais pobre, o que restou de mim foi disputar uma fresta no metro. Ali, continuaram as doses cavalares de humanidade. Dose dupla, sem gelo e com dois dedinhos de veneno puro. Socos, cotoveladas, xingamentos e desejos de guilhotina – Greatest hits! Você pode não acreditar, mas um pedaço de mim se arrastou para fora disso tudo, cruzou a porta do apartamento e deu duas voltas na tranca. Mais tarde fiquei sabendo de alguns que não resistiram bravamente. Dois se atiraram nos trilhos, um se enforcou com os fones de ouvido do celular, outro ainda simplesmente parou de respirar em algum ponto da jornada, e por aí vai.
......Agora chega. Este texto já ficou chato demais. Acabaram-se as sacadas ilustrativas e as piadinhas ácidas. Pelo menos ainda tenho um cigarro, meio copo de trago e nenhuma esperança. Não ter esperança na humanidade não depende de um dia ruim – como você deve estar pensando nessas alturas. Não ter esperanças tem a ver com um pedido de demissão em relação à ingenuidade habitual (vale dizer “comum”). Boa noite.


r.A.

ps. Escrever não é desabafar, mas é engraçado como a gente se sente melhor depois que escreve um pouco...